É uma
verificação de Viriato Soromenho Marques, filósofo e ambientalista, em declarações à Renascença e à Ecclesia, em entrevista publicada a 22 de maio, em que,
referindo-se à encíclica “Laudato si”,
na semana dedicada a este documento papal, recorda ter dito, há 5 anos, que “era
o documento que faltava para a Igreja ocupar o seu espaço-tempo na
contemporaneidade de forma mais interveniente e efetiva”. E agora diz também,
no contexto da pandemia que assola o mundo, que “temos de aprender a habitar a terra de outra
maneira”.
***
Questionado se já se notam
alguns efeitos dos ensinamentos da encíclica, opina que, embora as ideias
demorem muito tempo a surtir o seu efeito, a avaliar pelos documentos, “a encíclica
se carateriza por um
impacto crescente”, graças “à solidez das teses” e à existência de “uma linha
de coerência ao longo destes cinco anos”. Com efeito, em documentos similares,
é usual haver “um pico de interesse por um tema” seguido do seu “abandono” ou “esquecimento”.
Ora, sucede que, “em todo o pontificado, na ação do Papa, aonde quer que ele
vá, a mensagem da ‘Laudato si’ surge
como central”.
Apesar de não ter sido Francisco quem descobriu o
tema, pois, como diz o Santo Padre, já São João XXIII, São Paulo VI, São João
Paulo II e Bento XVI escreveram sobre ele, “mas há uma diferença fundamental: o
Papa, para construir a encíclica, consultou muitas pessoas, cientistas de
muitos ramos, e levou para o texto o percurso de uma vida riquíssima”.
A encíclica foi publicada antes
da Cimeira de Paris, mas o mundo não parou pelas alterações climáticas, mas só pela
crise sanitária, paragem que levou ao significativo decréscimo dos níveis de
poluição. E a questão que se levanta é se este decréscimo se manterá no
pós-confinamento ou se perderemos tudo, logo que as pessoas voltem a fazer a
vida de sempre.
A isto o entrevistado
responde com a necessidade de se distinguir entre “o desejável” e “o que será
possível realisticamente”. A nível do desejável, “nós, como indivíduos, como coletivos, da
família aos governos do mundo”, devíamos colher “uma lição de humildade” e “de
força” do que está a suceder.
Na verdade, “um vírus, que nem é um organismo vivo” (apesar de ter impacto sobre a vida orgânica, não é um organismo vivo), “foi capaz de parar, de facto, o motor
económico do mundo e obrigar-nos a ficar confinados, onde fosse possível”. E,
ao invés do que se tem dito, Soromenho Marques, nega que tenha sido surpresa,
pois, como refere, “os epidemiologistas há muitos anos que chamavam a atenção
para que, nos últimos 30 a 40 anos, 75% das novas doenças [seriam] resultantes
do mesmo processo que nos levou a esta zoonose, um processo de transmissão de
um vírus que vive num organismo animal para o nosso ecossistema biológico”.
E aponta que não é por acaso que o vírus se transmite,
mas mercê da “forma intrusiva como a nossa espécie está a atuar sobre a
biodiversidade”. De facto, “nós estamos a destruir os habitats, as florestas,
as zonas onde vivem espécies cada vez mais perseguidas, em perigo”.
Neste contexto, a ‘Laudato
si’, mais do que um interessante roteiro para ajudar no processo de desconfinamento,
constitui “uma lição de
sabedoria”, pois as ideias que nela encontramos vertidas “ajudam-nos” a “construir
uma interpretação do que nos está a acontecer”. Com efeito, “a pior tragédia” é
estarmos “numa situação para a qual não temos uma compreensão” ou a que temos é
errada, sendo que a pandemia resulta do desrespeito crónico do “espaço
existencial de outras espécies”.
Ora, nós, “como seres humanos, como
indivíduos e até como cidadãos, somos sensíveis” consoante a informação de que
dispomos. E “a maioria da população não tem conhecimento tão detalhado destas
questões”. E o filósofo ambientalista discorre:
“Precisamos de ter um conhecimento
aberto, holístico, perceber a relação que isto tem com a crise do ambiente. (…)
Nós estamos a habitar a terra como se ela nos pertencesse. Mais, nós habitamos
a terra como não habitamos as nossas casas: que eu saiba, nas nossas casas, não
partimos as portas, destruímos a mobília, deixamos os resíduos ficar nos sítios
onde dormimos ou onde comemos. E nós estamos a fazer isso, na terra,
exatamente.”.
Neste aspeto, emerge como problema crucial a “organização
coletiva” ou a “governação”, um dos temas centrais da ‘Laudato si’, que leva a questionarmo-nos como vamos nós governar “esta
casa comum”. E o entrevistado observa:
“O nosso confinamento é uma forma de
ação. Muitas vezes a forma mais inteligente de agir é uma ação interior, que
aparentemente é passiva. Nós baixamos a pressão sobre o mundo, sobre a terra,
sobre os ecossistemas e a resposta foi a diminuição da emissão de gases de
efeito estufa, uma primavera mais visível para todos nós, com a manifestação da
vida natural com uma exuberância que não estávamos habituados a ter.”.
Depois, chama a atenção para um pormenor relevante: só
se contabilizam as baixas da Covid-19, não se contabilizando as vidas poupadas:
os que não morreram de doenças pulmonares, em acidentes automobilísticos ou noutro
tipo de situações. E adverte:
“Não podemos estar confinados toda a
vida. Temos de aprender a habitar a terra de uma outra maneira, o que significa
que temos de fazer um esforço, já indicado na ‘Laudato si’, de termos uma economia completamente diferente.”.
Admite que o tema, conexo com a encíclica e com toda a
ação de Francisco, “acaba por gerar muitos anticorpos dentro da própria Igreja
Católica”. E esclarece:
“Dizer que esta economia mata não é
um insulto, é uma simples fotografia de uma economia que transforma
complexidade em simplificação; que transforma uma atmosfera saudável numa
atmosfera que está a alterar o clima; que substitui a plenitude da diversidade
biológica por paisagens completamente uniformes; que destrói a diversidade das
florestas por monoculturas de produção, que depois provocam incêndios. E que,
depois, no fundo, leva tantos milhões de seres humanos a viver na pobreza e no
lixo.”.
Estribado na experiência, que teve em países
africanos, de ver, nos arredores das grandes capitais, pessoas a conviver com
os resíduos e o lixo ou as crianças a brincar no meio dos detritos, o que
levava a incríveis surtos de mortalidade infantil, insiste:
“Dizer que esta economia mata é um
dado objetivo, porque, se não mudarmos a forma como organizamos a nossa
economia – se continuarmos a ter uma economia que se baseia no transporte de
carbono que está na litosfera e que, depois, através do consumo do carvão, do
petróleo, do gás natural, vai para a atmosfera, alterando os mecanismos
climáticos, complexos e subtis –, estaremos a passar de uma pandemia, que é
grave, para umas situação de calamidade e catástrofe climática, que será muito
pior. Estamos a falar de mudanças que vão determinar os próximos séculos.”.
Confrontado com a hipótese de
a necessidade de boas práticas sanitárias levar a exageros, como o regresso massivo
à utilização de descartáveis e de plásticos, acede a que a questão é relevante,
não sabendo ninguém como evoluirá. Verifica no facto “uma hiperreação” corrigível pela “capacidade
comunicacional”. Na verdade, como assente, as pessoas, em geral, escutam as
mensagens e agem em conformidade. Ora, se se mantiver a “atmosfera de
comunicação” (racional, pedagógica), “as pessoas agem em conformidade, porque o que está
aqui em causa é o interesse de todos e de cada um” – tal como “será do interesse
de todos e de cada um que a saída da pandemia” venha a incentivar “a resposta à
crise ambiental e climática” com que nos comprometemos nos termos do acordo de
Paris, em 2015, para o qual “a ‘Laudato si’
teve um papel crucial”. Obviamente é preciso aumentar o compromisso e concretizá-lo,
pois está em causa a “imagem de nós mesmos como seres humanos”, não podendo nós
estar condenados “a ter de optar entre sobreviver” lesando “as gerações futuras”.
E, colocando a questão se temos “a capacidade de reinventar a forma como
fazemos a nossa economia, como habitamos o nosso planeta”, desenvolve:
“Olhando (…) para a quantidade de
pessoas em todo o mundo que amam os seus filhos, que amam os seus netos, que
percebem o que está a acontecer desde há décadas, com uma economia global a
entrar numa situação de ‘U’ invertido, ou seja, tivemos gerações e gerações que
foram educadas no mito do progresso, na ideia de que cada geração viveria
melhor, mas depois daquele planalto, as gerações dos anos 90, se compararmos o
rendimento, as oportunidades de trabalho, a segurança no emprego, nos países
desenvolvidos… Não têm comparação, são muito inferiores aos da minha geração,
que sou um homem do final dos anos 50. (…) E aqueles jovens que têm a idade de
Greta Thunberg, que já é uma menina do terceiro milénio, a situação tenderá a
ser ainda mais grave.”.
Reconhece que a civilização do conhecimento, de
pessoas capacitadas e de empresas que sabem responder a estímulos, consegue
encarar aos desafios que lhe são lançados. E exemplifica com as empresas portuguesas
que, em pandemia – algumas sem apoio do Estado – “avançaram fazendo máscaras,
construindo ventiladores…”, para dizer que esta “é uma guerra pelos nossos
filhos e os nossos netos”, sendo mais importante travá-la que alimentar “uma
elite de super-ricos, que tem uma vida numa riqueza (…) pornográfica, obscena”.
E questiona se não temos moral e ética para dizer “basta” a pessoas que se
deslocam em aviões particulares “como se fossem uma espécie de semideuses,
tomam o pequeno-almoço num país e seguem para outro” e, “atrevendo-se, muitas
vezes, a aparecer como representantes de causas nobres e justas”.
Considerando que a ‘Laudato
si’ é uma encíclica social, a sublinhar a dimensão da sobriedade, da
mudança de estilo de vida e que há pessoas a quem é imposta uma condição de que
dificilmente saem, e outras que têm a opção de assumir estilos de vida
diferentes, Soromenho Marques é interpelado sobre o passo a dar para que seja
interiorizada a ideia de que é possível um futuro diferente. E responde:
“A pandemia criou um quadro de
transição. (…) Estruturas, regras, normas, sistemas de Governo que eram muito
sólidos ontem, estão muito periclitantes. (…) Não sabemos para onde é que vai a
União Europeia. (…) O futuro de Portugal, como o dos alemães ou dos holandeses,
está muito… totalmente dependente da forma como nos vamos governar. Temos
sinais contraditórios: sinais que apontam no sentido da fragmentação, outros
sinais que apontam no sentido da solidariedade.”.
Ora, apesar de “cada indivíduo” ter “uma
responsabilidade especial”, o que produz mudanças estruturais, com resultados
permanentes, são as mudanças que passam pelas instituições, leis e normas. Mas,
como “quem as faz são as pessoas”, “cada um de nós” deve “ser capaz de ajudar a
criar os consensos e o diálogo de que precisamos, as decisões operativas”.
Sobre o ano especial
dedicado à “Laudato si”, que se inicia no dia 24, para propor
compromissos em ordem à sustentabilidade total em 7 anos, assegura que “é possível almejar o impossível”. E, se
quem podia obviar à crise ambiental colocou “a agenda política ou a sua grande
empresa à frente do interesse mundial e do interesse humano”, hoje cumpre “adaptarmo-nos
a danos” já “impossíveis de evitar” e fazê-lo ativamente “para evitar danos
maiores, esses sim irreversíveis e ingeríveis”, pois “o custo da remediação é
um custo muitíssimo elevado”, como se vê nos EUA, no Brasil, em que “é a
própria noção do Estado funcional, um Estado que respeita os seus cidadãos, que
os defende, que está em causa”.
E conclui dizendo que “não são as guerras contra os
outros” que mais nos condicionam, mas as “que travamos dentro de nós próprios:
entre o melhor de nós, que muitas vezes vive esmagado, a melhor voz de nós e a
pior voz de nós”. De momento, “coletivamente, temos a pior voz de nós”, que bloqueia
o futuro. Porém, é preciso que a nossa melhor voz “tenha músculo suficiente
para travar esta guerra que vai demorar muitos anos e da qual só podemos sair
vitoriosos”.
***
Vale a pena ler a entrevista: uma boa reflexão sobre a
lição da pandemia e da encíclica.
2020.05.23 – Louro de Carvalho
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