domingo, 26 de agosto de 2018



É a grande afirmação pastoral do Papa Francisco logo no discurso às autoridades, à sociedade civil e ao corpo diplomático, no Castelo de Dublin. Com efeito, referindo-se ao motivo da visita papal, explicitou que era a participação no Encontro Mundial das Famílias. E, porque, na realidade, “a Igreja é uma família de famílias”, é natural que sinta “a necessidade de apoiar as famílias nos seus esforços por responder fiel e jubilosamente à vocação que Deus lhes deu na sociedade”. Para elas, este Encontro é a oportunidade “para reafirmar o compromisso de fidelidade amorosa, ajuda mútua e respeito sagrado pelo dom divino da vida em todas as suas formas”, bem como “para testemunhar o papel único desempenhado pela família na educação dos seus membros e no desenvolvimento de um tecido social sadio e vigoroso”.
Depois, considerou este Encontro “um testemunho profético do rico património de valores éticos e espirituais, que cada geração tem a tarefa de guardar e proteger”, bem como a tomada de consciência das dificuldades que enfrentam as famílias na sociedade atual “em rápida evolução” e da necessidade da preocupação com os efeitos que “o transtorno do matrimónio e da vida familiar inevitavelmente implicará, a todos os níveis, para o futuro das nossas comunidades”. E, de facto, “a família é a coesão da sociedade”, mas, não podendo “o seu bem ser dado como garantido”, deve então “ser promovido e tutelado com todos os meios apropriados”. Nela, cada um “deu os primeiros passos na vida”, aprendendo “a conviver em harmonia”, a controlar os instintos egoístas, “a conciliar as diversidades e, sobretudo, a discernir e procurar os valores que dão sentido autêntico e plenitude à vida”.
Embora consideremos o mundo inteiro como uma só família por reconhecermos os laços da nossa humanidade comum e intuirmos a chamada à unidade e solidariedade, sobretudo para com os irmãos vulneráveis, muitas vezes, contudo – diz o Papa – sentimo-nos impotentes face à persistência dos males do ódio racial e étnico, de conflitos e violências inextrincáveis, de desprezo pela dignidade humana e pelos direitos humanos fundamentais, e ao crescente desnível entre ricos e pobres. Por isso, vem evidenciar a necessidade de recuperar, na vida política e social, o sentido da verdadeira família de povos, sem perder “a esperança e a coragem de perseverar no imperativo moral de sermos obreiros de paz, reconciliadores e guardiões uns dos outros” – isto no fio condutor dos ensinamentos papais logo desde o início do seu Pontificado.
Neste âmbito, recordou os esforços de há 20 anos por parte do Governo irlandês, “juntamente com os líderes políticos, religiosos e civis da Irlanda do Norte e do governo britânico e com o apoio de outros líderes mundiais, de dar vida “a um contexto dinâmico tendente a resolver pacificamente um conflito que causara enormes sofrimentos em ambos os lados”.
Recordando que, segundo o Evangelho, a paz verdadeira é dom de Deus, brota de corações sanados e reconciliados e se estende até abraçar o mundo inteiro, diz que postula, da nossa parte, “uma conversão constante, fonte dos recursos espirituais que são necessários para construir uma sociedade verdadeiramente solidária, justa e ao serviço do bem comum”. Sem isto, “o ideal duma família global de nações de não passará dum “lugar-comum” vazio”. E Francisco denuncia que o objetivo de gerar prosperidade económica ou financeira, em vez de levar a uma ordem social mais justa e equitativa, pode aumentar a “cultura do descarte”, perdido no lodaçal da indiferença para com os pobres e os membros mais indefesos da família humana, incluindo os nascituros privados do próprio direito à vida. Ademais, põe o dedo na chaga da maciça crise migratória tendente a não desaparecer e cuja solução exige sabedoria, perspetivas amplas e a preocupação humanitária que ultrapasse as decisões políticas de curto prazo.
Depois, tendo em conta os mais vulneráveis, o Papa reconheceu publicamente “o grave escândalo causado na Irlanda pelos abusos sobre menores por parte de membros da Igreja encarregados de os proteger e educar” – o que alguns observadores consideram pouco, talvez porque não ouviram ou não leram tudo. Com efeito, Francisco agradecendo as palavras da Ministra para a Infância no aeroporto, reconheceu que “o falimento das autoridades eclesiásticas – bispos, superiores religiosos, sacerdotes e outros – ao enfrentarem adequadamente estes crimes repugnantes, suscitou, justamente, indignação e continua a ser causa de sofrimento e vergonha para a comunidade católica”, sendo que o próprio Pontífice partilha estes sentimentos, o qual salientou o facto de Bento XVI não ter poupado “palavras para reconhecer a gravidade da situação e pedir que fossem tomadas medidas ‘verdadeiramente evangélicas, justas e eficazes’ em resposta a esta traição de confiança”. E mencionou a recente Carta ao Povo de Deus, onde reafirmou “o compromisso, antes, o compromisso maior, de eliminar este flagelo na Igreja a qualquer custo, moral e de sofrimento”. E justificou-se também pela positiva:
Cada criança é um dom precioso de Deus que devemos guardar, encorajar no desenvolvimento dos seus dons e levar à maturidade espiritual e à plenitude humana. A Igreja na Irlanda desempenhou, no passado e no presente, um papel de promoção do bem das crianças que não pode ser ofuscado. A minha esperança é que a gravidade dos escândalos dos abusos, que fizeram emergir as culpas de muitos, sirva para evidenciar a importância da proteção de menores e adultos vulneráveis por parte da sociedade inteira. Neste sentido, todos temos consciência da necessidade urgente de oferecer aos jovens um acompanhamento sábio e valores sadios para o seu caminho de crescimento.”.
E não omitiu referências ao trabalho evangelizador na e da Irlanda desde os tempos de São Patrício e de outros missionários e santos, bem como a toda a evolução político-social do país.
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Na visita à histórica pró-Catedral de Santa Maria – testemunha de inúmeras celebrações do sacramento do matrimónio e agora palco do encontro papal com muitos casais de noivos e de esposos que se encontram nas diferentes fases do percurso do amor sacramental, bem como da bela música das crianças que choram – Francisco responde ao estribilho de que “os jovens não querem casar-se” assegurando: “Casar-se e compartilhar a vida é algo belo”. E abona-o com o ditado espanhol “Dores em dois, dor pela metade”.
Reparando que estavam ali casais com 50 anos de matrimónio, declarou que “o futuro e o passado se encontram no presente”. Na verdade, se os idosos (e também as sogras) possuem a sabedoria, as crianças e os jovens devem escutar a sabedoria e falar com os idosos, porque “eles são as raízes”. As novas gerações, de facto, não são como as antigas, mas precisam da experiência dessas para serem diferentes, para avançarem ainda mais. E, face às experiências conjugais de dificuldade e até discussão, o Papa salienta um segredo, que explica assim:
Podem até voar os pratos, mas o segredo é fazer a paz antes que termine o dia. E para fazer a paz, não é preciso um discurso, basta uma carícia e, assim, faz-se a paz. E sabeis porque é importante? Porque, se não se faz a paz antes de ir para a cama, a ‘guerra fria’ do dia seguinte é demasiado perigosa; começa o rancor... Sim, brigueis o que queirais, mas no final da noite fazei a paz.”.
Depois, salienta o contributo dos casais antigos e modernos:
Crescendo juntos nesta comunidade de vida e de amor, experimentastes muitas alegrias e também, certamente, não poucos sofrimentos. Juntamente com todos os esposos que já percorreram um longo pedaço do caminho, sois os guardiões da nossa memória coletiva. Precisaremos sempre do vosso testemunho, cheio de fé. É um recurso precioso para os noivos, que olham para o futuro com emoção e esperança... e, também, talvez com um pouco de ansiedade: como será este futuro?”.
E, para que o matrimónio se afirme como uma vocação e uma forma de vida duradoura – contra a cultura do provisório –, Francisco indica a necessidade de fazer crescer diariamente o amor e pôr ao serviço da família os meios que a Graça de Deus coloca à nossa disposição. E diz:
Entre todas as formas da fecundidade humana, o matrimónio é único. É um amor que dá origem a uma nova vida. Implica a responsabilidade mútua na transmissão do dom divino da vida e oferece um ambiente estável no qual a nova vida pode crescer e florescer. O matrimónio na Igreja, isto é, o sacramento do matrimónio, participa de modo especial no mistério do amor eterno de Deus. Quando se unem pelo vínculo do matrimónio um homem e uma mulher cristãos, a graça de Deus habilita-os a prometerem-se livremente um ao outro um amor exclusivo e duradouro. Assim, a sua união torna-se sinal sacramental – e isso é importante: o sacramento do matrimónio – torna-se um sinal sacramental da nova e eterna aliança entre o Senhor e a sua esposa, a Igreja. Jesus está sempre presente no meio deles. Sustenta-os ao longo da vida no dom recíproco de si mesmos, na fidelidade e na unidade indissolúvel.”.
Por outro lado, salienta a importância de rezar juntos em família de falar de coisas boas e santas, de deixar que Maria, nossa Mãe, entre na vida da família, de celebrar as festividades cristãs e de viver em profunda solidariedade com aqueles que sofrem e estão à margem da sociedade.
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Na visita ao Centro de Acolhimento dos Padres Capuchinhos para famílias sem casa, dirigindo-se ao superior capuchinho, frisou o carisma dos Capuchinhos de proximidade com o povo e, em especial, com os pobres, tendo “a graça de contemplar as chagas de Jesus em pessoas que passam necessidade, que sofrem, que não são felizes ou que não têm coisa alguma, ou estão cheias de vícios e falhas”. Para eles esta “é a carne de Cristo”.
Dirigindo-se aos pobres, reconheceu que eles ali não pedem nada, só esperam a dádiva. Mais, passando para o caso dos sacerdotes que na confissão cumulam o penitente de perguntas, disse:
O vosso testemunho ensina os sacerdotes a escutar, ser próximos, perdoar e não perguntar muito. Ser simples, como Jesus contou que fez aquele pai, quando o filho voltou cheio de pecados e vícios: o pai não se sentou no confessionário e se pôs a perguntar e perguntar; ele acolheu o arrependimento do filho e abraçou-o. Que o vosso testemunho para o povo de Deus, e este coração capaz de perdoar sem causar sofrimento, alcance todos os sacerdotes.”.
E, considerando que o amor e a confiança destes pobres com os Capuchinhos resulta de eles ajudarem sem arrancar a dignidade dos destinatários, pois cada um destes é Cristo, frisou:
Vós sois a Igreja, sois o povo de Deus. Jesus está convosco. Eles dar-vos-ão coisas de que necessitais, mas escutai os conselhos que eles vos dão: eles sempre vos aconselharão bem. E, se tendes alguma coisa, alguma dúvida, alguma dor, falai com eles, e eles vos aconselharão bem. Sabeis que eles vos querem bem: ao invés, esta obra aqui não existiria. Obrigado pela vossa confiança. E uma última coisa: rezai. Rezai pela Igreja. Rezai pelos sacerdotes. Rezai pelos Capuchinhos. Rezai pelos bispos, pelo vosso Bispo. E rezai por mim também... permito-me pedir um pouco.”.
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No fim do dia 25, foi a Festa das Famílias, no Croke Park Stadium (Dublin) – a 2.ª em que participou Francisco (a 1.ª foi em Filadélfia em 2015, como recordou aos jornalistas no voo de Roma para Dublin) – cuja celebração o Papa reconhece que “nos torna mais humanos e mais cristãos”, ajudando “a partilhar a alegria de saber que Jesus nos ama, acompanha no percurso da vida e, cada dia, nos atrai para mais perto de Si”. E, da noção de família, passa à noção de Igreja:
Em cada celebração familiar, sente-se a presença de todos: pais, mães, avós, netos, tios e tias, primos, quem não pôde vir e quem vive demasiado longe, todos. Hoje, em Dublin, reunimo-nos para uma celebração familiar de ação de graças a Deus pelo que somos: uma única família em Cristo, espalhada por toda a terra. A Igreja é a família dos filhos de Deus; uma família, onde se regozija com aqueles que estão na alegria e se chora com aqueles que estão na tribulação ou se sentem desanimados com a vida. Uma família onde se cuida de cada um, porque Deus nosso Pai nos fez, a todos, seus filhos no Batismo.”.
Daqui resulta a vantagem de os pais levarem ao Batismo os filhos logo que possível, “para que se tornem parte da grande família de Deus”, pois “uma criança com o Batismo, com o Espírito Santo dentro de si, é mais forte, porque tem dentro a força de Deus!”.
E, precisamente, porque, no seu dizer, sem as famílias cristãs, a Igreja ficaria descaraterizada ficando como “uma Igreja de estátuas, uma Igreja de pessoas solitárias”, revelou ter sido para “ajudar a reconhecer a beleza e a importância da família, com as suas luzes e sombras”, que foi escrita a Amoris laetitia, sobre a alegria do amor, e que o tema escolhido para este IX Encontro Mundial das Famílias foi “O Evangelho da família, alegria para o mundo”. Na verdade, “Deus quer que cada família seja um farol que irradia a alegria do seu amor pelo mundo”, ou seja, “que nós, depois de ter encontrado o amor de Deus que salva, procuramos, com palavras ou sem elas, manifestá-lo através de pequenos gestos de bondade na vida rotineira de cada dia e nos momentos mais simples da jornada”. E isto chama-se santidade, a santidade dos santos ‘ao pé da porta’, isto é, “de todas aquelas pessoas comuns que refletem a presença de Deus na vida e na história do mundo”. E disse com toda a clareza:
A vocação ao amor e à santidade não é algo reservado para poucos privilegiados. Não. Mesmo agora, se tivermos olhos para ver, podemos vislumbrá-la ao nosso redor. Está silenciosamente presente no coração de todas as famílias que oferecem amor, perdão, misericórdia, quando veem que há necessidade, e fazem-no tranquilamente, sem tocar a trombeta. O Evangelho da família é, verdadeiramente, alegria para o mundo, visto que lá, nas nossas famílias, sempre se pode encontrar Jesus; lá habita, em simplicidade e pobreza, como fez na casa da Sagrada Família de Nazaré.”.
De facto, segundo o Bispo de Roma, estacionado em Dublin, “o matrimónio cristão e a vida familiar são compreendidos em toda a sua beleza e fascínio, se estiverem ancorados no amor de Deus, que nos criou à sua imagem para podermos dar-Lhe glória como ícones do seu amor e da sua santidade no mundo”.
Depois, mencionando o ensinamento do Padre Peyton, irlandês, referiu que “a família que reza unida permanece unida” e irradia paz, podendo “ser um apoio especial para outras famílias que não vivem em paz”, logrando o perdão, a reconciliação e o reencaminhamento. E enfatizou a importância de se ensinar bem, em família, às crianças o sinal da cruz, porque esta é fonte futura de ensinamento e porque o sinal da cruz “é o primeiro Credo que as crianças aprendem, o Credo no Pai, no Filho e no Espírito Santo”.
Por fim e apesar do notório cansaço geral, ainda pediu que lhe deixassem dizer mais uma coisa:
Vós, famílias, sois a esperança da Igreja e do mundo! Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, criou a humanidade à sua imagem e semelhança para fazê-la participante do seu amor, para que fosse uma família de famílias e gozasse daquela paz que só Ele pode dar. Com o vosso testemunho do Evangelho, podeis ajudar Deus a realizar o seu sonho. Podeis contribuir para aproximar todos os filhos de Deus, para que cresçam na unidade e aprendam o que significa, para o mundo inteiro, viver em paz como uma grande família.”.
Por isso, Francisco quis entregar a cada um dos presentes uma cópia da Amoris laetitia, preparada nos dois Sínodos sobre a família e escrita como uma espécie para se viver com alegria o Evangelho da família. E a sessão festiva encerrou-se com a oração deste Encontro das Famílias e com a bênção papal e o desejo de boa dormida e despedida até ao dia seguinte.
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Talvez seja oportuno assumir esta dimensão da Igreja como “Uma Família de famílias” e perceber que as feridas das famílias, como as da Igreja, não se previnem, curam ou evitam deitando a toalha ao chão, como se diz hoje, ou rasgando as vestes, como faziam os antigos, e, muito menos, enveredando por um estilo de maledicência ou por uma campanha de difamação e de infamação ou de caça ao homem, mas encarando os problemas com todo o realismo humano e toda a caridade evangélica e a necessária solidariedade. Et Deus adiuvet!
2018.08.26 – Louro de Carvalho

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