É uma das conclusões que o antropólogo e investigador Alfredo Teixeira tira
da análise que faz às transformações que o isolamento social motivado pela
pandemia trouxe à vivência da fé, admitindo que há dinâmicas de comunicação que
vão deixar “marcas importantes” e apontando como “uma das zonas mais sombrias”
da atual experiência a impossibilidade de cumprir os ritos fúnebres no modo
usual segundo a tradição dos povos.
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Em entrevista à “Renascença”
e à “Ecclesia”, publicada neste dia 8 de maio, começa por considerar
que, por consequência da pandemia da Covid-19, “nem o mundo se vai alterar de uma forma absolutamente radical”, nem se
nega que a crise deixará “marcas em particular nestas gerações que a estão a
viver”, sendo que algumas coisas “irão permanecer como rastos e uma
transformação de comportamentos” e outras, que resultaram de ajustes
circunstanciais “num clima de normalidade, voltarão a ser reajustadas”.
Questionado sobre o que permanecerá, observou que “as pessoas estão a
descobrir que se podem relacionar e vincular de formas diferentes” e que, por
outro lado, o que a geração dos nativos digitais conhecia como “formas de
presencialidade através do contínuo tecnológico” está muito mais partilhado.
Não obstante, chama a atenção para a diferença de comportamentos das diferentes
gerações para com os meios digitais, exemplificando:
“Os avós beijam o ecrã do telemóvel, enviam
beijos aos seus netos, ou acariciam o ecrã do tablet para ficcionar um contacto que presencialmente não existe”.
E traz à tona os contextos de trabalho “em que as pessoas fizeram a
experiência clara de que é possível trabalhar doutra maneira e, por vezes,
melhor”. É o caso do teletrabalho, ora promovido de forma quase generalizada,
bem como as experiências feitas no campo religioso, com as celebrações e
catequeses à distância. Na verdade, como diz, “a situação de crise provoca
experiências que, na medida em que as pessoas as descobrirem como uma
possibilidade, como uma vantagem para vários aspetos da sua vida, incluindo a
sua vida religiosa, podem potenciar essas experiências no futuro e promover
ajustes naquilo que é a sua experiência social”.
Tendo em conta que o ‘Inquérito sobre as Identidades
Religiosas em Portugal’, que o antropólogo dirigiu em 2011, apontava para
uma transformação nas formas de pertença dos fiéis e para a progressiva
valorização da lógica de afirmação individual e familiar, os entrevistadores
quiseram saber se a crise acentuará essa tendência.
E o antropólogo diz considerar
que as pessoas mais estruturadas pela valorização preferencial da iniciativa pessoal “estavam mais preparadas para
enfrentar uma situação como esta”, pelo que podem acentuar essa postura. Porém,
parece-lhe difícil que “as pessoas com uma religiosidade mais tradicional
venham a alterar profundamente o seu comportamento” no fim desta crise.
Descarta a ideia de estarmos a viver “uma mutação civilizacional”, que não
acontece “com esta rapidez”. Além disso, as sociedades, desde que existem, “têm
vivido crises deste tipo”. Por falta de memória, esquecemos que “estas
situações críticas de epidemias, de pandemias, acontecem à humanidade desde que
nos conhecemos”. É certo que “deixam marcas”, mas “somos a mesma humanidade que
procurou encontrar respostas para estes acontecimentos”.
E o entrevistado frisa que as pessoas que vivem uma religiosidade comunitariamente
mais vinculada sentem agora “uma espécie de diáspora, de um certo sentimento de
exílio espiritual”, mas “na expectativa de voltarem a reatar esses laços assim
que puderem”. No entanto, releva “o problema da casa e da família”, havendo “uma
diferença substancial entre as comunidades em que a identidade religiosa está
muito vinculada a uma identidade familiar”, o que sucede no contexto islâmico,
onde parte das observâncias é “doméstica e familiar”, ou em alguns contextos
evangélicos, onde a identidade religiosa se estrutura a partir da identidade
familiar (pai, mãe e
filhos). Nestes casos, como refere Alfredo
Teixeira, esta situação crítica deu possibilidade às pessoas de se reverem numa
religião mais vinculada à casa e à família.
Sobre a teoria da redescoberta, o antropólogo admite-a no contexto católico
e como “o aspeto mais interessante de observar”. E, advertindo que não temos dados
para uma avaliação global disto, assinala que a experiência mostra que “algumas
famílias fizeram coisas que nunca tinham feito em casa, uma espécie de liturgia
das casas, que passou por este trazer da experiência cristã, mesmo na sua
dimensão de oração comum, para dentro de casa” – marca da génese do próprio cristianismo,
o que se vê nas comunidades paulinas. Todavia, “por razões históricas”, que
levaram a amplas transformações na sociedade, as últimas décadas acentuaram “a
dinâmica da religião do indivíduo” e algumas dinâmicas pastorais atenderam
muito a essa dimensão, “desvalorizando a religião da família ou a possibilidade
de a religião se viver em família”. Assim, alguns contextos católicos permitem
falar duma verdadeira redescoberta.
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No atinente à frequência da missa dominical, cada vez mais diminuta, sendo
que muitos padres garantem que “nunca
tiveram tanta gente a participar na missa na igreja” como agora a acompanhar as
celebrações pelos meios digitais, o investigador afasta a exclusividade desta
postura direcional e fala em regularidade com medidas diferentes:
“Uma das coisas que estudei em 2011/2012
foi, precisamente, verificar que há católicos que recompõem a sua regularidade
(em ir à missa) num quadro que não é o que a instituição esperaria. Ou seja,
houve pessoas que responderam de uma forma consistente que iam uma a duas vezes
à missa por mês, mas percebemos, quando analisámos o seu perfil, que se tratava
de um comportamento estável, havia uma regularidade.”.
Por isso, a pertença implica “uma realidade que pode ter muitos matizes”. E
quem continua a ter a experiência católica como uma referência, ainda que a
alguma distância, viu agora outras oportunidades de manter “essa memória de
relação com o catolicismo” e de a manter “de uma forma viva”. Porém, o
antropólogo pensa que “não vamos ter necessariamente mais pessoas a ir à missa”
nem menos. E admite que, se as experiências se estruturarem como novas formas
de presença na comunidade, “podemos ter claramente o início de qualquer coisa
diferente”.
A este respeito, diz que, regra geral, a Igreja acompanha as mutações
tecnológicas no quadro da comunicação e que as comunidades religiosas fazem
desde há muito tempo o uso instrumental dos meios de comunicação social e dos
meios digitais. Recorda que, há uns anos, os noticiários abriram com a notícia
de que Bento XVI tinha feito o seu primeiro tweet. Todavia, adverte que “estes
meios não são apenas instrumentos”, antes se constituem como “contextos de
novas formas de relação, novas formas de estabelecer vínculos”, pelo que é
necessário “habitar estes contextos de vida digital”. E isso postula “conhecer
e falar a sua gramática”. Ora, “a experiência que algumas comunidades fizeram
vai ajudar nesta mutação”; e isso, pelo menos em alguns contextos comunitários
e instituições religiosas, “poderá deixar marcas importantes”.
Evocando a experiência de
vivência de momentos inéditos no catolicismo nesta fase (v.g: cerimónias presididas pelo Papa, no Vaticano,
sozinho face à Praça de São Pedro vazia; cerimónias da Páscoa muito diferentes;
e agora o 12 e 13 de maio em Fátima assinalado sem peregrinos), Alfredo Teixeira encara
estas excecionalidades, vividas a partir de
uma linguagem simbólica e inédita, como “uma espécie de metamorfose da
experiência de solidão como experiência de comunhão”. Assim, o impacto das celebrações
de Francisco vinca, no mundo, o facto de “todos se sentirem numa forte comunhão”.
Com efeito, na ótica do entrevistado, aquela celebração, que mostra o
confinamento a que todos estávamos sujeitos, traz “uma densidade de
comunicação, de comunhão”, que terá superado o que teria sucedido “numa
celebração absolutamente normal”, pelo facto de aquele dispositivo ter tido em
concreto “uma relação de grande intimidade com todas as pessoas que estavam a
viver uma experiência semelhante” – “uma experiência universal”. Foi mesmo um
momento determinante e ecuménico, porque teve como mediador não “a explicitação
de uma doutrina ou um código ritual muito estrito”, mas antes “um significado
humano extremamente aberto, que acabou por ter uma importância muito grande”.
Assim, “muitos cristãos, muitos católicos, ao acompanharem aquela celebração,
encontraram, se calhar, aquilo que por vezes está tapado por muitas outras
camadas de acontecimentos e, neste caso, o que encontraram foi a vivência de
uma experiência ritual como comunhão, que é o fulcro da experiência ritual”.
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Refere o entrevistado que o sistema de funeral selecionado para o tempo
duro de confinamento “é uma das situações mais preocupantes”, a que se equipara
a situação dos mais idosos, em particular os que estão em contextos
institucionais de acolhimento” – setores em que “a religião, as comunidades
religiosas têm um papel importante”.
De facto, mesmo nas sociedades secularizadas, “os ritos funerários são, em
muitos casos, os mais persistentes”, porque “de alguma maneira fazem aquilo
mesmo que é suposto um rito fazer, que é preencher simbolicamente, através de
uma linguagem recebida”. São momentos críticos para os quais “não temos
palavras, não temos gestos, e as formas comunitárias de vivência desse momento,
que, em muitos casos, são formas muito enraizadas nas tradições religiosas,
acabaram por ver grande parte dos seus recursos desfeitos”. Por isso, o
antropólogo pensa que as famílias no contexto de perda viveram o problema com
uma particular dificuldade “que deve ser acompanhada” e supõe que as
comunidades de pertença religiosa não puderam ter feito, ou não fizeram “tudo
aquilo que, se calhar, mesmo assim, seria possível fazer”.
Entende que a
obrigatoriedade do uso da máscara nas celebrações religiosas “será, com certeza, uma experiência de grande
estranhamento”. Não faz parte da cultura ocidental e, por outro lado, “os
contextos de reunião comunitária, os contextos celebrativos são, atualmente,
contextos de reconhecimento”. E explica o antropólogo:
“As pessoas vão a uma determinada
comunidade, frequentam uma determinada celebração, porque se querem encontrar
com os outros, querem encontrar determinadas pessoas. O reconhecimento a partir
do rosto, essa expressividade, é de facto muito interessante.”.
E conta como, no âmbito duma investigação, viu como numa assembleia
litúrgica dominical – “um contexto que aparece em muitos casos muito formal,
muito hierático” –, havia “uma comunicação expressiva, informal, entre as
pessoas a partir de pequenos gestos, em muitos casos, uma comunicação através
do rosto” tinha “um impacto muito grande nas pessoas”.
Portanto, julga que a obrigatoriedade do uso da máscara em contexto
celebrativo “será uma aprendizagem que todos irão fazer, mas certamente uma
aprendizagem difícil”.
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Questionado quanto à investigação das
consequências do confinamento noutras religiões, como a muçulmana, no momento
do Ramadão, diz que “há algumas iniciativas”, sendo que “um dos centros
de estudos da Faculdade de Teologia, o CITER, propôs precisamente – no recente
concurso da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – um projeto que visa
perceber algumas transformações que esta experiência pode ter desencadeado na
vivência do religioso”. Contudo, avisa que “ninguém tem ainda muita capacidade
de fazer um retrato”. E discorre:
“Há muitos imaginários religiosos, muitas
narrativas que, no passado, foram construídas em contextos críticos, como este (…),
de uma forte experiência de vulnerabilidade humana (…) de forte elaboração
simbólica, sob o ponto de vista religioso. A sociedade em que vivemos, no
entanto, é desse ponto de vista uma sociedade diferente, em que a religião não
tem a capacidade de ser o centro da cultura ou de ser o único centro da
cultura, como foi no passado. Portanto, é preciso não perdermos de vista que a
sociedade em que vivemos é uma sociedade que vive numa cultura onde as
propostas de sentido, as dinâmicas sociais são plurais.”.
Salienta que as pessoas têm “uma forte confiança nos resultados do trabalho
dos cientistas”, mormente acerca das expectativas do encontro de tratamentos ou
possivelmente duma vacina e que há “um forte investimento, porque vivemos numa
sociedade de mercado, onde também a ciência fica envolvida”. Não se centram só
na resposta religiosa. Porém, embora essencial, a resposta de caráter
científico-tecnológico seria superficial. E o investigador vinca:
“É muito importante observar, neste período,
a importância que a cultura, as artes, os discursos, as narrativas tiveram.
Penso, por exemplo, desde jornalistas que tiveram enorme protagonismo, nalguns
formatos informativos em que criaram narrativas, discursos, que no fundo
visavam interpretar e propor sentidos para a realidade que vivemos; penso na
quantidade de iniciativas musicais e outras, que preencheram os nossos
quotidianos; na própria televisão tivemos espaços noticiosos a abrir com
canções feitas em confinamento.”.
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Por fim, Alfredo Teixeira, afirma que este é um tempo que mostra “a
complexidade das nossas referências culturais”, de forma que “não encontramos
resposta para a nossa vida apenas num único lugar, num único contexto”, vindo a
inscrever-se nessa complexidade “os indivíduos, os grupos, as comunidades, pelo
que, falar-se hoje, por exemplo, numa dialética entre religião e ciência, será descabido,
pois o que as pessoas procuram é “uma resposta plural para aquilo que vivem, na
sua complexidade, e que não pode ser resolvido apenas numa dimensão”.
E conclui que, embora venha aí “uma vacina ou um tratamento eficaz”, resta
a interrogação sobre o que vivemos e como o vivemos e sobre o significado da
“morte de todos aqueles que, para muita gente, são próximos”, “uma morte vivida
em circunstâncias inéditas” – “situações que nos mostram que a resposta para
estes problemas é uma resposta sempre polifónica, porque nós próprios somos, de
facto, seres polifónicos”.
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Valerá a pena refletir sobre tudo isto para nos repensarmos.
2020.05.08 – Louro de Carvalho
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