sexta-feira, 29 de maio de 2020

Após o teste à fé azado pelo confinamento, volta a celebração coletiva


Desde o dia 14 de março, têm estado suspensas as celebrações litúrgicas e paralitúrgicas com a participação física e coletiva do povo, embora, pela natureza das coisas as celebrações litúrgicas sejam sempre comunitárias e públicas. Entretanto, este fim de semana, a marcar a Solenidade do Pentecostes, estão de volta com a participação física de povo, observado um conjunto de normas estabelecidas pela CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) em articulação com a DGS (Direção-Geral da Saúde), que sustenta a manutenção do distanciamento social. 
Por seu turno, cada diocese publicou orientações específicas, mas que não deixam de replicar as normas gerais, como a obrigatoriedade do uso de máscara, tal como como a higiene de mãos antes de entrar no espaço litúrgico e a possibilidade de utilização de espaços ao ar livre ou da distribuição da possibilidade do cumprimento do preceito pelos diversos dias da semana, sobretudo para as pessoas que integrem grupos de risco.
A esta problemática se refere Dom José Cordeiro, Bispo da Diocese de Bragança-Miranda e presidente da Comissão Episcopal da Liturgia e Espiritualidade, em entrevista à Renascença e à Ecclesia, publicada neste dia 29 de maio.
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O entrevistado considera a retoma como “o grito e o canto do Aleluia em tempo de Pentecostes, na conclusão destes 50 dias da Páscoa” a par dos sentimentos de confiança e serenidade, sendo que, mesmo na implementação das orientações da CEP e das dioceses, as palavras vão no sentido “do bom senso, da fé, da coerência com outras atitudes outros gestos, outros habitats deste tempo em que vivemos”.
Pensa que as condicionantes veiculadas por tais orientações não descaraterizam a celebração, pois a Liturgia “é obra em ato” e “há de ser o momento da celebração desse mesmo Mistério, de uma maneira séria, bela, simples”, mesmo em regime de “exceção” temporária, que se espera breve. E, citando São João Bosco, diz que, para sermos “bons cristãos e honestos cidadãos”, precisamos de ter em conta “a nossa saúde e a dos outros, a saúde pública, o bem comum”.
Questionado sobre a não coincidência do regresso das celebrações coletivas com a 1.ª fase do desconfinamento, a 3 de maio, sustenta:
Era bom que acontecesse durante o tempo pascal e felizmente isso acontece, ainda que nos dois últimos dias, para se celebrar dignamente e com a solenidade possível a Páscoa, porque muitos dos nossos irmãos e irmãs não tiveram essa possibilidade – outros, se calhar já em razão da participação em exéquias, outros momentos mais confinados, puderam fazê-lo – tiveram de acompanhar através dos meios de comunicação social, mas sem aquela presença efetiva e afetiva.”.
Assente que todos queríamos que acontecesse mais cedo e revela que as orientações da CEP “estavam prontas e foram aprovadas no dia 8 de maio”, mas as circunstâncias do contexto impõem prudência e segurança e era de “começar, como corpo, conjuntamente”. E opina que, se não se pode sofrer “com alegria”, que se sofra “com paciência”, explicando:
Isto também conta para que nós nos sintamos ainda mais verdadeiramente membros de um corpo, que tem Cristo como cabeça. Isto não é uma questão de ritos, é uma questão decisiva, vital, não é exclusiva, como vimos neste tempo – em que encontramos outras formas de oração familiar, pessoal, comunitária –, mas nós não vivemos sem a Liturgia, o mesmo é dizer: não podemos viver sem a Eucaristia. Porque, sem ela, não existe Igreja.”.
Sobre o modo como antevê o que se passará nos primeiros dias deste desconfinamento celebrativo, atém-se ao que prevê para a sua diocese. Tendo celebrado a Missa Crismal (própria da manhã de Quinta-feira Santa) no dia 22 de maio e conversando com o seu presbitério, houve partilha de “preocupações, incertezas”, mas emergiu a esperança de que tudo “acontecerá com calma, serenidade, porque as pessoas têm uma grande consciência da gravidade da situação que estamos a viver”, em parte provocada por “uma psicologia do medo, que foi em crescendo”. E, sabendo que as orientações estão a ser implementadas nas igrejas”, há “todas as razões para celebrar com a melhor dignidade possível, com a solenidade possível, a plenitude da Páscoa que acontece no Pentecostes”, bem como “o encerramento do mês de maio, que para nós é tão significativo, o mês da Mãe”. Neste caso, diz o prelado, terá de haver mais cautela nas possíveis manifestações de rua, dialogando com “as autoridades civis, de segurança, sanitárias, para que não se facilite, não se corram riscos, mas que não se deixe de celebrar por medo ao medo”.
Quanto às pessoas que não possam ter acesso porque se lotou a capacidade do espaço litúrgico, fala apenas da sua diocese, embora os bispos venham a ter possibilidade de partilhar na CEP. Assim, está tudo preparado para a multiplicação do maior número possível de Missas. Nas aldeias não há dificuldade; no atinente a cidades e vilas, pensa-se nas “celebrações ao ar livre, com as medidas necessárias, porque a celebração é um ato gratuito”, pois não se pode dizer a alguém que não tem lugar; e descarta a distribuição dos crentes pelas missas da semana.  
No respeitante à comunhão e ser obrigatoriamente recebida na mão e com todos os cuidados prescritos nas normas, refere que as 79 orientações da CEP “são uma espécie linhas-guia” e “devem ser aplicadas em cada diocese”, sendo que o responsável é o bispo, o primeiro liturgo da diocese. Sendo exceção à regra, “não devemos tomá-las demasiadamente à letra, a não ser aquelas que falam de perigos à saúde dos outros”. E afirma perentoriamente:
Quanto à questão da Comunhão, o importante é que ela exista, a Comunhão com Cristo, não é a questão da forma e do modo de a fazer”.
Sendo a indicação da CEP de que a comunhão é para ser na mão, nem por isso, “se alguém aparecer – porque há algumas pessoas que insistem, pela sua formação – terá de haver maiores cuidados”, “mas ninguém deixará de receber a Comunhão”. E adverte:
Todos têm acesso à Comunhão e isso exigirá um maior esforço. Agora, nós temos de ser corresponsáveis, cada um tem de tomar isto muito a sério, se calhar nunca se apelou tanto à responsabilidade de cada um como agora. Não é uma questão de alteração, não muda em nada a substância e esperamos que não se criem outros ritos, nem se criem outras formas nestas celebrações, porque alguns querem ir muito para além do que está indicado; outros querem ficar muito aquém. Tem de se criar uma harmonia e, sobretudo, o tal bom senso humano e pastoral.”.
Interpelado sobre uma possível quebra da independência da Igreja, presente na articulação com as autoridades, nomeadamente tendo em conta os cartazes da DGS, esclarece:
Desde o início da pandemia (…), dissemos que estávamos na inteira colaboração recíproca com as autoridades civis, sanitárias (…). Não há aqui nenhuma interferência de nada nem de ninguém, os cartazes são meramente indicativos, porque depois cada um, nas suas dioceses e nas suas paróquias (…), faz a adaptação, com os logótipos, por exemplo. Está aqui em causa um diálogo para um bem maior.”.
O bem maior de que fala é a luta “pelo bem comum, pela dignidade integral da pessoa humana” e “que ninguém se contagie no âmbito de uma celebração litúrgica comunitária”, mas “que as celebrações sejam contagiantes de luz, de verdade, de paz”.
Compreendendo o desgaste e a perspetiva de querer recomeçar mais cedo, salienta que “vamos começar de novo”, o que “exige de todos uma atitude de conversão”, e, caso a caso, “resolvem-se os problemas, mas tinha de haver estas linhas-guia”.
Em relação à Solenidade do Corpo de Deus, à celebração dos santos populares com muitas manifestações de rua, aponta a necessidade de vigilância de “uns com os outros, no verdadeiro e autêntico sentido de cuidar uns dos outros”. Importa apelar à criatividade e não querer fazer as festas e procissões, as expressões da piedade popular, “mas sem deixar de as fazer”. Por isso, o prelado bragançano pensa no diálogo “com autoridades civis e forças de segurança” em nome da “coesão social” e da “coesão territorial”, pois, “com segurança, com dignidade, com a solenidade possível”, tais manifestações podem e até devem ser feitas. E justifica:
Vivemos de símbolos e sabemos que, ao longo da história, o medo criou deuses. Se nós perdemos a nossa identidade, mesmo em tempo de tempestade, e não confiamos naquele que está no meio de nós, que está de igual modo com todos, se Ele estiver no meio, se isto for por causa da nossa adesão, pela vida em Cristo, há de celebrar-se com a dignidade e a solenidade possível, em coerência com outras coisas da vida quotidiana que já estão a acontecer.”.
À objeção de que a CEP mantém suspensas as peregrinações, procissões, festas, romarias, responde com o segmento textual que ela plasmou: até novas orientações”.
Tais orientações serão definidas localmente ou pela CEP, não se podendo seguir “a lógica do não”, mas a de “um sim responsável, criativo, de vida”. Por exemplo, na Catedral de Bragança, haverá procissão do Corpo e Deus, “mas internamente”; e, na aldeia eucarística, que originou um Instituto de Vida Consagrada com o carisma da Eucaristia, há modo de a fazer, “saindo por exemplo só o pálio com a custódia, transportada com as luvas e as máscaras; e as outras pessoas, terminada a Eucaristia, vão para as suas casas, participando desde as janelas e portas”.
E faz um esclarecimento muito oportuno:
É bom dizer que as celebrações que foram realizadas, todas, foram um ato da comunidade, porque não há celebrações privadas, a Liturgia é sempre um ato da comunidade, porque é sempre uma obra de Cristo e da Igreja, no seu todo, não é só daqueles que têm aquele privilégio ou aquela graça de terem celebrado em pequenos grupos (…). É também uma oportunidade única de formação litúrgica, de educação no verdadeiro sentido da nossa pertença e da participação nesta Boa Notícia, que é Cristo, e não querermos ficar de fora.”.
Quanto aos casamentos, sem dirimir a questão se o adiamento tem uma razão de fé ou social, frisa que as orientações da CEP se referem aos sacramentos e sacramentais, sendo o adiamento motivado pelo contexto da pandemia, não fazendo sentido se ela passar em breve. Assim se compreende que algumas pessoas tenham mantido a celebração do Batismo e do Matrimónio, pois “não deveremos nunca embarcar numa ansiedade ou no pânico, que depois nos limita e nos torna reféns de não sei bem o quê, desses tais outros deuses que podemos estar a criar”.
Tendo o Batismo, a Primeira Comunhão e o Matrimónio passado a ser atos sociais, é difícil saber o que é o mais importante para as pessoas, “se a celebração da fé ou o ato social”, mas “temos de colocar estas questões no sentido mais profundo da vida”.
E o Bispo, vincando que “todos os sacramentos e sacramentais podem ser celebrados, seguindo estas linhas-guia, salvaguardando a saúde pública, o bem comum, a dignidade da pessoa humana”, acredita que o tempo de pandemia “foi um grande teste à nossa fé” e é normal que as reações à suspensão das celebrações tenham sido diversas, segundo a sensibilidade das pessoas, mas, em geral, compreendeu-se que “estamos todos no mesmo barco”. Tendo-se optado pela salvação de todos, “os caminhos da prudência, do especial cuidado de todos e de cada um, sobretudo dos mais frágeis, daqueles que estão mais em risco” deverão continuar a nortear a nossa ação, sendo que todos queríamos que o regresso das celebrações ocorresse mais cedo. Mas a fé é o risco maior da vida e é importante para nós celebrá-la condigna e serenamente. E, nestes tempos, houve “tantas coisas belas na Igreja”, pelo que Erri De Luca aconselha a todos: “Sê obsessivamente grato”. É a gratidão pelos dons da vida e da fé e por tudo o que de belo se realiza em nós e entre nós.
E o Bispo faz votos por que a pandemia seja contagiante do que a Liturgia celebra, Cristo.
2020.05.29 – Louro de Carvalho

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