sexta-feira, 8 de maio de 2020

Polifónicos, relacionamo-nos e vinculamo-nos de formas diferentes


É uma das conclusões que o antropólogo e investigador Alfredo Teixeira tira da análise que faz às transformações que o isolamento social motivado pela pandemia trouxe à vivência da fé, admitindo que há dinâmicas de comunicação que vão deixar “marcas importantes” e apontando como “uma das zonas mais sombrias” da atual experiência a impossibilidade de cumprir os ritos fúnebres no modo usual segundo a tradição dos povos.

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Em entrevista à “Renascença” e à “Ecclesia”, publicada neste dia 8 de maio, começa por considerar que, por consequência da pandemia da Covid-19, “nem o mundo se vai alterar de uma forma absolutamente radical”, nem se nega que a crise deixará “marcas em particular nestas gerações que a estão a viver”, sendo que algumas coisas “irão permanecer como rastos e uma transformação de comportamentos” e outras, que resultaram de ajustes circunstanciais “num clima de normalidade, voltarão a ser reajustadas”.
Questionado sobre o que permanecerá, observou que “as pessoas estão a descobrir que se podem relacionar e vincular de formas diferentes” e que, por outro lado, o que a geração dos nativos digitais conhecia como “formas de presencialidade através do contínuo tecnológico” está muito mais partilhado. Não obstante, chama a atenção para a diferença de comportamentos das diferentes gerações para com os meios digitais, exemplificando:   
Os avós beijam o ecrã do telemóvel, enviam beijos aos seus netos, ou acariciam o ecrã do tablet para ficcionar um contacto que presencialmente não existe”.
E traz à tona os contextos de trabalho “em que as pessoas fizeram a experiência clara de que é possível trabalhar doutra maneira e, por vezes, melhor”. É o caso do teletrabalho, ora promovido de forma quase generalizada, bem como as experiências feitas no campo religioso, com as celebrações e catequeses à distância. Na verdade, como diz, “a situação de crise provoca experiências que, na medida em que as pessoas as descobrirem como uma possibilidade, como uma vantagem para vários aspetos da sua vida, incluindo a sua vida religiosa, podem potenciar essas experiências no futuro e promover ajustes naquilo que é a sua experiência social”.
Tendo em conta que o Inquérito sobre as Identidades Religiosas em Portugal’, que o antropólogo dirigiu em 2011, apontava para uma transformação nas formas de pertença dos fiéis e para a progressiva valorização da lógica de afirmação individual e familiar, os entrevistadores quiseram saber se a crise acentuará essa tendência.
E o antropólogo diz considerar que as pessoas mais estruturadas pela valorização preferencial da iniciativa pessoal “estavam mais preparadas para enfrentar uma situação como esta”, pelo que podem acentuar essa postura. Porém, parece-lhe difícil que “as pessoas com uma religiosidade mais tradicional venham a alterar profundamente o seu comportamento” no fim desta crise.
Descarta a ideia de estarmos a viver “uma mutação civilizacional”, que não acontece “com esta rapidez”. Além disso, as sociedades, desde que existem, “têm vivido crises deste tipo”. Por falta de memória, esquecemos que “estas situações críticas de epidemias, de pandemias, acontecem à humanidade desde que nos conhecemos”. É certo que “deixam marcas”, mas “somos a mesma humanidade que procurou encontrar respostas para estes acontecimentos”.
E o entrevistado frisa que as pessoas que vivem uma religiosidade comunitariamente mais vinculada sentem agora “uma espécie de diáspora, de um certo sentimento de exílio espiritual”, mas “na expectativa de voltarem a reatar esses laços assim que puderem”. No entanto, releva “o problema da casa e da família”, havendo “uma diferença substancial entre as comunidades em que a identidade religiosa está muito vinculada a uma identidade familiar”, o que sucede no contexto islâmico, onde parte das observâncias é “doméstica e familiar”, ou em alguns contextos evangélicos, onde a identidade religiosa se estrutura a partir da identidade familiar (pai, mãe e filhos). Nestes casos, como refere Alfredo Teixeira, esta situação crítica deu possibilidade às pessoas de se reverem numa religião mais vinculada à casa e à família.
Sobre a teoria da redescoberta, o antropólogo admite-a no contexto católico e como “o aspeto mais interessante de observar”. E, advertindo que não temos dados para uma avaliação global disto, assinala que a experiência mostra que “algumas famílias fizeram coisas que nunca tinham feito em casa, uma espécie de liturgia das casas, que passou por este trazer da experiência cristã, mesmo na sua dimensão de oração comum, para dentro de casa” – marca da génese do próprio cristianismo, o que se vê nas comunidades paulinas. Todavia, “por razões históricas”, que levaram a amplas transformações na sociedade, as últimas décadas acentuaram “a dinâmica da religião do indivíduo” e algumas dinâmicas pastorais atenderam muito a essa dimensão, “desvalorizando a religião da família ou a possibilidade de a religião se viver em família”. Assim, alguns contextos católicos permitem falar duma verdadeira redescoberta.
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No atinente à frequência da missa dominical, cada vez mais diminuta, sendo que muitos padres garantem que “nunca tiveram tanta gente a participar na missa na igreja” como agora a acompanhar as celebrações pelos meios digitais, o investigador afasta a exclusividade desta postura direcional e fala em regularidade com medidas diferentes:
Uma das coisas que estudei em 2011/2012 foi, precisamente, verificar que há católicos que recompõem a sua regularidade (em ir à missa) num quadro que não é o que a instituição esperaria. Ou seja, houve pessoas que responderam de uma forma consistente que iam uma a duas vezes à missa por mês, mas percebemos, quando analisámos o seu perfil, que se tratava de um comportamento estável, havia uma regularidade.”.
Por isso, a pertença implica “uma realidade que pode ter muitos matizes”. E quem continua a ter a experiência católica como uma referência, ainda que a alguma distância, viu agora outras oportunidades de manter “essa memória de relação com o catolicismo” e de a manter “de uma forma viva”. Porém, o antropólogo pensa que “não vamos ter necessariamente mais pessoas a ir à missa” nem menos. E admite que, se as experiências se estruturarem como novas formas de presença na comunidade, “podemos ter claramente o início de qualquer coisa diferente”.
A este respeito, diz que, regra geral, a Igreja acompanha as mutações tecnológicas no quadro da comunicação e que as comunidades religiosas fazem desde há muito tempo o uso instrumental dos meios de comunicação social e dos meios digitais. Recorda que, há uns anos, os noticiários abriram com a notícia de que Bento XVI tinha feito o seu primeiro tweet. Todavia, adverte que “estes meios não são apenas instrumentos”, antes se constituem como “contextos de novas formas de relação, novas formas de estabelecer vínculos”, pelo que é necessário “habitar estes contextos de vida digital”. E isso postula “conhecer e falar a sua gramática”. Ora, “a experiência que algumas comunidades fizeram vai ajudar nesta mutação”; e isso, pelo menos em alguns contextos comunitários e instituições religiosas, “poderá deixar marcas importantes”.
Evocando a experiência de vivência de momentos inéditos no catolicismo nesta fase (v.g: cerimónias presididas pelo Papa, no Vaticano, sozinho face à Praça de São Pedro vazia; cerimónias da Páscoa muito diferentes; e agora o 12 e 13 de maio em Fátima assinalado sem peregrinos), Alfredo Teixeira encara estas excecionalidades, vividas a partir de uma linguagem simbólica e inédita, como “uma espécie de metamorfose da experiência de solidão como experiência de comunhão”. Assim, o impacto das celebrações de Francisco vinca, no mundo, o facto de “todos se sentirem numa forte comunhão”. Com efeito, na ótica do entrevistado, aquela celebração, que mostra o confinamento a que todos estávamos sujeitos, traz “uma densidade de comunicação, de comunhão”, que terá superado o que teria sucedido “numa celebração absolutamente normal”, pelo facto de aquele dispositivo ter tido em concreto “uma relação de grande intimidade com todas as pessoas que estavam a viver uma experiência semelhante” – “uma experiência universal”. Foi mesmo um momento determinante e ecuménico, porque teve como mediador não “a explicitação de uma doutrina ou um código ritual muito estrito”, mas antes “um significado humano extremamente aberto, que acabou por ter uma importância muito grande”. Assim, “muitos cristãos, muitos católicos, ao acompanharem aquela celebração, encontraram, se calhar, aquilo que por vezes está tapado por muitas outras camadas de acontecimentos e, neste caso, o que encontraram foi a vivência de uma experiência ritual como comunhão, que é o fulcro da experiência ritual”.
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Refere o entrevistado que o sistema de funeral selecionado para o tempo duro de confinamento “é uma das situações mais preocupantes”, a que se equipara a situação dos mais idosos, em particular os que estão em contextos institucionais de acolhimento” – setores em que “a religião, as comunidades religiosas têm um papel importante”.
De facto, mesmo nas sociedades secularizadas, “os ritos funerários são, em muitos casos, os mais persistentes”, porque “de alguma maneira fazem aquilo mesmo que é suposto um rito fazer, que é preencher simbolicamente, através de uma linguagem recebida”. São momentos críticos para os quais “não temos palavras, não temos gestos, e as formas comunitárias de vivência desse momento, que, em muitos casos, são formas muito enraizadas nas tradições religiosas, acabaram por ver grande parte dos seus recursos desfeitos”. Por isso, o antropólogo pensa que as famílias no contexto de perda viveram o problema com uma particular dificuldade “que deve ser acompanhada” e supõe que as comunidades de pertença religiosa não puderam ter feito, ou não fizeram “tudo aquilo que, se calhar, mesmo assim, seria possível fazer”.
Entende que a obrigatoriedade do uso da máscara nas celebrações religiosas “será, com certeza, uma experiência de grande estranhamento”. Não faz parte da cultura ocidental e, por outro lado, “os contextos de reunião comunitária, os contextos celebrativos são, atualmente, contextos de reconhecimento”. E explica o antropólogo:
As pessoas vão a uma determinada comunidade, frequentam uma determinada celebração, porque se querem encontrar com os outros, querem encontrar determinadas pessoas. O reconhecimento a partir do rosto, essa expressividade, é de facto muito interessante.”.
E conta como, no âmbito duma investigação, viu como numa assembleia litúrgica dominical – “um contexto que aparece em muitos casos muito formal, muito hierático” –, havia “uma comunicação expressiva, informal, entre as pessoas a partir de pequenos gestos, em muitos casos, uma comunicação através do rosto” tinha “um impacto muito grande nas pessoas”.
Portanto, julga que a obrigatoriedade do uso da máscara em contexto celebrativo “será uma aprendizagem que todos irão fazer, mas certamente uma aprendizagem difícil”.
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Questionado quanto à investigação das consequências do confinamento noutras religiões, como a muçulmana, no momento do Ramadão, diz que “há algumas iniciativas”, sendo que “um dos centros de estudos da Faculdade de Teologia, o CITER, propôs precisamente – no recente concurso da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – um projeto que visa perceber algumas transformações que esta experiência pode ter desencadeado na vivência do religioso”. Contudo, avisa que “ninguém tem ainda muita capacidade de fazer um retrato”. E discorre:
Há muitos imaginários religiosos, muitas narrativas que, no passado, foram construídas em contextos críticos, como este (…), de uma forte experiência de vulnerabilidade humana (…) de forte elaboração simbólica, sob o ponto de vista religioso. A sociedade em que vivemos, no entanto, é desse ponto de vista uma sociedade diferente, em que a religião não tem a capacidade de ser o centro da cultura ou de ser o único centro da cultura, como foi no passado. Portanto, é preciso não perdermos de vista que a sociedade em que vivemos é uma sociedade que vive numa cultura onde as propostas de sentido, as dinâmicas sociais são plurais.”.
Salienta que as pessoas têm “uma forte confiança nos resultados do trabalho dos cientistas”, mormente acerca das expectativas do encontro de tratamentos ou possivelmente duma vacina e que há “um forte investimento, porque vivemos numa sociedade de mercado, onde também a ciência fica envolvida”. Não se centram só na resposta religiosa. Porém, embora essencial, a resposta de caráter científico-tecnológico seria superficial. E o investigador vinca:
É muito importante observar, neste período, a importância que a cultura, as artes, os discursos, as narrativas tiveram. Penso, por exemplo, desde jornalistas que tiveram enorme protagonismo, nalguns formatos informativos em que criaram narrativas, discursos, que no fundo visavam interpretar e propor sentidos para a realidade que vivemos; penso na quantidade de iniciativas musicais e outras, que preencheram os nossos quotidianos; na própria televisão tivemos espaços noticiosos a abrir com canções feitas em confinamento.”.
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Por fim, Alfredo Teixeira, afirma que este é um tempo que mostra “a complexidade das nossas referências culturais”, de forma que “não encontramos resposta para a nossa vida apenas num único lugar, num único contexto”, vindo a inscrever-se nessa complexidade “os indivíduos, os grupos, as comunidades, pelo que, falar-se hoje, por exemplo, numa dialética entre religião e ciência, será descabido, pois o que as pessoas procuram é “uma resposta plural para aquilo que vivem, na sua complexidade, e que não pode ser resolvido apenas numa dimensão”.
E conclui que, embora venha aí “uma vacina ou um tratamento eficaz”, resta a interrogação sobre o que vivemos e como o vivemos e sobre o significado da “morte de todos aqueles que, para muita gente, são próximos”, “uma morte vivida em circunstâncias inéditas” – “situações que nos mostram que a resposta para estes problemas é uma resposta sempre polifónica, porque nós próprios somos, de facto, seres polifónicos”.
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Valerá a pena refletir sobre tudo isto para nos repensarmos.
2020.05.08 – Louro de Carvalho

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