Na
celebração da Missa da Solenidade do Pentecostes a que presidiu no Altar do
Recinto de Oração do Santuário de Fátima com uns milhares de peregrinos, o Cardeal
Dom António Marto, depois de frisar a alegria e emoção por se reencontrar com
os peregrinos, incluindo os mais pequenitos, apontou a coincidência, talvez
providencial, da retoma das celebrações em regime coletivo com a Solenidade do
Pentecostes.
Não
fomos nós quem inventou o confinamento. Com efeito, os apóstolos fizeram essa
dolorosa experiência no Cenáculo após a morte de Jesus, desolados pela “perda”
do Mestre, pelo “fracasso” do projeto em que estavam empenhados, pelo medo – o
medo dos judeus ou o medo de si próprios – e esquecidos do discurso
testamentário de Jesus subsequente à Última Ceia. E, na tarde do dia da
Ressurreição, o Senhor quer provocar o desconfinamento e chamá-los à missão no
Espírito Santo (cf Jo 20,19-23). O Ressuscitado,
portador de vida nova, que nem as portas fechadas do lugar de confinamento
travaram, coloca-Se de pé no meio deles, saúda-os desejando-lhes a paz,
mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o
Crucificado, e vincula-os à missão messiânica, que eles hão de concretizar no
estilo de Jesus: Assim como o
Pai me enviou (apéstalken:
perfeito de apostéllô), assim Eu vos envio (pémpô:
presente).
Os discípulos dissiparam o medo e ficaram cheios de alegria ao
verem (idóntes: particío do aoristo segundo de horáô) o Senhor. Esta visão
dos Onze é como a do discípulo amado face ao sepulcro vazio: viu e começou a
acreditar (Jo 20,8). O sopro sobre
eles é o sopro criador (emphysáô) pelo Espírito
com vista ao perdão, que dá a vida nova, sopro paralelo ao sopro ou alento
criador de Génesis 2,7. E a fé implica a missão: a Igreja tem de caminhar, falar,
cuidar e testemunhar.
Mas esta tentativa de desconfinamento não resultou. Tomé não
estava com eles e garantiu não acreditar se não visse e tocasse os sítios das
chagas. Ora, como disse o Bispo de Leiria-Fátima, a fé é dom e atitude pessoal
e interior, mas realiza-se, exprime-se e cresce na comunidade, pois “não se é
cristão sozinho”. E Jesus, que não quer deixar ninguém para trás, reapareceu
oito dias depois (Jo 20,26-29) e desafiou Tomé
a meter o dedo nos lugares dos cravos e a mão no lado aberto instando a que não
fosse incrédulo, mas fiel. E Tomé proferiu a exclamação orante mais profunda e
mais sintética de latria que alguma vez se ouviu: “Meu Senhor e meu Deus”.
E fez-se o desconfinamento contido. Os discípulos começaram a
ocupar-se de algumas das atividades de subsistência, tomaram refeições com
Jesus, protagonizaram a pesca milagrosa e, recebido o mandato de irem por todo
o mundo a fazer discípulos em todas as nações a partir dos corações,
presenciaram a Ascensão de Jesus ao Céu. Porém, seguiu-se um novo confinamento (cf At 1,12 – 2,1). Porém, este já não é dominado pelo medo, mas desenvolve-se na
busca orante da força do Alto: estavam em oração com Maria, Mãe de Jesus,
outras mulheres e outros discípulos e reconstituíram o grupo dos Doze com a
eleição de Matias. Não obstante, não havia meio de o grupo, efetivamente
pequeno e pusilânime, se lançar à obra, que urgia.
Assim, como refere o Livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-11), no dia de Pentecostes, estando todos reunidos no mesmo lugar, veio de súbito, do céu, um ruído como
de ventania impetuosa, que encheu toda a casa .
Fizeram-se-lhes ver línguas como de fogo, que se
dividiram e “sentou-se” (é o verbo kathízô)
uma sobre cada um. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram
a falar outras línguas, como o Espírito lhes dava o dom de se exprimirem. Estavam em
Jerusalém homens piedosos, provindos de todas as nações. Tendo “visto” este
som, a multidão convergiu e ficou perplexa, porque ouvia cada um na
própria língua o que eles falavam. E, maravilhados, diziam: “Não são galileus todos estes que estão a
falar? E como é, então, que nós ouvimos, cada um na nossa própria língua
em que nascemos?”.
Estão os
apóstolos num único local e num único tempo. O tempo é o 50.º dia da Páscoa; o
local reparte-se por duas unidades: a casa, confinante; e a cidade, aberta ao
mundo. O verbo grego gínomai, marca o
acontecimento do aparecimento súbito do vento forte e o da perplexidade e maravilha da
multidão. Como era hábito, estavam acantonados no Cenáculo, mas, varridos e recriados pelo vento do
Espírito, que não se deixa controlar, veem os fantasmas de sótão que ainda os
tolhem queimados pelo fogo purificador. E o Espírito, como novo Mestre,
pousando sobre cada um de nós, como o fez com aqueles doze, guia a nossa vida
desde dentro impulsionando-nos à ação no exterior, fazendo cessar os muros das
incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças e fazendo
nascer um mundo novo de plena comunhão e comunicação, pois todos nos entendemos
tão bem como se se tratasse da nossa língua materna. Não é o vernáculo, mas é a
linguagem da confiança, intimidade, ternura, amor e zelo.
Enfim, se a Igreja foi prometida em resposta à confissão da
fé petrina (cf Mt 16,13-19), nasceu do lado
aberto de Jesus na Cruz (Jo 19,31-37) e foi
confirmada em diálogo com Pedro na sua tríplice confissão de amor ao
Ressuscitado, com o Pentecostes saiu do confinamento da casa das portas
fechadas e abriu-se ao mundo. O grupo, de pusilânime e tímido, passou a
corajoso e atrevido, ousando arriscar a própria vida, e começou a crescer. “Os
que aceitaram a sua palavra (a de Pedro) receberam o
Batismo e, naquele dia, juntaram-se a eles cerca de três mil homens” (At 2,41).
E o Cardeal Marto disse que esta Solenidade nos lembra que “o Senhor Ressuscitado nos envia o
Espírito Santo que, com a sua força nos dá um novo alento, uma nova esperança e
um novo ânimo para enfrentarmos este novo tempo”, longe “de uma fé rotineira,
sem entusiasmo e tantas vezes vivida como se fosse um fardo que nos esmaga”. Propôs
que, tal como os apóstolos, que viveram uma experiência de confinamento no
Cenáculo, com medo e incerteza sobre o que iria acontecer e foram surpreendidos
com a vinda do Espírito Santo, também nós devemos abrir “as nossas janelas,
escancarar as mentes e os corações fechados”. E relevou a ação do Espírito
Santo na construção duma Igreja “em saída, que anuncia a boa nova do Evangelho
a vários povos e culturas, que abate barreiras e muros e cria a fraternidade.
Eis “a imagem da Igreja mãe, acolhedora”, que vai “ao encontro das periferias”
e “não fecha a porta na cara de ninguém”.
O prelado
diocesano, que deu as boas vindas aos peregrinos que marcaram presença em
Fátima, neste domingo de celebrações com a presença de fiéis, depois de mais de
dois meses de “longo confinamento” e com missas apenas transmitidas pelos
órgãos de comunicação social e digital, disse que “a nossa fé é interior, mas
também tem uma dimensão visível, de encontro, face a face e de comunhão
interpessoal”, pelo que “a retoma comunitária da fé e da Eucaristia é um
momento tão esperado de alegria”. E, no final, evocou os doentes e as vítimas diretas e indiretas da Covid-19.
O Pentecostes postula, com máscara ou sem máscara (Espero que não se torne uma peça litúrgica com significado teológico e
jurídico como sucedeu com a mitra e o báculo!), a conversão das
mentalidades, dos corações e das atitudes: a
metanoia que parte do interior modificado segundo o coração de Deus para o
coração do mundo a transformar segundo os parâmetros do Reino de Deus.
2020.05.30 –
Louro de Carvalho
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