A irmã
Mercedes Loring (de 95 anos), da Congregação das Irmãs da
Assunção, fundada em 1839, em Paris, por Anne-Eugenie Milleret de Brou (Maria
Eugénia de Jesus, na vida consagrada),
se tivesse possibilidade de realizar o sonho de ver o Papa, pedir-lhe-ia que
tirasse a mitra a si mesmo e aos bispos. Com efeito, desde sempre, as mitras
episcopais lhe pareceram ‘gorros ridículos’.
É uma
voz com autoridade moral, visto que nasceu numa família rica e empreendedora,
mas a quem, segundo conta, “comunistas agressivos” mataram o pai, ficando a mãe
viúva aos 35 anos, com 5 filhas e 3 filhos, como se pode ler no site da “Fraternitas”, e passando a família a
viver na pobreza e na fome, sujeita à ajuda de outras famílias. Entretanto, Mercedes
Loring, deixada a vida de dançarina aos 20 anos e feita religiosa, dedicou a
vida a promover os pobres no Equador e na Espanha. Daí, apesar de a guerra
civil lhe ter lesado gravemente a família, lamenta que os bispos espanhóis,
embora nem todos, estejam encostados à direita política, ousando dizer que a
hierarquia da Igreja espanhola tem que deixar de estar tão vinculada à direita
e abandonar o poder, porque Cristo não o quer e o povo também não, e recomendar
aos prelados que façam como o Papa Francisco, que é simples e humilde e está
com os pobres.
***
Talvez
valha a pena ver o que se passa com a mitra, teoricamente branca.
A mitra (do grego μίτρα: cinta, faixa para a cabeça, diadema) é uma cobertura, fendida, da
cabeça, de duas peças rígidas, de forma pentagonal, terminadas em ponta, chamadas corno ou cúspides,
costuradas pelos lados e unidas por cima por um tecido, podendo ser dobradas
conjuntamente. As duas cúspides superiores são livres e, na parte inferior,
forma-se um espaço que lhe permite circundar a cabeça. Na zona posterior, duas
faixas franjadas, as ínfulas, descem até às espáduas.
É insígnia pontifical utilizada pelos prelados
da Igrejas católica, ortodoxa e anglicana: Papa, cardeais, arcebispos,
bispos e abades. E houve privilégio, embora limitado, de concessão do uso a
prelados menores: dignitários de cabido, prelado da Cúria
Romana e Protonotários. E chegou a ser permitida às abadessas
de mosteiros femininos. Trata-se da cobertura de cabeça prelatícia de
cerimónia, pelo que é utilizável em algumas celebrações com determinado impacto
litúrgico.
De
origem romana, deriva do camelauco, uma cobertura, não litúrgica, da
cabeça, exclusiva do Papa, da qual teve origem também a tiara e, segundo
alguns, também o camauro.
O camauro (do latim camelaucum; e este do grego καμιλαυκίον – kamelauchíon, significa “chapéu
de pele de camelo”, talvez
de κάμιλος: corda, ou de κάμηλος: camelo, pelo uso da pele. Alguns autores
afirmaram ser corruptela de καλυμμαύχιον, de καλυμμα: véu) é um gorro usado pelo Papa no
inverno. É vermelho com bordas brancas de arminho. Bastante utilizado
na Idade Média, caiu em desuso nos últimos tempos. Antes de Bento XVI, que
o usou em 2005, por alegadamente sentir frio, o último Papa a aparecer de camauro
em público foi São João XXIII.
O camelauco (de
etimologia igual à de camauro), é um barrete frígio, cónico, alto, de tecido branco,
que do Oriente passou a Roma, simbolizando a liberdade face
ao poder político e sendo, pelo fim do século IV, adotado pelos papas.
Porém, não se confirma,
historicamente, a afirmação de que o Papa Silvestre I o tenha
recebido de Constantino I , em sinal da liberdade da Igreja. O
certo é que os papas usavam, inicialmente o camelauco, símbolo tradicional
de soberania oriental, sendo uma peça distinta da mitra dos bispos.
Que o
camelauco era usado antes do século VIII, é referido na biografia do Papa
Constantino inserida no “Liber
Pontificalis”. Segundo o nono ‘’Ordo’’,
o camelauco era confecionado dum material branco e em forma de capacete. As
moedas dos papas Sérgio III e Bento VII, segundo as quais São
Pedro usava um camelauco, dão-lhe a forma de cone, que é a forma
original da mitra. O camelauco foi usado pelos papas sobretudo nas
procissões solenes. A mitra evoluiu do camelauco, no curso do século X,
quando o Papa começou a usar a mitra nas procissões à igreja e no serviço
religioso subsequente. Não se pode afirmar que tenha havido alguma influência
do ornamento de cabeça sacerdotal do sumo sacerdote veterotestamentário Foi só
depois de a mitra estar a ser universalmente usada pelos bispos que se levantou
a hipótese de ela ser uma imitação da cobertura de cabeça sacerdotal hebraica.
Janice
Bennett, no livro “Sacred Blood, sacred
Image”, menciona a tradição seguida por Tadei de Edessa segundo a
qual, no cristianismo, a mitra se desenvolveu a partir da prática de São
Pedro colocar o Sudário de Cristo na sua própria cabeça como símbolo dum
ministério curativo, facto que não tem respaldo histórico ou teológico.
Alguns
autores creem que o uso da mitra é anterior aos tempos apostólicos,
portanto anterior ao cristianismo; outros dizem que remonta aos séculos
VIII ou IX; e outros afirmam que surgiu por volta do início do 2.º milénio, sendo dantes usado um ornamento
para a cabeça na forma de grinalda ou coroa. O certo é que um ornamento
episcopal para a cabeça, em forma de faixa, nunca existiu em Europa ocidental e
que a mitra foi usada primeiro em Roma por volta da metade
do século X, e fora de Roma no ano 1000 (vd “Die liturgische Gewandung im Occident und Orient”, pp. 431-48). A mitra é descrita pela primeira
vez em duas miniaturas do começo do século XI: uma delas está num registo
batismal; a outra num pergaminho do Exultet, da catedral de Bari
(Itália). A primeira referência escrita sobre
a mitra é duma bula de 1049 do Papa Leão IX, anteriormente bispo
de Toul (França), que confirmou a primazia da Sé
de Tréveris ao Bispo Eberardo de [Tréveris]], anteriormente seu
metropolita que o tinha acompanhado a Roma. Como sinal desta primazia,
Leão IX concedeu ao Bispo Eberardo a mitra romana, que a poderia usar de
acordo com o costume romano ao executar os ofícios da Igreja. E, pelos
anos 1100 a 1150, já o uso da mitra se havia generalizado entre os bispos.
Todavia, os
cardeais já usavam a mitra no fim do século XI, provavelmente tendo
adquirido este direito na primeira metade daquele século. E Leão IX concedeu,
em 1051, este privilégio aos cónegos da catedral de Besançon. A primeira
concessão da mitra a um abade data do ano 1063, quando o Papa
Alexandre II a concedeu ao abade Egelsino, na Abadia de Santo
Agostinho, em Cantuária. Desde então as concessões aos abades foram
aumentando até se generalizarem.
Também
aos príncipes cristãos foi concedida, por vezes, a permissão de usar
a mitra, como uma marca da distinção. Assim, o Duque Wratislaw, na Boémia recebeu
este privilégio do Papa Alexandre II e Pedro de Aragão recebeu-o do Papa
Inocêncio III. E também o Imperador alemão gozou de idêntico privilégio.
O Cerimonial dos Bispos distingue dois
tipos de mitra: ornada e simples. A Ornada é guarnecida
de adornos mais ou menos ricos. As mitras ornadas dividem-se em: Preciosa
(Pretiosa), decorada com pedras preciosas e ouro; Aurifrisada
(Auriphrygiata), de tecido liso de ouro ou seda branca bordada a ouro
e prata; e Faixada, com duas faixas ornamentais ou galões, uma (circulus) na borda mais baixa, e outra (titulus) em posição vertical, no meio de cada pala. A Simples é
inteiramente de tecido branco, interna e externamente, sem ornamentos, nem
mesmo nas ínfulas, que têm franjas vermelhas. É de linho para os bispos e
de seda adamascada branca para os cardeais. O Papa usa três tipos de mitra: a Gloriosa, ornada de pedras preciosas e dum
círculo de ouro que lhe forma a base (nesta categoria, inclui-se
a mitra com a tripla faixa dourada);
a Preciosa, ricamente decorada, mas
sem o círculo da base; e a Argêntea,
de lhama de prata, correspondente à mitra simples dos bispos. Se a mitra papal tiver
o formato duma coroa tripla, é chamada tiara
papal ou triregnum. O seu uso foi abandonado pelo Papa
São Paulo VI, que adotou a mitra comum para enfatizar a índole pastoral da
autoridade pontifícia em detrimento de qualquer resquício de poder político.
A origem da
tiara é incerta. Os historiadores assentam em que é lendária a afirmação de
o Papa Silvestre I (314-335) ter recebido a tiara do Imperador Constantino. Segundo
M. Pfeffel, Clóvis I ofereceu ao Papa Símaco a tiara na
igreja de São Martinho, em Tours no século
V. Porém, um ornamento branco usado na cabeça pelo Papa – o camelaucum ou frigium – é registado na biografia do Papa Constantino do
“Liber Pontificalis”. Para James
Noonan-Charles e Bruno Heim, a mais baixa das três coroas apareceu na
base da chapelaria branca tradicional dos papas no século IX, quando eles
assumiram efetivamente o poder temporal nos Estados Pontifícios. A coroa
da base foi decorada com joias para se assemelhar à coroa principesca,
pelo que passou a chamar-se Regnum. O termo “tiara” é citado pela
primeira vez na biografia do Papa Pascoal II, no “Liber Pontificalis”, em 1118. Heim supõe
que a segunda coroa foi adicionada pelo Papa Bonifácio VIII em 1298,
aquando do confronto com Filipe, o Belo (Rei da França), para mostrar que a autoridade espiritual era superior à
autoridade civil. E a tiara passou a denominar-se Biregnum. Contudo, um
afresco da Capela de São Silvestre (consagrada em 1247) na igreja Santi
Quattro Coronati (Roma) representa o Papa com a tiara de
pano de duas coroas, o que indica que o Biregnum
tem origem anterior. E os historiadores divergem quanto à data e quem
acrescentou a terceira coroa, com a qual a tiara passou a denominar-se Triregnum.
São sugeridos os papas João XXII (1316-1334), Urbano V (1362-1370), Clemente V (1305-1314), Bento XI (1303-1304), ou Bento XII (justamente em 1334). Mostra no Papa o tríplice múnus de Cristo:
profético, sacerdotal e régio-pastoral – bem como a cúpula do “poder” eclesial,
ficando o serviço para trás.
***
O pior é que
a mitra (ou a tiara) passou de objeto utilitário ou de símbolo
do poder e superioridade social e política a objeto sagrado. E o Cerimonial dos
Bispos manda que mitra, anel e báculo sejam
abençoados antes da ordenação episcopal sendo que a primeira
imposição deve ser feita durante o rito, depois da imposição dos livro dos
Evangelhos. Daí até a mitra ganhar significado crístico foi um passo:
parece a boca dum peixe (que
era a senha dos cristãos até ao ano 313) voltada ao alto e a
encimar a cabeça do bispo, Alter Christus
com a plenitude do sacerdócio.
Recorde-se a simplificação
a que o Cerimonial dos Bispos procedeu. A paramentação do Bispo para Missa de
Pontifical, após tirar a mozeta e o roquete, incluía: polainas; cáligas; amito;
alva; cíngulo; estola; tunicela; dalmática; casula; manípulo; cruz peitoral;
quirotecas; anel; mitra; e báculo. Mantêm-se alva e cíngulo, estola, casula,
cruz, anel, mitra e báculo. Só ficaria bem simplificar ainda mais. Ou então
porque não atribuir ao Bispo o uso da tiara?
A mitra já não
faz sentido, muito menos com os espécimes vários acima referidos, se até nem a
pode o Bispo usar enquanto faz orações. E não veríamos bispos a utilizá-la de forma
incorreta. O solidéu basta para assinalar a figura do Bispo na assembleia
litúrgica. Todavia, a mitra não estorva a profecia, o sacerdócio e o pastoreio
episcopais. E o báculo do bispo-pastor poderia ser bem mais simples, tal como o
anel. O que importa é a voz, a orientação e o testemunho!
2020.05.25 – Louro de Carvalho
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