O capítulo 10 do 4.º Evangelho releva a figura e a missão do
“Bom Pastor” ou do “Belo Pastor”. A frase grega é “Egô eimi ho poimên ho kalós” (Jo 10,11). “kalós”, que se traduz aqui
por “bom”, tem o sentido originário e primário de “belo”. Mas o belo, o bom e o
verdadeiro andam juntos.
Como refere Frederico Lourenço, já os poemas homéricos
referiam os reis como “pastores do povo”. O mesmo sucede em Israel: Deus é
muitas vezes referido como o rei-pastor – sobretudo quando se contrapõe aos
maus pastores, os censura e lhes tira a guarda das ovelhas (vd Ez cap. 34) – e o seu ungido também será o
rei-pastor (Mq 5,3). E o Salmo 23 (recitado como salmo responsorial
neste domingo) é um hino
ao solícito e zeloso pastoreio de Deus e ao conforto que esse pastoreio de sempiterna
tranquilidade e alento dá ao crente.
Também David é referido como o pastor da grei divina, por
exemplo, no Salmo 78,70-72 e em Ezequiel 34,23-31. E Jesus é, à maneira de
David, o belo pastor, como se pode ler em 1Sm 16,1-13. Samuel foi ter com Jessé
para ungir como rei um dos seus filhos. Depois de todos terem desfilado e
Samuel ter indicação de Deus para não escolher nenhum, perguntou Samuel a Jessé
se não tinha mais nenhum. Jessé disse que o outro andava a apascentar as
ovelhas. E Samuel mandou-o chamar. E apareceu David, que era loiro, de belos
olhos e de aparência formosa. E o Senhor disse a Samuel que era aquele, que o
ungisse. E David fez-se rei.
São João utiliza esta imagem, que não inventa, do pastor, do
redil e das ovelhas para uma catequese sobre a missão de Jesus, pois a obra do
“Messias” é conduzir o homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas
de onde brota a vida em plenitude (embora geralmente e no v. 10 “vida” se diga “zoê”, nos vv. 15 e 17, o termo grego
para “vida” ou “alma” é “psikhê”). É em Ez 34 que temos a chave para a
compreensão da metáfora (não
apenas comparação como induz a versão do lecionário em português) do “pastor” e do “rebanho”.
Dirigindo-se aos exilados da Babilónia, Ezequiel anota que os líderes de Israel
foram, ao longo da história, maus “pastores”. Por isso é que Jesus diz que
todos (“pantes”) os que vieram antes de si são ladrões e bandidos (“kléptai
kai lêstaí”). “Lêstai” é o plural de “lêstês”, termo que pode significar “pirata”
e se aplica a Barrabás, ao passo que “kléptês”
se aplica a quem rouba, como Judas. Aquele “pántes”
obviamente não se aplica a Moisés ou aos patriarcas e aos profetas que serviram
de pedagogos do povo rumo a Cristo, mas àqueles juízes, reis, sacerdotes e
falsos profetas que levaram o Povo por caminhos de morte e de desgraça. E, em
Ezequiel, o próprio Deus promete que vai assumir a condução do seu Povo: colocará
à frente do seu Povo um “Bom Pastor”, que o livrará da escravidão e o conduzirá
à liberdade de vida. Esta promessa ensaiada com David cumpre-se plenamente em
Jesus.
O texto deste domingo no Ano A (Jo 10,1-10) situa-se no quadro da denúncia da atuação dos líderes judaicos.
O episódio do cego de nascença evidenciou que os dirigentes não estavam
interessados em acolher a luz e deixar que o Povo escolhesse o caminho da
liberdade. Por isso, Jesus advertiu-os de que veio chamá-los a juízo (“krima”) por causa da sua má condução do Povo
de Deus (cf Jo 9,39-41). Mas eles preferiram continuar na
obscuridade da sua autossuficiência e impedir o Povo de descobrir a luz.
A primeira parte da perícopa (Jo 10,1-6) apresenta Jesus preferencialmente como “o Pastor”, cuja ação
se contrapõe à dos mercenários que se arrogam o direito de pastorear o
“rebanho” do Povo de Deus a seu bel-prazer, mas não são “pastores”. Como
ladrões e bandidos que são, usam as suas prerrogativas (sociais, políticas e religiosas) para explorar o Povo (ladrões) e são violentos para o manterem sob
a sua pata (bandidos). Aproximam-se de forma abusiva e
ilegítima, pois Deus não lhes confiou essa missão (“não entram pela porta”): usurparam o redil (“aulê”,
palavra tão antiga como os poemas homéricos: veja-se o que é a nossa “aula”). O seu objetivo não é o bem das
“ovelhas”, mas o próprio interesse. Ao invés, Jesus entra pela porta, que o
porteiro do redil Lhe abre, pois tem mandato do Pai. Ora, ao apresentar-se como
Aquele “que entra pela porta”, Jesus declara-Se o “Messias” enviado por Deus
para conduzir o seu Povo e o guiar para as pastagens mais verdejantes. Entra no
redil das “ovelhas” para cuidar delas, não para as explorar, libertando-as das
trevas em que os dirigentes as trazem e conduzi-las ao encontro da luz
libertadora. E exerce a sua missão chamando pelo nome, pois bem as conhece,
cada uma as suas ovelhas (“tà ídia próbata”), dando a entender que há outras no
rebanho que ainda não são dele. Porém, no v. 16, dirá que as ovelhas que ainda
não são do rebanho pertencem já ao Bom Pastor. Segue à frente delas e condu-las
para fora ensinando-lhes a rota para os bons lugares. E elas seguem-No porque
conhecem a sua voz de pastor, mas fugirão do estranho, por não lhe conhecerem a
voz.
Ora é nesta imagem de conhecerem o pastor e o seguirem quando
ele vai à frente que o Padre Alberto Gomes, pároco de Cristo Rei da Portela, vê
a missão do educador e do professor, pois os termos latinos “educere” e “educare” significam “chamar” e “conduzir” a criança, o adolescente
e o jovem para fora de si e do seu ambiente e, como o pastor, levá-los às
pastagens esperançosas e prazenteiras das suas possibilidades. E, referindo as
dimensões da posição do pastor como o Papa Francisco recorrentemente enuncia em
relação às ovelhas, aplica-as aos pastores e aos educadores e professores: ir à
frente para lhes fazer descobrir e desbravar novos caminhos e horizontes; estar
no meio, para garantir acompanhamento, proximidade e sintonia; e seguir atrás
para ajudar os que têm mais dificuldade ou maior fragilidade, garantindo que
ninguém fica para trás. Isto fazem-no os pastores, os educadores os
professores, como o fazem as mães na sua perspicaz solicitude maternal, não
olhando a sacrifícios para cada um dos alunos ou dos filhos sentir o cuidado e
o carinho da dedicação, afeto, cultura e educação integral.
Para Jesus, como para os educadores/professores e para as
mães (esse domingo é o Dia
da Mãe), não há massas,
mas pessoas concretas, com a sua identidade própria, a sua riqueza e
necessidades, e a sua dignidade, que precisam da proximidade e da atenção como
se fossem únicas.
Jesus não obriga ninguém a segui-Lo, mas àqueles que O seguem
condu-los para fora. Não se instalando na antiga instituição judaica, geradora
de opressão, vem criar uma comunidade humana nova e apresenta-se como o caminho
de vida, luz e verdade que essa comunidade há de trilhar. Escutar a sua voz e
segui-la é a atitude do discípulo. Dizia o Padre Alberto Gomes que alguns não
gostam muito desta imagem do pastor e das ovelhas por elas, apesar de muito
meigas, serem muito gregárias. Porém, estas ovelhas do Cristo, o Belo Pastor,
são inteiramente livres e em Cristo, além do caminho, veem, pela docilidade, a
verdade e a vida.
Na segunda parte da perícopa (Jo 10,7-9), porque os judeus não perceberam a alegoria d’Aquele que
entra pela porta e chama as ovelhas pelo nome e elas seguem-No, Jesus reforça a
sua missão assumindo-se como a porta. Nos sinóticos, Jesus ensina, por exemplo,
“o reino de Deus é como…”, “é semelhante a…”. Em João, Jesus fala por
metáforas, já não por comparações ou símiles. E fala na 1.ª pessoa do singular
“Eu sou” (“Egô eimí”). A alegoria da porta aplicada a Jesus refere-se aos
líderes que pretendem o acesso ao rebanho e às próprias ovelhas. No atinente aos
líderes, significa que ninguém pode aceder às ovelhas se não tiver um mandato de
Jesus (os pastores
replicam o pastoreio de Jesus), se não for chamado por Ele e se não tiver os d’Ele, a atitude de Jesus;
no concernente às ovelhas, quer dizer que Jesus é o único lugar de acesso para
que as ovelhas possam encontrar as pastagens que dão vida. Assim, “passar pela
porta” que é Jesus significa aderir a Ele e segui-Lo e estar disposto a dar a
vida por Ele e pelos irmãos.
Aqui a palavra grega que se traduz por “porta” é “thúra”, que faz pensar nas “portas do
céu” (Sl 78,23). Para a “porta do céu” (Gn 28,17), a versão dos LXX emprega a palavra
grega “pulê”, que tem mais o sentido
de “portão”.
E a perícopa termina com a reafirmação do contraste entre
Jesus e os dirigentes judaicos: estes utilizam a grei para satisfazerem os seus
interesses egoístas, despojam e exploram o povo, ao passo que Jesus só procura
que o rebanho tenha vida e a tenha em abundância.
É preciso esperar pelo Ano B para se chegar ao clímax do
discurso pastoril de Jesus. Começou por dizer que é Aquele que entra pela
porta, porque é o pastor das ovelhas; assume-se como a porta; e afirma-se como
o Belo Pastor (vv 11.14). E aqui já não se compara por
dissemelhança com os ladrões e bandidos, mas com os assalariados (“misthôtoí”), acusando a indiferença destes: se
veem vir o lobo, fogem porque não são pastores, não têm amor e dedicação pelas
ovelhas, mas apenas o desejo do salário. Ao invés, Jesus dá a vida pelas
ovelhas mesmo com o risco de ser morto pelo lobo. E diz que é por isso que o
Pai O ama: é capaz de dar a vida pelas suas ovelhas. E bem conhece o Pai e o
Pai O conhece a Ele.
Estas últimas considerações fazem-me recordar o episódio que
se conta da vida de São Bartolomeu dos Mártires. Num dos percursos que fazia de
regresso duma visita pastoral, encontrou um rebanho grande a pastar
tranquilamente em abundante pastagem entre montanhas. E do cimo dum fraguedo, o
zagal vigiava o rebanho com muita atenção, mas sob intenso frio e chuva
copiosa. O santo Arcebispo de Braga, vendo que ali perto havia uma gruta,
perguntou ao pastorinho porque não se abrigava nela. E ele esclareceu que o seu
paizinho o mandara guardar o rebanho e não abrigar-se. E acrescentou que o pai
gostava muito dele, mas, se o lobo apanhasse uma ovelha e soubesse que o filho
estava abrigado na gruta, o repreenderia.
Aqui fica, segundo o Arcebispo, uma bela lição do que deve
ser o pastor solícito, embora não por medo, mas por amor oblativo.
E, para que haja pastores assim, mães e pais dedicados, religiosos
e religiosas solícitos, missionários e missionárias incansáveis, bons
educadores e professores – que têm dado provas da sua dedicação no contexto da
pandemia da Covid-19 – se rezou neste dia de oração pelas vocações se deve
continuar a rezar, de modo que a violência e a indiferença sejam erradicadas.
De facto, como garante Jesus (cf Jo 10,26-30), ao contrário do que acontece com aqueles que não são
ovelhas de Jesus porque não acreditam n’Ele, as ovelhas de Jesus ouvem a voz d’Ele
e Ele conhece-as e elas seguem-No. E mais: Ele dá-lhes a vida eterna e elas não
perecerão, ninguém Lhas arrebata da mão. Foi o Pai que Lhas deu, o que o Pai Lhe
deu ninguém o arrebata nada das mãos do Pai e do Filho. O Filho e o Pai são uma
só coisa (“unum” em latim e “én” em grego).
Jesus diz não “Eu e o Pai sou um só”, mas “Eu e o Pai somos
um” (no plural somos: “esmén”). A afirmação da unidade Pai-Filho é a mais arrebatadora
definição cristológica: indispôs os judeus e despertou acesas controvérsias nos
primeiros séculos do cristianismo, a que puseram cobro concílios como os de
Niceia e de Constantinopla.
Enfim, “Kýrios poimaínei
me” (em latim: “Dominus pascit me”): “o Senhor me apascenta e nada me
faltará” (Sl 23,1).
2020.05.03
– Louro de Carvalho
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