sábado, 23 de maio de 2020

Aonde quer que vá o Papa, é central a mensagem da ‘Laudato si’


É uma verificação de Viriato Soromenho Marques, filósofo e ambientalista, em declarações à Renascença e à Ecclesia, em entrevista publicada a 22 de maio, em que, referindo-se à encíclica “Laudato si”, na semana dedicada a este documento papal, recorda ter dito, há 5 anos, que “era o documento que faltava para a Igreja ocupar o seu espaço-tempo na contemporaneidade de forma mais interveniente e efetiva”. E agora diz também, no contexto da pandemia que assola o mundo, que “temos de aprender a habitar a terra de outra maneira”.
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Questionado se já se notam alguns efeitos dos ensinamentos da encíclica, opina que, embora as ideias demorem muito tempo a surtir o seu efeito, a avaliar pelos documentos, “a encíclica se carateriza por um impacto crescente”, graças “à solidez das teses” e à existência de “uma linha de coerência ao longo destes cinco anos”. Com efeito, em documentos similares, é usual haver “um pico de interesse por um tema” seguido do seu “abandono” ou “esquecimento”. Ora, sucede que, “em todo o pontificado, na ação do Papa, aonde quer que ele vá, a mensagem da ‘Laudato si’ surge como central”.
Apesar de não ter sido Francisco quem descobriu o tema, pois, como diz o Santo Padre, já São João XXIII, São Paulo VI, São João Paulo II e Bento XVI escreveram sobre ele, “mas há uma diferença fundamental: o Papa, para construir a encíclica, consultou muitas pessoas, cientistas de muitos ramos, e levou para o texto o percurso de uma vida riquíssima”.
A encíclica foi publicada antes da Cimeira de Paris, mas o mundo não parou pelas alterações climáticas, mas só pela crise sanitária, paragem que levou ao significativo decréscimo dos níveis de poluição. E a questão que se levanta é se este decréscimo se manterá no pós-confinamento ou se perderemos tudo, logo que as pessoas voltem a fazer a vida de sempre.
A isto o entrevistado responde com a necessidade de se distinguir entre “o desejável” e “o que será possível realisticamente”. A nível do desejável, “nós, como indivíduos, como coletivos, da família aos governos do mundo”, devíamos colher “uma lição de humildade” e “de força” do que está a suceder.
Na verdade, “um vírus, que nem é um organismo vivo” (apesar de ter impacto sobre a vida orgânica, não é um organismo vivo), “foi capaz de parar, de facto, o motor económico do mundo e obrigar-nos a ficar confinados, onde fosse possível”. E, ao invés do que se tem dito, Soromenho Marques, nega que tenha sido surpresa, pois, como refere, “os epidemiologistas há muitos anos que chamavam a atenção para que, nos últimos 30 a 40 anos, 75% das novas doenças [seriam] resultantes do mesmo processo que nos levou a esta zoonose, um processo de transmissão de um vírus que vive num organismo animal para o nosso ecossistema biológico”.
E aponta que não é por acaso que o vírus se transmite, mas mercê da “forma intrusiva como a nossa espécie está a atuar sobre a biodiversidade”. De facto, “nós estamos a destruir os habitats, as florestas, as zonas onde vivem espécies cada vez mais perseguidas, em perigo”.
Neste contexto, a ‘Laudato si’, mais do que um interessante roteiro para ajudar no processo de desconfinamento, constitui “uma lição de sabedoria”, pois as ideias que nela encontramos vertidas “ajudam-nos” a “construir uma interpretação do que nos está a acontecer”. Com efeito, “a pior tragédia” é estarmos “numa situação para a qual não temos uma compreensão” ou a que temos é errada, sendo que a pandemia resulta do desrespeito crónico do “espaço existencial de outras espécies”.
Ora, nós, “como seres humanos, como indivíduos e até como cidadãos, somos sensíveis” consoante a informação de que dispomos. E “a maioria da população não tem conhecimento tão detalhado destas questões”. E o filósofo ambientalista discorre:
Precisamos de ter um conhecimento aberto, holístico, perceber a relação que isto tem com a crise do ambiente. (…) Nós estamos a habitar a terra como se ela nos pertencesse. Mais, nós habitamos a terra como não habitamos as nossas casas: que eu saiba, nas nossas casas, não partimos as portas, destruímos a mobília, deixamos os resíduos ficar nos sítios onde dormimos ou onde comemos. E nós estamos a fazer isso, na terra, exatamente.”.
Neste aspeto, emerge como problema crucial a “organização coletiva” ou a “governação”, um dos temas centrais da ‘Laudato si’, que leva a questionarmo-nos como vamos nós governar “esta casa comum”. E o entrevistado observa:
O nosso confinamento é uma forma de ação. Muitas vezes a forma mais inteligente de agir é uma ação interior, que aparentemente é passiva. Nós baixamos a pressão sobre o mundo, sobre a terra, sobre os ecossistemas e a resposta foi a diminuição da emissão de gases de efeito estufa, uma primavera mais visível para todos nós, com a manifestação da vida natural com uma exuberância que não estávamos habituados a ter.”.
Depois, chama a atenção para um pormenor relevante: só se contabilizam as baixas da Covid-19, não se contabilizando as vidas poupadas: os que não morreram de doenças pulmonares, em acidentes automobilísticos ou noutro tipo de situações. E adverte:
Não podemos estar confinados toda a vida. Temos de aprender a habitar a terra de uma outra maneira, o que significa que temos de fazer um esforço, já indicado na ‘Laudato si’, de termos uma economia completamente diferente.”.
Admite que o tema, conexo com a encíclica e com toda a ação de Francisco, “acaba por gerar muitos anticorpos dentro da própria Igreja Católica”. E esclarece:
Dizer que esta economia mata não é um insulto, é uma simples fotografia de uma economia que transforma complexidade em simplificação; que transforma uma atmosfera saudável numa atmosfera que está a alterar o clima; que substitui a plenitude da diversidade biológica por paisagens completamente uniformes; que destrói a diversidade das florestas por monoculturas de produção, que depois provocam incêndios. E que, depois, no fundo, leva tantos milhões de seres humanos a viver na pobreza e no lixo.”.
Estribado na experiência, que teve em países africanos, de ver, nos arredores das grandes capitais, pessoas a conviver com os resíduos e o lixo ou as crianças a brincar no meio dos detritos, o que levava a incríveis surtos de mortalidade infantil, insiste:
Dizer que esta economia mata é um dado objetivo, porque, se não mudarmos a forma como organizamos a nossa economia – se continuarmos a ter uma economia que se baseia no transporte de carbono que está na litosfera e que, depois, através do consumo do carvão, do petróleo, do gás natural, vai para a atmosfera, alterando os mecanismos climáticos, complexos e subtis –, estaremos a passar de uma pandemia, que é grave, para umas situação de calamidade e catástrofe climática, que será muito pior. Estamos a falar de mudanças que vão determinar os próximos séculos.”.
Confrontado com a hipótese de a necessidade de boas práticas sanitárias levar a exageros, como o regresso massivo à utilização de descartáveis e de plásticos, acede a que a questão é relevante, não sabendo ninguém como evoluirá. Verifica no facto “uma hiperreação” corrigível pela “capacidade comunicacional”. Na verdade, como assente, as pessoas, em geral, escutam as mensagens e agem em conformidade. Ora, se se mantiver a “atmosfera de comunicação” (racional, pedagógica), “as pessoas agem em conformidade, porque o que está aqui em causa é o interesse de todos e de cada um” – tal como “será do interesse de todos e de cada um que a saída da pandemia” venha a incentivar “a resposta à crise ambiental e climática” com que nos comprometemos nos termos do acordo de Paris, em 2015, para o qual “a ‘Laudato si’ teve um papel crucial”. Obviamente é preciso aumentar o compromisso e concretizá-lo, pois está em causa a “imagem de nós mesmos como seres humanos”, não podendo nós estar condenados “a ter de optar entre sobreviver” lesando “as gerações futuras”. E, colocando a questão se temos “a capacidade de reinventar a forma como fazemos a nossa economia, como habitamos o nosso planeta”, desenvolve:
Olhando (…) para a quantidade de pessoas em todo o mundo que amam os seus filhos, que amam os seus netos, que percebem o que está a acontecer desde há décadas, com uma economia global a entrar numa situação de ‘U’ invertido, ou seja, tivemos gerações e gerações que foram educadas no mito do progresso, na ideia de que cada geração viveria melhor, mas depois daquele planalto, as gerações dos anos 90, se compararmos o rendimento, as oportunidades de trabalho, a segurança no emprego, nos países desenvolvidos… Não têm comparação, são muito inferiores aos da minha geração, que sou um homem do final dos anos 50. (…) E aqueles jovens que têm a idade de Greta Thunberg, que já é uma menina do terceiro milénio, a situação tenderá a ser ainda mais grave.”.
Reconhece que a civilização do conhecimento, de pessoas capacitadas e de empresas que sabem responder a estímulos, consegue encarar aos desafios que lhe são lançados. E exemplifica com as empresas portuguesas que, em pandemia – algumas sem apoio do Estado – “avançaram fazendo máscaras, construindo ventiladores…”, para dizer que esta “é uma guerra pelos nossos filhos e os nossos netos”, sendo mais importante travá-la que alimentar “uma elite de super-ricos, que tem uma vida numa riqueza (…) pornográfica, obscena”. E questiona se não temos moral e ética para dizer “basta” a pessoas que se deslocam em aviões particulares “como se fossem uma espécie de semideuses, tomam o pequeno-almoço num país e seguem para outro” e, “atrevendo-se, muitas vezes, a aparecer como representantes de causas nobres e justas”.
Considerando que a ‘Laudato si’ é uma encíclica social, a sublinhar a dimensão da sobriedade, da mudança de estilo de vida e que há pessoas a quem é imposta uma condição de que dificilmente saem, e outras que têm a opção de assumir estilos de vida diferentes, Soromenho Marques é interpelado sobre o passo a dar para que seja interiorizada a ideia de que é possível um futuro diferente. E responde:
A pandemia criou um quadro de transição. (…) Estruturas, regras, normas, sistemas de Governo que eram muito sólidos ontem, estão muito periclitantes. (…) Não sabemos para onde é que vai a União Europeia. (…) O futuro de Portugal, como o dos alemães ou dos holandeses, está muito… totalmente dependente da forma como nos vamos governar. Temos sinais contraditórios: sinais que apontam no sentido da fragmentação, outros sinais que apontam no sentido da solidariedade.”.
Ora, apesar de “cada indivíduo” ter “uma responsabilidade especial”, o que produz mudanças estruturais, com resultados permanentes, são as mudanças que passam pelas instituições, leis e normas. Mas, como “quem as faz são as pessoas”, “cada um de nós” deve “ser capaz de ajudar a criar os consensos e o diálogo de que precisamos, as decisões operativas”.
Sobre o ano especial dedicado à “Laudato si”, que se inicia no dia 24, para propor compromissos em ordem à sustentabilidade total em 7 anos, assegura que “é possível almejar o impossível”. E, se quem podia obviar à crise ambiental colocou “a agenda política ou a sua grande empresa à frente do interesse mundial e do interesse humano”, hoje cumpre “adaptarmo-nos a danos” já “impossíveis de evitar” e fazê-lo ativamente “para evitar danos maiores, esses sim irreversíveis e ingeríveis”, pois “o custo da remediação é um custo muitíssimo elevado”, como se vê nos EUA, no Brasil, em que “é a própria noção do Estado funcional, um Estado que respeita os seus cidadãos, que os defende, que está em causa”.
E conclui dizendo que “não são as guerras contra os outros” que mais nos condicionam, mas as “que travamos dentro de nós próprios: entre o melhor de nós, que muitas vezes vive esmagado, a melhor voz de nós e a pior voz de nós”. De momento, “coletivamente, temos a pior voz de nós”, que bloqueia o futuro. Porém, é preciso que a nossa melhor voz “tenha músculo suficiente para travar esta guerra que vai demorar muitos anos e da qual só podemos sair vitoriosos”.
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Vale a pena ler a entrevista: uma boa reflexão sobre a lição da pandemia e da encíclica.
2020.05.23 – Louro de Carvalho

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