terça-feira, 5 de maio de 2020

Um caso estrambótico de judicialização da política europeia


Enquanto Elisa Ferreira, comissária europeia para a Coesão e Reformas, repete que “só juntos conseguiremos sair da crise socioeconómica” originada pela situação sanitária criada com a Covid-19, fica a saber-se que o Tribunal Constitucional (TC) alemão, embora aprove o programa de compras de dívida pelo BCE, pede a demonstração de “proporcionalidade”.
Na verdade, aquele TC deliberou que o “quantitative easing” não constitui financiamento monetário, o que seria ilegal (um banco central a financiar gastos públicos), mas pediu ao BCE a demonstração da proporcionalidade no cumprimento do seu mandato legal, ou seja, que a ação não tem implicações económicas que ultrapassem o que o BCE está mandatado para fazer.
Apesar de haver quem temesse uma deliberação negativa, o TC considerou que as compras de dívida por parte do BCE – que desde 2015 participa nos mercados de dívida pública da zona euro, comprando obrigações dos países da zona euro – são legais do ponto de vista essencial, pois, como reconhece o TC, não constituem emissão de moeda pelo BCE para financiar défices de Estados. Porém, exige a avaliação da “proporcionalidade” do programa, demonstrando que não houve “efeitos sobre a política económica e orçamental” que tenham sido ilegalmente provocados pelo BCE, na prossecução do seu único mandato que é o da estabilidade dos preços.
Assim, Christine Lagarde, que preside àquela instituição financeira, dispõe de três meses para apresentar esse enquadramento, pois, caso contrário, pelo menos em teoria, o TC pode opor-se a que o banco central alemão continue a participar no programa. Resta saber se os tribunais constitucionais ou organismos equivalentes dos outros Estados-membros da Zona Euro podem fazer o mesmo ou se se trata duma prerrogativa alemã para proteger a sua economia. Pode um tribunal, mesmo superior, de Estado-membro pedir satisfações a uma instituição internacional?   
A Comissão Europeia reagiu à decisão, lembrando a primazia da lei comunitária e o caráter vinculativo dos acórdãos do Tribunal de Justiça europeu. A este respeito, Eric Mamer, porta-voz do executivo comunitário, afirmou na conferência de imprensa diária da Comissão:
Sem prejuízo de uma análise em detalhe da decisão de hoje do Tribunal Constitucional alemão, reafirmamos a primazia da lei europeia e dos acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia. A Comissão Europeia sempre respeitou a independência do BCE na sua implementação de política monetária.”.
Uma deliberação negativa do TC alemão, mas que nunca foi tomada na governança de Mario Draghi (foi tomada agora tardiamente, sabe-se lá porquê), poderia ter colocado em causa o programa que foi e é decisivo para comprimir as taxas de juro dos países da zona euro e limitar a divergência entre os custos de financiamento de uns países e os de outros. Com efeito, o BCE já comprou, no mercado, 2,2 biliões de euros em dívida da zona euro, desde o lançamento deste programa. Mesmo assim, a deliberação vem com a predita solicitação ao BCE, que tem implicações complexas: o tribunal considerou que o BCE poderá ter excedido o seu mandato (estabilidade dos preços) ao não ter em conta, de forma suficiente, os efeitos económicos da sua política.
Os economistas do ING, tendo dúvidas, dizem:
Numa interpretação otimista, estamos perante um cão que ladra muito, mas não morderá, e que tudo ficará bem desde que o BCE demonstre que ponderou seriamente as consequências económicas que as suas decisões teriam. Mas uma leitura pessimista vê aqui um risco de que a argumentação que o BCE vier a produzir, seja ela qual for, não será capaz de convencer os juízes alemães e, por essa razão, ditar o fim do quantitative easing.”.
O TC salientou que a decisão de agora diz respeito ao programa de “quantitative easing(QE) lançado em 2015 e não “a quaisquer medidas de assistência financeira tomadas pela UE ou pelo BCE no contexto da atual crise causada pelo coronavírus”. Na verdade, a par do QE, o BCE lançou um programa de compras de dívida, no valor de 750 mil milhões de euros, especialmente vocacionado para conter o impacto da crise causada pela pandemia Covid-19.
***
Entretanto, Elisa Ferreira, acima referenciada, fala ao Observador na urgência de “assegurar um Fundo de Recuperação capaz de concretizar um programa maciço de investimento e favorecer a convergência de forma a relançar o crescimento da economia e do emprego”.
Considerando que a Europa sobreviveu a muitas crises, frisa que “estamos perante a maior ameaça das últimas décadas às nossas vidas, sociedades e economias”, pois, nestes 60 anos da UE, não houve “uma perturbação tão súbita e generalizada do nosso tecido social e económico”. Os sistemas de saúde travam a batalha diária “contra a tragédia das vidas perdidas”; empresas viáveis perdem clientes e mercados e enfrentam a falência iminente; os cidadãos receiam pelo emprego e pela subsistência; e muitos ficaram subitamente sem trabalho. E ilustra a realidade com uma expressiva dupla imagem: 
Se, em 2008, durante a crise financeira, tivemos de construir um salva-vidas no meio da tempestade, em 2020 estamos a coser máscaras em plena pandemia”.
É certo que a prioridade continuará a ser a saúde pública, mas os decisores têm de começar a desenhar “o caminho da Europa rumo à recuperação económica”. Tendo de fazer tudo o que estava ao seu alcance para travar o vírus e atenuar os impactos económicos dele, agora têm de relançar a economia, mas “sem comprometer os esforços de contenção do vírus”.
As famílias e as empresas requerem uma ajuda vital da parte dos Estados-membros, o que implica o aumento drástico dos “níveis de financiamento do setor público”. Porém, esta resposta orçamental, que é necessária, não é suficiente face à atual situação. As medidas ao nível da UE “estão a dar o máximo apoio aos esforços nacionais graças” pelo enquadramento adequado, flexibilização dos auxílios estatais, ativação da cláusula de derrogação geral do PEC (Pacto de Estabilidade e Crescimento) e apoio direto com a reprogramação dos fundos europeus.
Enaltecendo a Iniciativa de Investimento de Resposta à Crise do Coronavírus (CRII), lançada sob a sua responsabilidade, aponta a mobilização de todos os recursos disponíveis ao abrigo da política de coesão, com cujos fundos “estão a ser compradas máscaras e ventiladores em Espanha, está a ser apoiado o teletrabalho e a teleaprendizagem, em Itália, a ajuda de emergência às PME, na República Checa e na Lituânia, e a investigação, teste e desenvolvimento em Portugal de produtos de luta contra a Covid-19. Contudo, deixa claro que, mesmo necessárias, estas respostas de emergência “implicam riscos a médio e longo prazo, se não forem acompanhadas por uma rede de segurança europeia robusta”, pois já se vislumbra o “risco de recuperação assimétrica”. E explica:
As estruturas económicas dos Estados-membros e das regiões são muito diferentes, estando algumas delas dependentes de setores que podem levar mais tempo a recuperar, como o turismo, os transportes ou a cultura. Também a taxa de infeção e a escala da doença evoluíram de forma diferente nos 27. Além disso, vários Estados-membros e regiões têm uma grande capacidade para apoiar as suas economias, enquanto outros, não só não têm recursos, como esgotaram a margem de manobra orçamental para investimentos.”.
Considerando que “as vulnerabilidades e disparidades que já existiam tendem a agravar-se em tempos de crise”, diz em analepse:  
Aquando dos choques petrolíferos dos anos setenta, regiões com economias baseadas nos serviços adaptaram-se rapidamente e prosperaram na nova realidade, enquanto outras, mais dependentes do setor secundário, passaram por dificuldades durante décadas. O mesmo aconteceu com a crise financeira de 2008 – algumas regiões levantaram-se rapidamente, enquanto outras só recuperaram muito lentamente. Em ambas as crises, o ajustamento a longo prazo e a perda de postos de trabalho ficaram associados à instabilidade política e a um aumento do populismo. Tudo indica que o aumento das assimetrias inter e intranacionais decorrente da presente crise poderá ser ainda mais violento.”.
Por isso, serão essenciais os instrumentos à escala da UE para colmatar as diferenças de capacidades nacionais. Com efeito, desde a criação do mercado único europeu, o PIB da UE terá aumentado em cerca de 8-9 %; e o seu desaparecimento poderia custar a alguns Estados-membros até 15-20 % do seu rendimento per capita real. Mais: os benefícios do mercado único ultrapassam em muito as contribuições dos Estados-membros para o orçamento europeu.
Depois, enumera as grandes medidas já tomadas: o forte compromisso do BCE na proteção da área do euro; o SURE (instrumento europeu de apoio para atenuar os riscos de desemprego em situação de emergência), que, assente em linhas de crédito, ajudará a proteger o emprego e os trabalhadores (as linhas de crédito preventivas do Mecanismo Europeu de Estabilidade, adaptadas às circunstâncias, apoiarão o financiamento das despesas diretas e indiretas de saúde); e a capacidade reforçada de empréstimo do BEI, que “proporcionará apoio às empresas em dificuldade”.
Todavia, preconiza a urgência dum elemento suplementar: um Fundo de Recuperação, ancorado no orçamento multianual da UE e com “um programa maciço de investimento” que favoreça a convergência para relançar o crescimento da economia e do emprego, que espelhe “os objetivos comuns europeus, década após década”, que responda “às necessidades atuais” e que seja capaz de promover “níveis sustentados de investimento público”. Na verdade, se os empréstimos já estão disponíveis por diversas vias, urge agora “reforçar o investimento inteligente, rápido e direcionado que inclua subvenções”, ou seja, é preciso “inovar para uma recuperação económica sustentada e para uma saída coesa da crise”.  
Nesta ordem de ideias e de ação, são essenciais as soluções regionais de base local que visem a coesão e a convergência em toda a UE, com o máximo apoio financeiro aos mais vulneráveis, para se evitar o risco duma recuperação assimétrica e dum desenvolvimento económico cada vez mais divergente entre os Estados-membros e no interior dos Estados. Embora os pacotes de medidas de resposta ao coronavírus demonstrem a capacidade de adaptação e relevância da política de coesão em períodos de crise, como já sucedeu em muitas outras ocasiões, “a coesão é sobretudo uma política de transformação a longo prazo, com um passado comprovado de promoção da convergência social, económica e territorial”.
Ora, se a política de coesão foi importante na emergência, será ainda mais essencial na recuperação. E, neste caminho, à Europa incumbe a tarefa crucial de regressar aos princípios fundamentais da UE para preparar o futuro – tais como “a interdependência, a convergência e a solidariedade” – e levar a que “o nosso modelo económico e social progrida e abra o caminho para um futuro mais ecológico, digital e equitativo”, pois “só unidos poderemos vencer a crise”.
***
Face à postura da comissária para a Coesão e Reformas e à do TC alemão, pergunto-me se não deveria ser um tribunal da UE a pronunciar-se sobre as políticas do Euro e da UE. Por outro lado, se os órgãos de soberania eleitos nos Estados-membros aceitaram a renúncia a parcelas das soberanias nacionais em prol do projeto europeu, porque não há de fazê-lo o poder judicial de cada país? Que moral teria o nosso TC em impedir que o BdP participasse na execução da política monetária do BCE? Justificará a supremacia alemã que o BCE se ajoelhe ante o TC alemão? E porque não ante o TC português?
Não. Tal como não se aceita a judicialização da política dentro dum país, não se aceita a judicialização da política europeia por um tribunal dum Estado-membro.
2020.05.05 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário