Desde o dia 14 de março,
têm estado suspensas as celebrações litúrgicas e paralitúrgicas com a
participação física e coletiva do povo, embora, pela natureza das coisas as
celebrações litúrgicas sejam sempre comunitárias e públicas. Entretanto, este
fim de semana, a marcar a Solenidade do Pentecostes, estão de volta com a
participação física de povo, observado um conjunto de normas estabelecidas pela
CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) em articulação com a DGS (Direção-Geral da Saúde), que sustenta a manutenção do
distanciamento social.
Por seu turno, cada diocese publicou orientações específicas, mas que não
deixam de replicar as normas gerais, como a obrigatoriedade do uso de máscara,
tal como como a higiene de mãos antes de entrar no espaço litúrgico e a
possibilidade de utilização de espaços ao ar livre ou da distribuição da
possibilidade do cumprimento do preceito pelos diversos dias da semana,
sobretudo para as pessoas que integrem grupos de risco.
A esta problemática se refere Dom José Cordeiro, Bispo da Diocese de
Bragança-Miranda e presidente da Comissão Episcopal da Liturgia e
Espiritualidade, em entrevista à Renascença
e à Ecclesia, publicada neste
dia 29 de maio.
***
O entrevistado considera a retoma como “o grito e o canto do Aleluia
em tempo de Pentecostes, na conclusão destes 50 dias da Páscoa” a par dos
sentimentos de confiança e serenidade, sendo que, mesmo na implementação das
orientações da CEP e das dioceses, as palavras vão no sentido “do bom senso, da
fé, da coerência com outras atitudes outros gestos, outros habitats deste tempo
em que vivemos”.
Pensa que as condicionantes veiculadas por tais orientações não
descaraterizam a celebração, pois a Liturgia “é obra em ato” e “há de ser o
momento da celebração desse mesmo Mistério, de uma maneira séria, bela, simples”,
mesmo em regime de “exceção” temporária, que se espera breve. E, citando São
João Bosco, diz que, para sermos “bons cristãos e honestos cidadãos”,
precisamos de ter em conta “a nossa saúde e a dos outros, a saúde pública, o
bem comum”.
Questionado sobre a não
coincidência do regresso das celebrações coletivas com a 1.ª fase do
desconfinamento, a 3 de maio, sustenta:
“Era bom que acontecesse durante o tempo
pascal e felizmente isso acontece, ainda que nos dois últimos dias, para se
celebrar dignamente e com a solenidade possível a Páscoa, porque muitos dos
nossos irmãos e irmãs não tiveram essa possibilidade – outros, se calhar já em
razão da participação em exéquias, outros momentos mais confinados, puderam
fazê-lo – tiveram de acompanhar através dos meios de comunicação social, mas
sem aquela presença efetiva e afetiva.”.
Assente que todos queríamos que acontecesse mais cedo e revela que as
orientações da CEP “estavam prontas e foram aprovadas no dia 8 de maio”, mas as
circunstâncias do contexto impõem prudência e segurança e era de “começar, como
corpo, conjuntamente”. E opina que, se não se pode sofrer “com alegria”, que se
sofra “com paciência”, explicando:
“Isto também conta para que nós nos sintamos
ainda mais verdadeiramente membros de um corpo, que tem Cristo como cabeça.
Isto não é uma questão de ritos, é uma questão decisiva, vital, não é
exclusiva, como vimos neste tempo – em que encontramos outras formas de oração
familiar, pessoal, comunitária –, mas nós não vivemos sem a Liturgia, o mesmo é
dizer: não podemos viver sem a Eucaristia. Porque, sem ela, não existe Igreja.”.
Sobre o modo como antevê o
que se passará nos primeiros dias deste desconfinamento celebrativo, atém-se ao
que prevê para a sua diocese. Tendo celebrado a Missa Crismal (própria da manhã de Quinta-feira Santa) no dia 22 de maio e conversando com o seu presbitério, houve partilha de “preocupações,
incertezas”, mas emergiu a esperança de que tudo “acontecerá com calma, serenidade,
porque as pessoas têm uma grande consciência da gravidade da situação que
estamos a viver”, em parte provocada por “uma psicologia do medo, que foi em
crescendo”. E, sabendo que “as
orientações estão a ser implementadas nas igrejas”, há “todas as razões para
celebrar com a melhor dignidade possível, com a solenidade possível, a
plenitude da Páscoa que acontece no Pentecostes”, bem como “o encerramento do
mês de maio, que para nós é tão significativo, o mês da Mãe”. Neste caso, diz o
prelado, terá de haver mais cautela nas possíveis manifestações de rua,
dialogando com “as autoridades civis, de segurança, sanitárias, para que não se
facilite, não se corram riscos, mas que não se deixe de celebrar por medo ao
medo”.
Quanto às pessoas que não
possam ter acesso porque se lotou a capacidade do espaço litúrgico, fala apenas
da sua diocese, embora os bispos venham a ter possibilidade de partilhar na
CEP. Assim, está tudo preparado para a multiplicação
do maior número possível de Missas. Nas aldeias não há dificuldade; no atinente
a cidades e vilas, pensa-se nas “celebrações ao ar livre, com as medidas
necessárias, porque a celebração é um ato gratuito”, pois não se pode dizer a
alguém que não tem lugar; e descarta a distribuição dos crentes pelas missas da
semana.
No respeitante à comunhão e
ser obrigatoriamente recebida na mão e com todos os cuidados prescritos nas
normas, refere que as 79 orientações da CEP “são uma espécie linhas-guia” e “devem ser aplicadas em cada diocese”, sendo
que o responsável é o bispo, o primeiro liturgo da diocese. Sendo exceção à
regra, “não devemos tomá-las
demasiadamente à letra, a não ser aquelas que falam de perigos à saúde dos
outros”. E afirma perentoriamente:
“Quanto à questão da Comunhão, o
importante é que ela exista, a Comunhão com Cristo, não é a questão da forma e
do modo de a fazer”.
Sendo a indicação da CEP de que a comunhão é para ser na mão, nem por isso,
“se alguém aparecer – porque há algumas pessoas que insistem, pela sua formação
– terá de haver maiores cuidados”, “mas ninguém deixará de receber a Comunhão”.
E adverte:
“Todos têm acesso à Comunhão e isso exigirá
um maior esforço. Agora, nós temos de ser corresponsáveis, cada um tem de tomar
isto muito a sério, se calhar nunca se apelou tanto à responsabilidade de cada
um como agora. Não é uma questão de alteração, não muda em nada a substância
e esperamos que não se criem outros ritos, nem se criem outras formas nestas
celebrações, porque alguns querem ir muito para além do que está
indicado; outros querem ficar muito aquém. Tem de se criar uma harmonia e,
sobretudo, o tal bom senso humano e pastoral.”.
Interpelado sobre uma
possível quebra da independência da Igreja, presente na articulação com as
autoridades, nomeadamente tendo em conta os cartazes da DGS, esclarece:
“Desde o início da pandemia (…), dissemos
que estávamos na inteira colaboração recíproca com as autoridades civis,
sanitárias (…). Não há aqui nenhuma interferência de nada nem de ninguém,
os cartazes são meramente indicativos, porque depois cada um, nas suas dioceses
e nas suas paróquias (…), faz a adaptação, com os logótipos, por exemplo. Está
aqui em causa um diálogo para um bem maior.”.
O bem maior de que fala é a luta “pelo bem comum, pela dignidade integral
da pessoa humana” e “que ninguém se contagie no âmbito de uma celebração
litúrgica comunitária”, mas “que as celebrações sejam contagiantes de luz, de
verdade, de paz”.
Compreendendo o desgaste e a perspetiva de querer recomeçar mais cedo, salienta
que “vamos começar de novo”, o que “exige de todos uma atitude de conversão”,
e, caso a caso, “resolvem-se os problemas, mas tinha de haver estas linhas-guia”.
Em relação à Solenidade do
Corpo de Deus, à celebração dos santos populares com muitas manifestações de
rua, aponta a necessidade de vigilância de “uns com os outros, no verdadeiro e autêntico sentido de cuidar uns dos
outros”. Importa apelar à criatividade e não querer fazer as festas e
procissões, as expressões da piedade popular, “mas sem deixar de as fazer”. Por
isso, o prelado bragançano pensa no diálogo “com autoridades civis e forças de
segurança” em nome da “coesão social” e da “coesão territorial”, pois, “com
segurança, com dignidade, com a solenidade possível”, tais manifestações podem
e até devem ser feitas. E justifica:
“Vivemos de símbolos e sabemos que, ao longo
da história, o medo criou deuses. Se nós perdemos a nossa identidade, mesmo em
tempo de tempestade, e não confiamos naquele que está no meio de nós, que está
de igual modo com todos, se Ele estiver no meio, se isto for por causa da nossa
adesão, pela vida em Cristo, há de celebrar-se com a dignidade e a solenidade
possível, em coerência com outras coisas da vida quotidiana que já estão a
acontecer.”.
À objeção de que a CEP
mantém suspensas as peregrinações, procissões, festas, romarias, responde com o
segmento textual que ela plasmou: “até novas orientações”.
Tais orientações serão
definidas localmente ou pela CEP, não se podendo seguir “a lógica do não”, mas a de “um sim responsável,
criativo, de vida”. Por exemplo, na Catedral de Bragança, haverá procissão do
Corpo e Deus, “mas internamente”; e, na aldeia eucarística, que originou um
Instituto de Vida Consagrada com o carisma da Eucaristia, há modo de a fazer, “saindo
por exemplo só o pálio com a custódia, transportada com as luvas e as máscaras;
e as outras pessoas, terminada a Eucaristia, vão para as suas casas, participando
desde as janelas e portas”.
E faz um esclarecimento muito oportuno:
“É bom dizer que as celebrações que foram
realizadas, todas, foram um ato da comunidade, porque não há celebrações
privadas, a Liturgia é sempre um ato da comunidade, porque é sempre uma obra de
Cristo e da Igreja, no seu todo, não é só daqueles que têm aquele privilégio ou
aquela graça de terem celebrado em pequenos grupos (…). É também uma
oportunidade única de formação litúrgica, de educação no verdadeiro sentido da
nossa pertença e da participação nesta Boa Notícia, que é Cristo, e não
querermos ficar de fora.”.
Quanto aos casamentos, sem dirimir a questão se
o adiamento tem uma razão de fé ou social, frisa que as orientações da CEP se
referem aos sacramentos e sacramentais, sendo
o adiamento motivado pelo contexto da pandemia, não fazendo sentido se ela
passar em breve. Assim se compreende que algumas pessoas tenham mantido a
celebração do Batismo e do Matrimónio, pois “não deveremos nunca embarcar numa
ansiedade ou no pânico, que depois nos limita e nos torna reféns de não
sei bem o quê, desses tais outros deuses que podemos estar a criar”.
Tendo o Batismo, a Primeira Comunhão e o Matrimónio passado a
ser atos sociais, é difícil saber o que é o mais importante para as pessoas, “se
a celebração da fé ou o ato social”, mas “temos de colocar estas questões no
sentido mais profundo da vida”.
E o Bispo, vincando que “todos os sacramentos e sacramentais podem ser
celebrados, seguindo estas linhas-guia, salvaguardando a saúde pública, o bem
comum, a dignidade da pessoa humana”, acredita que o tempo de pandemia “foi um
grande teste à nossa fé” e é normal que as reações à suspensão das celebrações
tenham sido diversas, segundo a sensibilidade das pessoas, mas, em geral, compreendeu-se
que “estamos todos no mesmo barco”. Tendo-se optado pela salvação de todos, “os
caminhos da prudência, do especial cuidado de todos e de cada um, sobretudo dos
mais frágeis, daqueles que estão mais em risco” deverão continuar a nortear a
nossa ação, sendo que todos queríamos que o regresso das celebrações ocorresse
mais cedo. Mas a fé é o risco maior da vida e é importante para nós celebrá-la condigna
e serenamente. E, nestes tempos, houve “tantas coisas belas na Igreja”, pelo
que Erri De Luca aconselha a todos: “Sê
obsessivamente grato”. É a gratidão pelos dons da vida e da fé e por tudo o
que de belo se realiza em nós e entre nós.
E o Bispo faz votos por que a pandemia seja contagiante do que a Liturgia
celebra, Cristo.
2020.05.29 –
Louro de Carvalho
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