quarta-feira, 13 de maio de 2020

“Conversão em profundidade” e esperança para viver os tempos atuais



É um dos tópicos mais relevantes que o Bispo de Leiria-Fátima, cardeal Dom António Marto convocou na homilia da Missa Internacional Aniversária deste dia 13 de maio ao perspetivar a atual crise mundial como uma oportunidade para a “conversão em profundidade” e apresentar a esperança da mensagem de Fátima como chave de leitura para este tempo um tanto parecido, em termos de drama, com aquele em que a Virgem visitou os pastorinhos.
Diante dos três metropolitas (Cardeal Patriarca, Arcebispo Primaz de Braga e Arcebispo de Évora) – em representação do clero das três províncias metropolitanas portuguesas – de dois médicos, dois enfermeiros, dois assistentes de saúde, dois bombeiros e dois dirigentes de IPSS, em homenagem ao pessoal da linha da frente na luta contra o coronavírus SARS-CoV-2, Dom António Marto iniciou a sua reflexão homilética, em jeito de oração à Mãe de Misericórdia, com a verificação de que é esta a primeira vez, desde 1917 (103 anos), que o povo, “vindo dos mais diversos ângulos do mundo não pode estar aqui, em multidão, impedido pelos riscos da saúde pública”. Nem a neblina que se abateu sobre o Recinto de Oração mascarou o vazio sentido pela ausência física da habitual multidão de peregrinos. Com efeito, um vírus caprichoso de quem ninguém está imune, de súbito, “confina-nos nas nossas casas e priva-nos dos momentos mais desejados e afetuosos da vida, como este que vivemos cada ano” junto de Maria.
O cardeal fatimita apontou a crise mundial humana gerada pela pandemia da Covid-19, que “põe a nu e revela a vulnerabilidade e a fragilidade da nossa condição humana”, como uma situação “dramática e trágica, sem precedentes”, mas perspetivou-a como oportunidade para “refletir sobre a vida e, em primeiro lugar, a ir ao essencial”. E disse:
Às vezes, parecemos tão tremendamente fortes e somos tão tremendamente frágeis, vulneráveis. (…) (Esta situação) obriga-nos a repensar os nossos hábitos, o nosso estilo de vida, a escala de valores que orienta a nossa vida. Coloca-nos perante o grande mistério último da vida e da humanidade que nós, os crentes, chamamos Deus, o Deus de Jesus Cristo. Tudo isto exige uma reflexão interior, espiritual.”.
Apresentando a pandemia como “chamamento à conversão espiritual mais em profundidade”, o prelado apresentou como resposta para a crise a responsabilidade e a solidariedade e vincou:
A nossa vulnerabilidade e fragilidade fazem-nos sentir a todos unidos em humanidade. (…) E damos conta de que a nossa liberdade só pode ser exercida na responsabilidade e na solidariedade, que somos interdependentes e solidários uns [com os] outros e, por isso, nos salvamos todos juntos ou nos afundamos todos juntos.”.
Sublinhou o “suporte humano e espiritual” que a família assume como “pequena igreja doméstica em tempos de confinamento” e, ao alertar para as “terríveis” consequências económicas, sociais e laborais geradas pela pandemia, o purpurado desafiou os cristãos a não ficarem indiferentes perante a “pobreza, a fome e a exclusão social”, uma realidade social “que já bate à porta das Cáritas diocesanas e de várias paróquias e soa a sinal de grito de alarme”.
Citando o Papa e denunciando a indiferença como cobertura da pandemia mais grave que a da Covid-19 – a da pobreza, fome e exclusão social –, interrogava os peregrinos se era possível continuarmos com o mesmo modelo económico e social, sem distribuir por todos o alimento, que chega para todos, deixando na penúria tanta gente, ou se continuaremos com os focos de conflito e de guerra na busca de mais domínio.
No apelo à conversão, o cardeal apresentou a mensagem de Fátima como chave de leitura para a crise. Com efeito, também hoje a “Senhora tão bonita” nos é apresentada, na 1.ª leitura, sob a imagem da “mulher revestida de sol” que irradia a luz de Deus, nos convida a ver a nossa vida e a história do mundo à luz da fé e convida à confiança no triunfo do bem e da vida sobre o mal e a morte. Na verdade, como referiu, “a Palavra de Deus motiva-nos, pois, a atualizar a mensagem de Fátima de esperança e de paz e do apelo à conversão: é possível recomeçar, com esperança”.
E, por falar em esperança, o presidente da Peregrinação dirigiu uma oração de agradecimento e louvor a Nossa Senhora, firmando o compromisso de ali voltarmos logo que seja possível:
Mãe querida, queremos agradecer-te esta peregrinação interior, a luz, a esperança, a consolação e a paz de Cristo que levas às nossas casas. Hoje fazes tu o caminho da ida; o caminho da volta fá-lo-emos nós quando superarmos esta ameaça que no-lo impede. Voltaremos: é a nossa confiança e nosso compromisso. Voltaremos… Sim, voltaremos! É a nossa confiança e o nosso compromisso, hoje. Voltaremos, juntos aqui, em ação de graças, para te cantar: ‘aqui vimos, mãe querida, consagrar-te o nosso amor’!”.
É de registar que, na homilia, o prelado fatimita fez referência aos profissionais de saúde, aos doentes e àqueles que partiram sem que os familiares se pudessem despedir, assegurando que ocupam um lugar no coração da Mãe.  
E, após a habitual saudação aos peregrinos, nas diversas línguas (bandeiras de vários países, de todos os continentes, incorporaram-se na procissão a representar os grupos inscritos), António Marto comunicou que não haverá, a 10 de junho, a peregrinação das crianças, mas assegurou que, em breve, seriam enviadas indicações para que possam peregrinar a partir de casa. Depois, leu uma carta, datada de 8 de maio, que o Santo Padre enviou aos peregrinos de Fátima para este 13 de maio.
Na sua carta autógrafa, Francisco diz saber que os peregrinos se encontram ali, “embora apenas de alma e coração”, porque “um filho, uma filha não se pode ver longe da mãe e clama por ela; a confiança que lhe inspira é tal que basta a sua companhia para cessarem todos os medos e inquietações, abandonando-se a um sono tranquilo logo que se vê no regaço dela”.
O Papa quis tran­quilizar-nos sobre a companhia que nos faz a nossa Mãe do Céu. De facto, somos “tão limitados, tão pequeninos que um inesperado vírus pôde facilmente transtornar tudo e todos” – escreveu o Santo Padre, que prosseguiu:
Nossa Senhora é pequenina como nós, mas abandonou-Se a Deus e Ele engrandeceu-A, fazendo-A Mãe sua e nossa. Hoje, gloriosa em corpo e alma, toda Ela é um coração materno ocupado e preocupado em restabelecer a sua ligação connosco e a nossa ligação com Deus. Não esqueçais a sua promessa de 13 de junho de 191 7: ‘O meu Imaculado Coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá até Deus.”.
Falando da missão de Maria, afirmou: 
A Deus, Ela confia todos e cada um de vós, desde os zeladores do Santuário de Fátima, que hoje nos personificam e representam a todos aos pés de Nossa Senhora, à semelhança do apóstolo João no Calvário – ‘Mulher, eis o teu filho!’ (Jo 19,26) e, pela casa dentro, entrou-Lhe todo o mundo ...  –, até os doentes, pobres e abandonados, sem esquecer os profissionais e voluntários empenhados a servi-los.”.
E, pedindo que rezemos, disse:
Uma oração particular vos peço – enquanto vos asseguro a minha – pelas vítimas sem conta desta pandemia da covid-19 e todos os defuntos; a quantos se viram sozinhos na sua travessia para a eternidade, sei que a boa Mãe do Céu lhes fez companhia até Deus. Que o bom Deus vos abençoe e Nossa Senhora de Fátima vos guarde e proteja.”.
A este respeito, é digna de registo a saudação que Francisco fez em língua portuguesa no termo da catequese semanal desta quarta-feira, dia 13, na Biblioteca do Palácio Apostólico:
Saúdo os ouvintes de língua portuguesa e, neste dia treze de maio, a todos encorajo a conhecer e seguir o exemplo da Virgem Maria. Para isso procuremos viver este mês com uma oração diária mais intensa e fiel, em particular rezando o terço, como recomenda a Igreja, obedecendo a um desejo repetidamente expresso em Fátima por Nossa Senhora. Sob a sua proteção, vereis que os sofrimentos e as aflições da vida serão mais suportáveis. Hoje, gostaria de me abeirar, com o coração, da diocese de Leiria-Fátima, do Santuário de Nossa Senhora. Saúdo todos os peregrinos que lá estão em oração; saúdo o Cardeal Bispo, saúdo a todos. Todos unidos a Nossa Senhora, para que nos acompanhe neste caminho de conversão diária rumo a Jesus. Que Deus vos abençoe!”.
***
Os peregrinos que viveram a Peregrinação a partir de casa foram o foco da noite do dia 12. Na reflexão homilética da celebração da Palavra, Dom António Marto proclamou que estavam ali “todos, com a luz e o calor acesos da fé que enche os vossos corações”, em eco que se propagou pelo Recinto de Oração deserto, alumiado pelas mil velas solitárias que “cintilavam” no seu perímetro, simbolizando as vítimas mortais da Covid-19, e outras 21 velas, em representação das dioceses de Portugal. E expressou proximidade, afeto e oração aos que “mais sofrem e continuam a sofrer com a pandemia e aos que mais lutaram e lutam pela saúde de todos”, concretamente: “aos defuntos e seus familiares, aos doentes, a todos os profissionais de saúde, aos cuidadores, idosos, pobres, famílias, sacerdotes, trabalhadores da proteção civil, dos transportes, limpeza, alimentação e outros que não se pouparam a sacrifícios, como bons samaritanos”.
Ao lembrar o apelo do Papa Francisco para responder à atual pandemia com a união, a universalidade da oração, da compaixão e da ternura, junto dos mais necessitados, o prelado fatimita evocou o apelo que a Senhora deixou na Cova da Iria à oração do Rosário, recitado, momentos antes, na Capelinha das Aparições:
Tendo meditado os mistérios dolorosos, unimo-nos a toda a humanidade sofredora, evocada na leitura do profeta Isaías; confiámos as suas dores e todos os sofredores ao coração materno de Maria; pedimos-lhe que leve a todos a ternura e o conforto para superar esta provação como na sua visita a Isabel e que também nós, com toda a nossa solidariedade, sejamos testemunhas de que ‘o Senhor salva os corações atribulados’.”.
Fica connosco, Senhor, porque se faz noite!”, foi a invocação que Dom António Marto repetiu na homilia e definiu esta noite como a “de quem vive uma noite escura da fé perante o aparente silêncio e ausência de Deus e a de quem estremece e estranha esta noite tão diferente daquelas noites inigualáveis de 12 de maio – autênticos mares de luz – e que hoje mais parece um deserto escuro”. E, apontando a Virgem como a luz pela qual “o Senhor faz sentir a Sua proximidade”, (…) apresentando-A como “Mãe das dores, da esperança, e estrela que orienta a navegação dos peregrinos da fé sobre o grande mar da história em direção ao porto da eternidade”, exortou a, “com a doçura de Maria no coração”, entrarmos “tranquilos na noite com uma breve oração” e terminou com uma oração de Bento XVI dirigida a Nossa Senhora:
Santa Maria, Mãe de Deus, Mãe nossa, ensinai-nos a crer, a esperar e a amar convosco. Indicai-nos o caminho para o seu reino! Estrela do mar, brilhai sobre nós e guiai-nos no nosso caminho.”.
A noite terminou com a homenagem a todos os peregrinos que não puderam estar presentes na celebração. Dom António Marto, acompanhado por dois servitas, lavou os pés a três peregrinos, que representavam os milhões que seguiam espiritualmente esta Peregrinação a partir de casa, através dos meios de comunicação, ao Santuário de Fátima, para, com este sinal, os honrar e dizer que os “espera em nome da mãe, como uma mãe espera a visita dos filhos à sua casa”.
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Na habitual conferência de imprensa que antecipa as celebrações da Peregrinação Internacional Aniversária de maio, o cardeal disse aos jornalistas que, pelo contexto da pandemia, esta é a peregrinação mais difícil do Santuário e a mais interpeladora. Porém, assegurou que “o vazio que os olhos alcançam nunca esteve tão preenchido: O Santuário de Fátima, hoje e amanhã, é do tamanho do mundo”. E, mostrando-se otimista em relação à participação espiritual de muitos peregrinos nas celebrações, confidenciou:
Quando anunciei a suspensão da Peregrinação nos termos habituais, sem a presença física dos peregrinos, acrescentei que estaríamos aqui espiritualmente todos unidos, como Igreja, com Maria e, segundo os ecos que me têm chegado, muita gente estará unida espiritualmente às celebrações”.
Estabelecendo “alguma semelhança” entre a pandemia atual e a que o mundo viveu há cem anos, o purpurado elencou as “caraterísticas devastadoras e desastrosas” geradas por ambas: “mortes; doentes; desamparados; abandonados; e gente possuída pelo medo, angústia, incerteza e insegurança face ao futuro”, ao projetar dias difíceis gerados por uma “pandemia que não é só um fenómeno biológico, mas de repercussões e consequências graves em todos os âmbitos da vida: pessoal; familiar; educativo; laboral; económico-financeiro”.
E, ao apresentar a fraternidade, pela responsabilidade e solidariedade, como resposta ao medo na atual de crise mundial, o prelado observou:
Nós, cristãos, percebemos uma coisa que está no centro do anúncio do Evangelho: a salvação chega-nos pelo outro, pelo seu comportamento, pelo seu respeito e pela sua responsabilidade. Por isso, temos de ultrapassar aquela atitude espontânea do medo, diante das ameaças que estão à nossa frente, e assumir exigências que se põem diante dos nossos olhos… Todos somos interdependentes e esta interdependência tem de se traduzir na responsabilidade e na solidariedade.”.
Sobre as consequências sociais e económicas da pandemia, o Bispo de Leiria-Fátima sublinhou a “exigência de um novo impulso de solidariedade e responsabilidade centrado na dignidade humana”. E, ao exprimir a sua proximidade com as vítimas da pandemia, lembrou a mensagem de confiança e esperança trazida pela Senhora, nas Aparições de Fátima, e afirmou que a pandemia não exige apenas uma terapia física, mas também espiritual. E garantiu:
Unimo-nos à dor das vítimas diretas e indiretas e queremos que sintam que não estão sós. Recordo a comunicação de confiança que Nossa Senhora trouxe aos Pastorinhos para um mundo que, então, vivia também em condições dramáticas: ‘Eu nunca vos deixarei… O meu Imaculado Coração será o vosso refúgio e o caminho que vos conduzirá até Deus’.”.
Dom António Marto realçou o papel de responsabilidade que a Igreja em Portugal assumiu na atual de pandemia, demonstrando “grande preocupação com a saúde pública, procurando evitar o contágio do vírus, tomando todas as precauções e chegando à suspensão das celebrações comunitárias”. E, admitindo que, “mesmo depois desta fase de desconfinamento, não quer dizer que a pandemia já está vencida”, assumiu a continuação das “precauções necessárias”, por parte da Igreja, em articulação com as autoridades governamentais e da saúde, para evitar o contágio.
O vice-presidente da CEP (Conferência Episcopal portuguesa) lembrou ainda a comemoração, no passado dia 8 de maio, do final da II Grande Guerra Mundial na Europa; e, no dia 9, a comemoração da declaração de Schuman, que marca a origem da fundação da União Europeia (UE), perspetivando estes momentos como “interpelação para a Europa continuar unida e solidária, para fazer face às consequências da pandemia atual”.
No final, evocou o Papa São João Paulo II, na comemoração do seu nascimento, afirmando que “foi o Papa de Fátima e da Europa, porque foi um lutador pela queda dos muros que dividiam o continente, convidando-a a respirar com os dois pulmões: o do ocidente e o do oriente, convergindo na cooperação comum”.
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Uma peregrinação condignamente preparada e executada pelo pessoal do Santuário e alguns colaboradores, acentuando as marcas de representação e os apelos à interioridade e ao coração, só faltando efetivamente a multidão, que não foi esquecida na sua diáspora quase obrigatória pelas próprias casas. Oxalá constitua esta peregrinação o milagre interior de que o mundo dos homens precisa para assumir a marca da solidariedade que não deixa ninguém para trás!
2020.05.13 – Louro de Carvalho 

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