Enquanto
Elisa Ferreira, comissária europeia para a Coesão
e Reformas, repete que “só juntos conseguiremos sair da crise
socioeconómica” originada pela situação sanitária criada com a Covid-19, fica a
saber-se que o Tribunal Constitucional (TC) alemão, embora aprove
o programa de compras de dívida pelo BCE, pede a demonstração de
“proporcionalidade”.
Na verdade, aquele TC deliberou que o “quantitative easing” não constitui
financiamento monetário, o que seria ilegal (um banco central a financiar gastos
públicos), mas pediu ao BCE a demonstração da
proporcionalidade no cumprimento do seu mandato legal, ou seja, que a ação não
tem implicações económicas que ultrapassem o que o BCE está mandatado para
fazer.
Apesar de
haver quem temesse uma deliberação negativa, o TC considerou que as compras de
dívida por parte do BCE – que desde 2015 participa nos mercados de dívida
pública da zona euro, comprando obrigações dos países da zona euro – são legais
do ponto de vista essencial, pois, como reconhece o TC, não constituem emissão de moeda pelo BCE para financiar
défices de Estados. Porém, exige a avaliação da “proporcionalidade” do
programa, demonstrando que não houve “efeitos sobre a política económica e
orçamental” que tenham sido ilegalmente provocados pelo BCE, na prossecução do
seu único mandato que é o da estabilidade dos preços.
Assim, Christine Lagarde, que preside àquela instituição
financeira, dispõe de três meses para apresentar esse enquadramento, pois,
caso contrário, pelo menos em teoria, o TC pode opor-se a que o banco central
alemão continue a participar no programa. Resta saber se os tribunais
constitucionais ou organismos equivalentes dos outros Estados-membros da Zona
Euro podem fazer o mesmo ou se se trata duma prerrogativa alemã para proteger a
sua economia. Pode um tribunal, mesmo superior, de Estado-membro pedir
satisfações a uma instituição internacional?
A Comissão
Europeia reagiu à decisão, lembrando a primazia da lei comunitária e o caráter
vinculativo dos acórdãos do Tribunal de Justiça europeu. A este respeito, Eric
Mamer, porta-voz do executivo comunitário, afirmou na conferência de imprensa
diária da Comissão:
“Sem prejuízo de uma análise em detalhe da decisão de hoje do Tribunal
Constitucional alemão, reafirmamos a primazia da lei europeia e dos acórdãos do
Tribunal de Justiça da União Europeia. A Comissão Europeia sempre respeitou a
independência do BCE na sua implementação de política monetária.”.
Uma
deliberação negativa do TC alemão, mas que nunca foi tomada na governança de
Mario Draghi (foi tomada agora tardiamente, sabe-se lá porquê), poderia ter colocado em causa o programa que foi e é
decisivo para comprimir as taxas de juro dos países da zona euro e limitar a
divergência entre os custos de financiamento de uns países e os de outros. Com
efeito, o BCE já comprou, no mercado, 2,2 biliões de euros em dívida da zona
euro, desde o lançamento deste programa. Mesmo assim, a deliberação vem com a predita
solicitação ao BCE, que tem
implicações complexas: o tribunal considerou que o BCE poderá ter
excedido o seu mandato (estabilidade dos preços) ao não ter em conta, de forma suficiente, os efeitos
económicos da sua política.
Os
economistas do ING, tendo dúvidas, dizem:
“Numa interpretação otimista, estamos perante um cão que ladra muito,
mas não morderá, e que tudo ficará bem desde que o BCE demonstre que ponderou
seriamente as consequências económicas que as suas decisões teriam. Mas uma
leitura pessimista vê aqui um risco de que a argumentação que o BCE vier a
produzir, seja ela qual for, não será capaz de convencer os juízes alemães e,
por essa razão, ditar o fim do quantitative easing.”.
O TC
salientou que a decisão de agora diz respeito ao programa de “quantitative easing” (QE) lançado em 2015 e não “a quaisquer medidas de assistência financeira
tomadas pela UE ou pelo BCE no contexto da atual crise causada pelo
coronavírus”. Na verdade, a par do QE, o BCE lançou um programa de compras de
dívida, no valor de 750 mil milhões de euros, especialmente vocacionado para
conter o impacto da crise causada pela pandemia Covid-19.
***
Entretanto,
Elisa Ferreira, acima referenciada, fala ao Observador
na urgência de “assegurar um Fundo de Recuperação capaz de concretizar um programa maciço de
investimento e favorecer a convergência de forma a relançar o crescimento da
economia e do emprego”.
Considerando
que a Europa sobreviveu a muitas crises, frisa que “estamos perante a maior
ameaça das últimas décadas às nossas vidas, sociedades e economias”, pois,
nestes 60 anos da UE, não houve “uma perturbação tão súbita e generalizada do
nosso tecido social e económico”. Os
sistemas de saúde travam a batalha diária “contra a tragédia das vidas perdidas”;
empresas viáveis perdem clientes e mercados e enfrentam a falência iminente; os
cidadãos receiam pelo emprego e pela subsistência; e muitos ficaram subitamente
sem trabalho. E ilustra a realidade com uma expressiva dupla imagem:
“Se, em 2008, durante a crise financeira, tivemos de construir um
salva-vidas no meio da tempestade, em 2020 estamos a coser máscaras em plena
pandemia”.
É certo que
a prioridade continuará a ser a saúde pública, mas os decisores têm de começar
a desenhar “o caminho da Europa rumo à recuperação económica”. Tendo de fazer
tudo o que estava ao seu alcance para travar o vírus e atenuar os impactos
económicos dele, agora têm de relançar a economia, mas “sem comprometer os
esforços de contenção do vírus”.
As famílias
e as empresas requerem uma ajuda vital da parte dos Estados-membros, o que
implica o aumento drástico dos “níveis de financiamento do setor público”. Porém,
esta resposta orçamental, que é necessária, não é suficiente face à atual
situação. As medidas ao nível da UE “estão a dar o máximo apoio aos esforços
nacionais graças” pelo enquadramento adequado, flexibilização dos auxílios
estatais, ativação da cláusula de derrogação geral do PEC (Pacto de
Estabilidade e Crescimento) e apoio
direto com a reprogramação dos fundos europeus.
Enaltecendo
a Iniciativa de Investimento de Resposta à Crise do Coronavírus (CRII), lançada sob a sua responsabilidade, aponta a
mobilização de todos os recursos disponíveis ao abrigo da política de coesão,
com cujos fundos “estão a ser compradas máscaras e ventiladores em Espanha,
está a ser apoiado o teletrabalho e a teleaprendizagem, em Itália, a ajuda de
emergência às PME, na República Checa e na Lituânia, e a investigação, teste e
desenvolvimento em Portugal de produtos de luta contra a Covid-19. Contudo,
deixa claro que, mesmo
necessárias, estas respostas de emergência “implicam riscos a médio e longo
prazo, se não forem acompanhadas por uma rede de segurança europeia robusta”,
pois já se vislumbra o “risco de recuperação assimétrica”. E explica:
“As estruturas económicas dos Estados-membros e das regiões são muito
diferentes, estando algumas delas dependentes de setores que podem levar mais
tempo a recuperar, como o turismo, os transportes ou a cultura. Também a taxa
de infeção e a escala da doença evoluíram de forma diferente nos 27. Além
disso, vários Estados-membros e regiões têm uma grande capacidade para apoiar
as suas economias, enquanto outros, não só não têm recursos, como esgotaram a
margem de manobra orçamental para investimentos.”.
Considerando
que “as vulnerabilidades e disparidades que já existiam tendem a agravar-se em
tempos de crise”, diz em analepse:
“Aquando dos choques petrolíferos dos anos setenta, regiões com
economias baseadas nos serviços adaptaram-se rapidamente e prosperaram na nova
realidade, enquanto outras, mais dependentes do setor secundário, passaram por
dificuldades durante décadas. O mesmo aconteceu com a crise financeira de 2008
– algumas regiões levantaram-se rapidamente, enquanto outras só recuperaram
muito lentamente. Em ambas as crises, o ajustamento a longo prazo e a perda de
postos de trabalho ficaram associados à instabilidade política e a um aumento
do populismo. Tudo indica que o
aumento das assimetrias inter e intranacionais decorrente da presente crise
poderá ser ainda mais violento.”.
Por isso, serão
essenciais os instrumentos à escala da UE para colmatar as diferenças de
capacidades nacionais. Com efeito, desde a criação do mercado único europeu, o
PIB da UE terá aumentado em cerca de 8-9 %; e o seu desaparecimento poderia
custar a alguns Estados-membros até 15-20 % do seu rendimento per capita real. Mais: os benefícios do mercado
único ultrapassam em muito as contribuições dos Estados-membros para o
orçamento europeu.
Depois,
enumera as grandes medidas já tomadas: o forte compromisso do BCE na proteção
da área do euro; o SURE (instrumento
europeu de apoio para atenuar os riscos de desemprego em situação de
emergência), que,
assente em linhas de crédito, ajudará a proteger o emprego e os trabalhadores (as linhas
de crédito preventivas do Mecanismo Europeu de Estabilidade, adaptadas às
circunstâncias, apoiarão o financiamento das despesas diretas e indiretas de
saúde); e a capacidade reforçada de
empréstimo do BEI, que “proporcionará apoio às empresas em dificuldade”.
Todavia,
preconiza a urgência dum elemento suplementar: um Fundo de Recuperação, ancorado no orçamento multianual da UE e com
“um programa maciço de investimento” que favoreça a convergência para relançar
o crescimento da economia e do emprego, que espelhe “os objetivos comuns
europeus, década após década”, que responda “às necessidades atuais” e que seja
capaz de promover “níveis sustentados de investimento público”. Na verdade, se
os empréstimos já estão disponíveis por diversas vias, urge agora “reforçar o
investimento inteligente, rápido e direcionado que inclua subvenções”, ou seja,
é preciso “inovar para uma recuperação económica sustentada e para uma saída
coesa da crise”.
Nesta ordem
de ideias e de ação, são essenciais as soluções regionais de base local que
visem a coesão e a convergência em toda a UE, com o máximo apoio financeiro aos
mais vulneráveis, para se evitar o risco duma recuperação assimétrica e dum
desenvolvimento económico cada vez mais divergente entre os Estados-membros e
no interior dos Estados. Embora os pacotes de medidas de resposta ao
coronavírus demonstrem a capacidade de adaptação e relevância da política de coesão
em períodos de crise, como já sucedeu em muitas outras ocasiões, “a coesão é
sobretudo uma política de transformação a longo prazo, com um passado
comprovado de promoção da convergência social, económica e territorial”.
Ora, se a
política de coesão foi importante na emergência, será ainda mais essencial na
recuperação. E, neste caminho, à
Europa incumbe a tarefa crucial de regressar aos princípios fundamentais da UE
para preparar o futuro – tais como “a interdependência, a convergência e a
solidariedade” – e levar a que “o nosso modelo económico e social progrida e
abra o caminho para um futuro mais ecológico, digital e equitativo”, pois “só
unidos poderemos vencer a crise”.
***
Face à postura da comissária
para a Coesão e Reformas e à do TC alemão,
pergunto-me se não deveria ser um tribunal da UE a pronunciar-se sobre as
políticas do Euro e da UE. Por outro lado, se os órgãos de soberania eleitos
nos Estados-membros aceitaram a renúncia a parcelas das soberanias nacionais em
prol do projeto europeu, porque não há de fazê-lo o poder judicial de cada país?
Que moral teria o nosso TC em impedir que o BdP participasse na execução da
política monetária do BCE? Justificará a supremacia alemã que o BCE se ajoelhe
ante o TC alemão? E porque não ante o TC português?
Não. Tal como não se aceita a judicialização da política dentro dum
país, não se aceita a judicialização da política europeia por um tribunal dum
Estado-membro.
2020.05.05
– Louro de Carvalho
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