domingo, 3 de maio de 2020

Em domingo do Belo Pastor, a valorização da mãe e do educador


O capítulo 10 do 4.º Evangelho releva a figura e a missão do “Bom Pastor” ou do “Belo Pastor”. A frase grega é “Egô eimi ho poimên ho kalós(Jo 10,11). “kalós”, que se traduz aqui por “bom”, tem o sentido originário e primário de “belo”. Mas o belo, o bom e o verdadeiro andam juntos.
Como refere Frederico Lourenço, já os poemas homéricos referiam os reis como “pastores do povo”. O mesmo sucede em Israel: Deus é muitas vezes referido como o rei-pastor – sobretudo quando se contrapõe aos maus pastores, os censura e lhes tira a guarda das ovelhas (vd Ez cap. 34) – e o seu ungido também será o rei-pastor (Mq 5,3). E o Salmo 23 (recitado como salmo responsorial neste domingo) é um hino ao solícito e zeloso pastoreio de Deus e ao conforto que esse pastoreio de sempiterna tranquilidade e alento dá ao crente.
Também David é referido como o pastor da grei divina, por exemplo, no Salmo 78,70-72 e em Ezequiel 34,23-31. E Jesus é, à maneira de David, o belo pastor, como se pode ler em 1Sm 16,1-13. Samuel foi ter com Jessé para ungir como rei um dos seus filhos. Depois de todos terem desfilado e Samuel ter indicação de Deus para não escolher nenhum, perguntou Samuel a Jessé se não tinha mais nenhum. Jessé disse que o outro andava a apascentar as ovelhas. E Samuel mandou-o chamar. E apareceu David, que era loiro, de belos olhos e de aparência formosa. E o Senhor disse a Samuel que era aquele, que o ungisse. E David fez-se rei. 
São João utiliza esta imagem, que não inventa, do pastor, do redil e das ovelhas para uma catequese sobre a missão de Jesus, pois a obra do “Messias” é conduzir o homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas de onde brota a vida em plenitude (embora geralmente e no v. 10 “vida” se diga “zoê”, nos vv. 15 e 17, o termo grego para “vida” ou “alma” é “psikhê”). É em Ez 34 que temos a chave para a compreensão da metáfora (não apenas comparação como induz a versão do lecionário em português) do “pastor” e do “rebanho”. Dirigindo-se aos exilados da Babilónia, Ezequiel anota que os líderes de Israel foram, ao longo da história, maus “pastores”. Por isso é que Jesus diz que todos (“pantes”) os que vieram antes de si são ladrões e bandidos (“kléptai kai lêstaí”). “Lêstai” é o plural de “lêstês”, termo que pode significar “pirata” e se aplica a Barrabás, ao passo que “kléptês” se aplica a quem rouba, como Judas. Aquele “pántes” obviamente não se aplica a Moisés ou aos patriarcas e aos profetas que serviram de pedagogos do povo rumo a Cristo, mas àqueles juízes, reis, sacerdotes e falsos profetas que levaram o Povo por caminhos de morte e de desgraça. E, em Ezequiel, o próprio Deus promete que vai assumir a condução do seu Povo: colocará à frente do seu Povo um “Bom Pastor”, que o livrará da escravidão e o conduzirá à liberdade de vida. Esta promessa ensaiada com David cumpre-se plenamente em Jesus.
O texto deste domingo no Ano A (Jo 10,1-10) situa-se no quadro da denúncia da atuação dos líderes judaicos. O episódio do cego de nascença evidenciou que os dirigentes não estavam interessados em acolher a luz e deixar que o Povo escolhesse o caminho da liberdade. Por isso, Jesus advertiu-os de que veio chamá-los a juízo (“krima”) por causa da sua má condução do Povo de Deus (cf Jo 9,39-41). Mas eles preferiram continuar na obscuridade da sua autossuficiência e impedir o Povo de descobrir a luz.
A primeira parte da perícopa (Jo 10,1-6) apresenta Jesus preferencialmente como “o Pastor”, cuja ação se contrapõe à dos mercenários que se arrogam o direito de pastorear o “rebanho” do Povo de Deus a seu bel-prazer, mas não são “pastores”. Como ladrões e bandidos que são, usam as suas prerrogativas (sociais, políticas e religiosas) para explorar o Povo (ladrões) e são violentos para o manterem sob a sua pata (bandidos). Aproximam-se de forma abusiva e ilegítima, pois Deus não lhes confiou essa missão (“não entram pela porta”): usurparam o redil (“aulê”, palavra tão antiga como os poemas homéricos: veja-se o que é a nossa “aula”). O seu objetivo não é o bem das “ovelhas”, mas o próprio interesse. Ao invés, Jesus entra pela porta, que o porteiro do redil Lhe abre, pois tem mandato do Pai. Ora, ao apresentar-se como Aquele “que entra pela porta”, Jesus declara-Se o “Messias” enviado por Deus para conduzir o seu Povo e o guiar para as pastagens mais verdejantes. Entra no redil das “ovelhas” para cuidar delas, não para as explorar, libertando-as das trevas em que os dirigentes as trazem e conduzi-las ao encontro da luz libertadora. E exerce a sua missão chamando pelo nome, pois bem as conhece, cada uma as suas ovelhas (“tà ídia próbata”), dando a entender que há outras no rebanho que ainda não são dele. Porém, no v. 16, dirá que as ovelhas que ainda não são do rebanho pertencem já ao Bom Pastor. Segue à frente delas e condu-las para fora ensinando-lhes a rota para os bons lugares. E elas seguem-No porque conhecem a sua voz de pastor, mas fugirão do estranho, por não lhe conhecerem a voz.
Ora é nesta imagem de conhecerem o pastor e o seguirem quando ele vai à frente que o Padre Alberto Gomes, pároco de Cristo Rei da Portela, vê a missão do educador e do professor, pois os termos latinos “educere” e “educare” significam “chamar” e “conduzir” a criança, o adolescente e o jovem para fora de si e do seu ambiente e, como o pastor, levá-los às pastagens esperançosas e prazenteiras das suas possibilidades. E, referindo as dimensões da posição do pastor como o Papa Francisco recorrentemente enuncia em relação às ovelhas, aplica-as aos pastores e aos educadores e professores: ir à frente para lhes fazer descobrir e desbravar novos caminhos e horizontes; estar no meio, para garantir acompanhamento, proximidade e sintonia; e seguir atrás para ajudar os que têm mais dificuldade ou maior fragilidade, garantindo que ninguém fica para trás. Isto fazem-no os pastores, os educadores os professores, como o fazem as mães na sua perspicaz solicitude maternal, não olhando a sacrifícios para cada um dos alunos ou dos filhos sentir o cuidado e o carinho da dedicação, afeto, cultura e educação integral.      
Para Jesus, como para os educadores/professores e para as mães (esse domingo é o Dia da Mãe), não há massas, mas pessoas concretas, com a sua identidade própria, a sua riqueza e necessidades, e a sua dignidade, que precisam da proximidade e da atenção como se fossem únicas.
Jesus não obriga ninguém a segui-Lo, mas àqueles que O seguem condu-los para fora. Não se instalando na antiga instituição judaica, geradora de opressão, vem criar uma comunidade humana nova e apresenta-se como o caminho de vida, luz e verdade que essa comunidade há de trilhar. Escutar a sua voz e segui-la é a atitude do discípulo. Dizia o Padre Alberto Gomes que alguns não gostam muito desta imagem do pastor e das ovelhas por elas, apesar de muito meigas, serem muito gregárias. Porém, estas ovelhas do Cristo, o Belo Pastor, são inteiramente livres e em Cristo, além do caminho, veem, pela docilidade, a verdade e a vida.
Na segunda parte da perícopa (Jo 10,7-9), porque os judeus não perceberam a alegoria d’Aquele que entra pela porta e chama as ovelhas pelo nome e elas seguem-No, Jesus reforça a sua missão assumindo-se como a porta. Nos sinóticos, Jesus ensina, por exemplo, “o reino de Deus é como…”, “é semelhante a…”. Em João, Jesus fala por metáforas, já não por comparações ou símiles. E fala na 1.ª pessoa do singular “Eu sou” (“Egô eimí”). A alegoria da porta aplicada a Jesus refere-se aos líderes que pretendem o acesso ao rebanho e às próprias ovelhas. No atinente aos líderes, significa que ninguém pode aceder às ovelhas se não tiver um mandato de Jesus (os pastores replicam o pastoreio de Jesus), se não for chamado por Ele e se não tiver os d’Ele, a atitude de Jesus; no concernente às ovelhas, quer dizer que Jesus é o único lugar de acesso para que as ovelhas possam encontrar as pastagens que dão vida. Assim, “passar pela porta” que é Jesus significa aderir a Ele e segui-Lo e estar disposto a dar a vida por Ele e pelos irmãos.
Aqui a palavra grega que se traduz por “porta” é “thúra”, que faz pensar nas “portas do céu” (Sl 78,23). Para a “porta do céu” (Gn 28,17), a versão dos LXX emprega a palavra grega “pulê”, que tem mais o sentido de “portão”.
E a perícopa termina com a reafirmação do contraste entre Jesus e os dirigentes judaicos: estes utilizam a grei para satisfazerem os seus interesses egoístas, despojam e exploram o povo, ao passo que Jesus só procura que o rebanho tenha vida e a tenha em abundância.
É preciso esperar pelo Ano B para se chegar ao clímax do discurso pastoril de Jesus. Começou por dizer que é Aquele que entra pela porta, porque é o pastor das ovelhas; assume-se como a porta; e afirma-se como o Belo Pastor (vv 11.14). E aqui já não se compara por dissemelhança com os ladrões e bandidos, mas com os assalariados (“misthôtoí”), acusando a indiferença destes: se veem vir o lobo, fogem porque não são pastores, não têm amor e dedicação pelas ovelhas, mas apenas o desejo do salário. Ao invés, Jesus dá a vida pelas ovelhas mesmo com o risco de ser morto pelo lobo. E diz que é por isso que o Pai O ama: é capaz de dar a vida pelas suas ovelhas. E bem conhece o Pai e o Pai O conhece a Ele.
Estas últimas considerações fazem-me recordar o episódio que se conta da vida de São Bartolomeu dos Mártires. Num dos percursos que fazia de regresso duma visita pastoral, encontrou um rebanho grande a pastar tranquilamente em abundante pastagem entre montanhas. E do cimo dum fraguedo, o zagal vigiava o rebanho com muita atenção, mas sob intenso frio e chuva copiosa. O santo Arcebispo de Braga, vendo que ali perto havia uma gruta, perguntou ao pastorinho porque não se abrigava nela. E ele esclareceu que o seu paizinho o mandara guardar o rebanho e não abrigar-se. E acrescentou que o pai gostava muito dele, mas, se o lobo apanhasse uma ovelha e soubesse que o filho estava abrigado na gruta, o repreenderia.  
Aqui fica, segundo o Arcebispo, uma bela lição do que deve ser o pastor solícito, embora não por medo, mas por amor oblativo.
E, para que haja pastores assim, mães e pais dedicados, religiosos e religiosas solícitos, missionários e missionárias incansáveis, bons educadores e professores – que têm dado provas da sua dedicação no contexto da pandemia da Covid-19 – se rezou neste dia de oração pelas vocações se deve continuar a rezar, de modo que a violência e a indiferença sejam erradicadas.
De facto, como garante Jesus (cf Jo 10,26-30), ao contrário do que acontece com aqueles que não são ovelhas de Jesus porque não acreditam n’Ele, as ovelhas de Jesus ouvem a voz d’Ele e Ele conhece-as e elas seguem-No. E mais: Ele dá-lhes a vida eterna e elas não perecerão, ninguém Lhas arrebata da mão. Foi o Pai que Lhas deu, o que o Pai Lhe deu ninguém o arrebata nada das mãos do Pai e do Filho. O Filho e o Pai são uma só coisa (“unum” em latim e “én” em grego).
Jesus diz não “Eu e o Pai sou um só”, mas “Eu e o Pai somos um” (no plural somos: “esmén”). A afirmação da unidade Pai-Filho é a mais arrebatadora definição cristológica: indispôs os judeus e despertou acesas controvérsias nos primeiros séculos do cristianismo, a que puseram cobro concílios como os de Niceia e de Constantinopla.
Enfim, “Kýrios poimaínei me(em latim: “Dominus pascit me”): “o Senhor me apascenta e nada me faltará” (Sl 23,1).
2020.05.03 – Louro de Carvalho  

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