segunda-feira, 25 de maio de 2020

A propósito do uso da mitra pelo Papa e pelos Bispos


A irmã Mercedes Loring (de 95 anos), da Congregação das Irmãs da Assunção, fundada em 1839, em Paris, por Anne-Eugenie Milleret de Brou (Maria Eugénia de Jesus, na vida consagrada), se tivesse possibilidade de realizar o sonho de ver o Papa, pedir-lhe-ia que tirasse a mitra a si mesmo e aos bispos. Com efeito, desde sempre, as mitras episcopais lhe pareceram ‘gorros ridículos’.
É uma voz com autoridade moral, visto que nasceu numa família rica e empreendedora, mas a quem, segundo conta, “comunistas agressivos” mataram o pai, ficando a mãe viúva aos 35 anos, com 5 filhas e 3 filhos, como se pode ler no site da “Fraternitas”, e passando a família a viver na pobreza e na fome, sujeita à ajuda de outras famílias. Entretanto, Mercedes Loring, deixada a vida de dançarina aos 20 anos e feita religiosa, dedicou a vida a promover os pobres no Equador e na Espanha. Daí, apesar de a guerra civil lhe ter lesado gravemente a família, lamenta que os bispos espanhóis, embora nem todos, estejam encostados à direita política, ousando dizer que a hierarquia da Igreja espanhola tem que deixar de estar tão vinculada à direita e abandonar o poder, porque Cristo não o quer e o povo também não, e recomendar aos prelados que façam como o Papa Francisco, que é simples e humilde e está com os pobres.
***
Talvez valha a pena ver o que se passa com a mitra, teoricamente branca.
mitra (do grego μίτρα: cinta, faixa para a cabeça, diadema) é uma cobertura, fendida, da cabeça, de duas peças rígidas, de forma pentagonal, terminadas em ponta, chamadas corno ou cúspides, costuradas pelos lados e unidas por cima por um tecido, podendo ser dobradas conjuntamente. As duas cúspides superiores são livres e, na parte inferior, forma-se um espaço que lhe permite circundar a cabeça. Na zona posterior, duas faixas franjadas, as ínfulas, descem até às espáduas.
É insígnia pontifical utilizada pelos prelados da Igrejas católica, ortodoxa e anglicana: Papa, cardeais, arcebispos, bispos e abades. E houve privilégio, embora limitado, de concessão do uso a prelados menores: dignitários de cabido, prelado da Cúria Romana e Protonotários. E chegou a ser permitida às abadessas de mosteiros femininos. Trata-se da cobertura de cabeça prelatícia de cerimónia, pelo que é utilizável em algumas celebrações com determinado impacto litúrgico.
De origem romana, deriva do camelauco, uma cobertura, não litúrgica, da cabeça, exclusiva do Papa, da qual teve origem também a tiara e, segundo alguns, também o camauro.
camauro (do latim camelaucum; e este do grego καμιλαυκίον – kamelauchíon, significa “chapéu de pele de camelo”, talvez de κάμιλος: corda, ou de κάμηλος: camelo, pelo uso da pele. Alguns autores afirmaram ser corruptela de καλυμμαύχιον, de καλυμμα: véu) é um gorro usado pelo Papa no inverno. É vermelho com bordas brancas de arminho. Bastante utilizado na Idade Média, caiu em desuso nos últimos tempos. Antes de Bento XVI, que o usou em 2005, por alegadamente sentir frio, o último Papa a aparecer de camauro em público foi São João XXIII.
camelauco (de etimologia igual à de camauro), é um barrete frígio, cónico, alto, de tecido branco, que do Oriente passou a Roma, simbolizando a liberdade face ao poder político e sendo, pelo fim do século IV, adotado pelos papas. Porém, não se confirma, historicamente, a afirmação de que o Papa Silvestre I o tenha recebido de Constantino I , em sinal da liberdade da Igreja. O certo é que os papas usavam, inicialmente o camelauco, símbolo tradicional de soberania oriental, sendo uma peça distinta da mitra dos bispos.
Que o camelauco era usado antes do século VIII, é referido na biografia do Papa Constantino inserida no “Liber Pontificalis”. Segundo o nono ‘’Ordo’’, o camelauco era confecionado dum material branco e em forma de capacete. As moedas dos papas Sérgio III e Bento VII, segundo as quais São Pedro usava um camelauco, dão-lhe a forma de cone, que é a forma original da mitra. O camelauco foi usado pelos papas sobretudo nas procissões solenes. A mitra evoluiu do camelauco, no curso do século X, quando o Papa começou a usar a mitra nas procissões à igreja e no serviço religioso subsequente. Não se pode afirmar que tenha havido alguma influência do ornamento de cabeça sacerdotal do sumo sacerdote veterotestamentário Foi só depois de a mitra estar a ser universalmente usada pelos bispos que se levantou a hipótese de ela ser uma imitação da cobertura de cabeça sacerdotal hebraica.
Janice Bennett, no livro “Sacred Blood, sacred Image”, menciona a tradição seguida por Tadei de Edessa segundo a qual, no cristianismo, a mitra se desenvolveu a partir da prática de São Pedro colocar o Sudário de Cristo na sua própria cabeça como símbolo dum ministério curativo, facto que não tem respaldo histórico ou teológico.
Alguns autores creem que o uso da mitra é anterior aos tempos apostólicos, portanto anterior ao cristianismo; outros dizem que remonta aos séculos VIII ou IX; e outros afirmam que surgiu por volta do início do 2.º milénio, sendo dantes usado um ornamento para a cabeça na forma de grinalda ou coroa. O certo é que um ornamento episcopal para a cabeça, em forma de faixa, nunca existiu em Europa ocidental e que a mitra foi usada primeiro em Roma por volta da metade do século X, e fora de Roma no ano 1000 (vd “Die liturgische Gewandung im Occident und Orient”, pp. 431-48). A mitra é descrita pela primeira vez em duas miniaturas do começo do século XI: uma delas está num registo batismal; a outra num pergaminho do Exultet, da catedral de Bari (Itália). A primeira referência escrita sobre a mitra é duma bula de 1049 do Papa Leão IX, anteriormente bispo de Toul (França), que confirmou a primazia da Sé de Tréveris ao Bispo Eberardo de [Tréveris]], anteriormente seu metropolita que o tinha acompanhado a Roma. Como sinal desta primazia, Leão IX concedeu ao Bispo Eberardo a mitra romana, que a poderia usar de acordo com o costume romano ao executar os ofícios da Igreja. E, pelos anos 1100 a 1150, já o uso da mitra se havia generalizado entre os bispos.
Todavia, os cardeais já usavam a mitra no fim do século XI, provavelmente tendo adquirido este direito na primeira metade daquele século. E Leão IX concedeu, em 1051, este privilégio aos cónegos da catedral de Besançon. A primeira concessão da mitra a um abade data do ano 1063, quando o Papa Alexandre II a concedeu ao abade Egelsino, na Abadia de Santo Agostinho, em Cantuária. Desde então as concessões aos abades foram aumentando até se generalizarem.
Também aos príncipes cristãos foi concedida, por vezes, a permissão de usar a mitra, como uma marca da distinção. Assim, o Duque Wratislaw, na Boémia recebeu este privilégio do Papa Alexandre II e Pedro de Aragão recebeu-o do Papa Inocêncio III. E também o Imperador alemão gozou de idêntico privilégio.
O Cerimonial dos Bispos distingue dois tipos de mitra: ornada e simples. A Ornada é guarnecida de adornos mais ou menos ricos. As mitras ornadas dividem-se em: Preciosa (Pretiosa), decorada com pedras preciosas e ouro; Aurifrisada (Auriphrygiata), de tecido liso de ouro ou seda branca bordada a ouro e prata; e Faixada, com duas faixas ornamentais ou galões, uma (circulus) na borda mais baixa, e outra (titulus) em posição vertical, no meio de cada pala. A Simples é inteiramente de tecido branco, interna e externamente, sem ornamentos, nem mesmo nas ínfulas, que têm franjas vermelhas. É de linho para os bispos e de seda adamascada branca para os cardeais. O Papa usa três tipos de mitra: a Gloriosa, ornada de pedras preciosas e dum círculo de ouro que lhe forma a base (nesta categoria, inclui-se a mitra com a tripla faixa dourada); a Preciosa, ricamente decorada, mas sem o círculo da base; e a Argêntea, de lhama de prata, correspondente à mitra simples dos bispos. Se a mitra papal tiver o formato duma coroa tripla, é chamada tiara papal ou triregnum. O seu uso foi abandonado pelo Papa São Paulo VI, que adotou a mitra comum para enfatizar a índole pastoral da autoridade pontifícia em detrimento de qualquer resquício de poder político.
A origem da tiara é incerta. Os historiadores assentam em que é lendária a afirmação de o Papa Silvestre I (314-335) ter recebido a tiara do Imperador Constantino. Segundo M. Pfeffel, Clóvis I ofereceu ao Papa Símaco a tiara na igreja de São Martinho, em Tours no século V. Porém, um ornamento branco usado na cabeça pelo Papa – o camelaucum ou frigium – é registado na biografia do Papa Constantino do “Liber Pontificalis”. Para James Noonan-Charles e Bruno Heim, a mais baixa das três coroas apareceu na base da chapelaria branca tradicional dos papas no século IX, quando eles assumiram efetivamente o poder temporal nos Estados Pontifícios. A coroa da base foi decorada com joias para se assemelhar à coroa principesca, pelo que passou a chamar-se Regnum. O termo “tiara” é citado pela primeira vez na biografia do Papa Pascoal II, no “Liber Pontificalis”, em 1118. Heim supõe que a segunda coroa foi adicionada pelo Papa Bonifácio VIII em 1298, aquando do confronto com Filipe, o Belo (Rei da França), para mostrar que a autoridade espiritual era superior à autoridade civil. E a tiara passou a denominar-se Biregnum. Contudo, um afresco da Capela de São Silvestre (consagrada em 1247) na igreja Santi Quattro Coronati (Roma) representa o Papa com a tiara de pano de duas coroas, o que indica que o Biregnum tem origem anterior. E os historiadores divergem quanto à data e quem acrescentou a terceira coroa, com a qual a tiara passou a denominar-se Triregnum. São sugeridos os papas João XXII (1316-1334), Urbano V (1362-1370), Clemente V (1305-1314), Bento XI (1303-1304), ou Bento XII (justamente em 1334). Mostra no Papa o tríplice múnus de Cristo: profético, sacerdotal e régio-pastoral – bem como a cúpula do “poder” eclesial, ficando o serviço para trás.
***
O pior é que a mitra (ou a tiara) passou de objeto utilitário ou de símbolo do poder e superioridade social e política a objeto sagrado. E o Cerimonial dos Bispos manda que mitra, anel e báculo sejam abençoados antes da ordenação episcopal sendo que a primeira imposição deve ser feita durante o rito, depois da imposição dos livro dos Evangelhos. Daí até a mitra ganhar significado crístico foi um passo: parece a boca dum peixe (que era a senha dos cristãos até ao ano 313) voltada ao alto e a encimar a cabeça do bispo, Alter Christus com a plenitude do sacerdócio.
Recorde-se a simplificação a que o Cerimonial dos Bispos procedeu. A paramentação do Bispo para Missa de Pontifical, após tirar a mozeta e o roquete, incluía: polainas; cáligas; amito; alva; cíngulo; estola; tunicela; dalmática; casula; manípulo; cruz peitoral; quirotecas; anel; mitra; e báculo. Mantêm-se alva e cíngulo, estola, casula, cruz, anel, mitra e báculo. Só ficaria bem simplificar ainda mais. Ou então porque não atribuir ao Bispo o uso da tiara?
A mitra já não faz sentido, muito menos com os espécimes vários acima referidos, se até nem a pode o Bispo usar enquanto faz orações. E não veríamos bispos a utilizá-la de forma incorreta. O solidéu basta para assinalar a figura do Bispo na assembleia litúrgica. Todavia, a mitra não estorva a profecia, o sacerdócio e o pastoreio episcopais. E o báculo do bispo-pastor poderia ser bem mais simples, tal como o anel. O que importa é a voz, a orientação e o testemunho!
2020.05.25 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário