domingo, 31 de maio de 2020

Da experiência do confinamento à transformação em Igreja em saída


Na celebração da Missa da Solenidade do Pentecostes a que presidiu no Altar do Recinto de Oração do Santuário de Fátima com uns milhares de peregrinos, o Cardeal Dom António Marto, depois de frisar a alegria e emoção por se reencontrar com os peregrinos, incluindo os mais pequenitos, apontou a coincidência, talvez providencial, da retoma das celebrações em regime coletivo com a Solenidade do Pentecostes.
Não fomos nós quem inventou o confinamento. Com efeito, os apóstolos fizeram essa dolorosa experiência no Cenáculo após a morte de Jesus, desolados pela “perda” do Mestre, pelo “fracasso” do projeto em que estavam empenhados, pelo medo – o medo dos judeus ou o medo de si próprios – e esquecidos do discurso testamentário de Jesus subsequente à Última Ceia. E, na tarde do dia da Ressurreição, o Senhor quer provocar o desconfinamento e chamá-los à missão no Espírito Santo (cf Jo 20,19-23). O Ressuscitado, portador de vida nova, que nem as portas fechadas do lugar de confinamento travaram, coloca-Se de pé no meio deles, saúda-os desejando-lhes a paz, mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e vincula-os à missão messiânica, que eles hão de concretizar no estilo de Jesus: Assim como o Pai me enviou (apéstalken: perfeito de apostéllô), assim Eu vos envio (pémpô: presente).
Os discípulos dissiparam o medo e ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: particío do aoristo segundo de horáô) o Senhor. Esta visão dos Onze é como a do discípulo amado face ao sepulcro vazio: viu e começou a acreditar (Jo 20,8). O sopro sobre eles é o sopro criador (emphysáô) pelo Espírito com vista ao perdão, que dá a vida nova, sopro paralelo ao sopro ou alento criador de Génesis 2,7. E a fé implica a missão: a Igreja tem de caminhar, falar, cuidar e testemunhar.
Mas esta tentativa de desconfinamento não resultou. Tomé não estava com eles e garantiu não acreditar se não visse e tocasse os sítios das chagas. Ora, como disse o Bispo de Leiria-Fátima, a fé é dom e atitude pessoal e interior, mas realiza-se, exprime-se e cresce na comunidade, pois “não se é cristão sozinho”. E Jesus, que não quer deixar ninguém para trás, reapareceu oito dias depois (Jo 20,26-29) e desafiou Tomé a meter o dedo nos lugares dos cravos e a mão no lado aberto instando a que não fosse incrédulo, mas fiel. E Tomé proferiu a exclamação orante mais profunda e mais sintética de latria que alguma vez se ouviu: “Meu Senhor e meu Deus”.
E fez-se o desconfinamento contido. Os discípulos começaram a ocupar-se de algumas das atividades de subsistência, tomaram refeições com Jesus, protagonizaram a pesca milagrosa e, recebido o mandato de irem por todo o mundo a fazer discípulos em todas as nações a partir dos corações, presenciaram a Ascensão de Jesus ao Céu. Porém, seguiu-se um novo confinamento (cf At 1,12 – 2,1). Porém, este já não é dominado pelo medo, mas desenvolve-se na busca orante da força do Alto: estavam em oração com Maria, Mãe de Jesus, outras mulheres e outros discípulos e reconstituíram o grupo dos Doze com a eleição de Matias. Não obstante, não havia meio de o grupo, efetivamente pequeno e pusilânime, se lançar à obra, que urgia.   
Assim, como refere o Livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-11), no dia de Pentecostes, estando todos reunidos no mesmo lugar, veio de súbito, do céu, um ruído como de ventania impetuosa, que encheu toda a casa . Fizeram-se-lhes ver línguas como de fogo, que se dividiram e “sentou-se” (é o verbo kathízô) uma sobre cada um. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, como o Espírito lhes dava o dom de se exprimirem. Estavam em Jerusalém homens piedosos, provindos de todas as nações. Tendo “visto” este som, a multidão convergiu e ficou perplexa, porque ouvia cada um na própria língua o que eles falavam. E, maravilhados, diziam: “Não são galileus todos estes que estão a falar? E como é, então, que nós ouvimos, cada um na nossa própria língua em que nascemos?”.
Estão os apóstolos num único local e num único tempo. O tempo é o 50.º dia da Páscoa; o local reparte-se por duas unidades: a casa, confinante; e a cidade, aberta ao mundo. O verbo grego  gínomai, marca o acontecimento do aparecimento súbito do vento forte e o da perplexidade e maravilha da multidão. Como era hábito, estavam acantonados no Cenáculo, mas, varridos e recriados pelo vento do Espírito, que não se deixa controlar, veem os fantasmas de sótão que ainda os tolhem queimados pelo fogo purificador. E o Espírito, como novo Mestre, pousando sobre cada um de nós, como o fez com aqueles doze, guia a nossa vida desde dentro impulsionando-nos à ação no exterior, fazendo cessar os muros das incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças e fazendo nascer um mundo novo de plena comunhão e comunicação, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna. Não é o vernáculo, mas é a linguagem da confiança, intimidade, ternura, amor e zelo.
Enfim, se a Igreja foi prometida em resposta à confissão da fé petrina (cf Mt 16,13-19), nasceu do lado aberto de Jesus na Cruz (Jo 19,31-37) e foi confirmada em diálogo com Pedro na sua tríplice confissão de amor ao Ressuscitado, com o Pentecostes saiu do confinamento da casa das portas fechadas e abriu-se ao mundo. O grupo, de pusilânime e tímido, passou a corajoso e atrevido, ousando arriscar a própria vida, e começou a crescer. “Os que aceitaram a sua palavra (a de Pedro) receberam o Batismo e, naquele dia, juntaram-se a eles cerca de três mil homens” (At 2,41).   
E o Cardeal Marto disse que esta Solenidade nos lembra que “o Senhor Ressuscitado nos envia o Espírito Santo que, com a sua força nos dá um novo alento, uma nova esperança e um novo ânimo para enfrentarmos este novo tempo”, longe “de uma fé rotineira, sem entusiasmo e tantas vezes vivida como se fosse um fardo que nos esmaga”. Propôs que, tal como os apóstolos, que viveram uma experiência de confinamento no Cenáculo, com medo e incerteza sobre o que iria acontecer e foram surpreendidos com a vinda do Espírito Santo, também nós devemos abrir “as nossas janelas, escancarar as mentes e os corações fechados”. E relevou a ação do Espírito Santo na construção duma Igreja “em saída, que anuncia a boa nova do Evangelho a vários povos e culturas, que abate barreiras e muros e cria a fraternidade. Eis “a imagem da Igreja mãe, acolhedora”, que vai “ao encontro das periferias” e “não fecha a porta na cara de ninguém”.
O prelado diocesano, que deu as boas vindas aos peregrinos que marcaram presença em Fátima, neste domingo de celebrações com a presença de fiéis, depois de mais de dois meses de “longo confinamento” e com missas apenas transmitidas pelos órgãos de comunicação social e digital, disse que “a nossa fé é interior, mas também tem uma dimensão visível, de encontro, face a face e de comunhão interpessoal”, pelo que “a retoma comunitária da fé e da Eucaristia é um momento tão esperado de alegria”. E, no final, evocou os doentes e as vítimas diretas e indiretas da Covid-19.
O Pentecostes postula, com máscara ou sem máscara (Espero que não se torne uma peça litúrgica com significado teológico e jurídico como sucedeu com a mitra e o báculo!), a conversão das mentalidades, dos corações e das atitudes: a metanoia que parte do interior modificado segundo o coração de Deus para o coração do mundo a transformar segundo os parâmetros do Reino de Deus.
2020.05.30 – Louro de Carvalho

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