É a grande afirmação
pastoral do Papa Francisco logo no discurso às autoridades, à sociedade civil e
ao corpo diplomático, no Castelo de Dublin.
Com efeito, referindo-se ao motivo da visita papal, explicitou que era a
participação no Encontro Mundial
das Famílias. E, porque, na realidade, “a
Igreja é uma família de famílias”, é natural que sinta “a necessidade de
apoiar as famílias nos seus esforços por responder fiel e jubilosamente à
vocação que Deus lhes deu na sociedade”. Para elas, este Encontro é a oportunidade
“para reafirmar o compromisso de fidelidade amorosa, ajuda mútua e respeito
sagrado pelo dom divino da vida em todas as suas formas”, bem como “para
testemunhar o papel único desempenhado pela família na educação dos seus
membros e no desenvolvimento de um tecido social sadio e vigoroso”.
Depois,
considerou este Encontro “um testemunho profético
do rico património de valores éticos e espirituais, que cada geração tem a
tarefa de guardar e proteger”, bem como a tomada de consciência das
dificuldades que enfrentam as famílias na sociedade atual “em rápida evolução”
e da necessidade da preocupação com os efeitos que “o transtorno do matrimónio
e da vida familiar inevitavelmente implicará, a todos os níveis, para o futuro
das nossas comunidades”. E, de facto, “a família
é a coesão da sociedade”, mas, não podendo “o seu bem ser dado como
garantido”, deve então “ser promovido e tutelado com todos os meios apropriados”.
Nela, cada um “deu os primeiros passos na vida”, aprendendo “a conviver em
harmonia”, a controlar os instintos egoístas, “a conciliar as diversidades e,
sobretudo, a discernir e procurar os valores que dão sentido autêntico e
plenitude à vida”.
Embora consideremos
o mundo inteiro como uma só família por reconhecermos os laços da nossa
humanidade comum e intuirmos a chamada à unidade e solidariedade, sobretudo
para com os irmãos vulneráveis, muitas vezes, contudo – diz o Papa – sentimo-nos
impotentes face à persistência dos males do ódio racial e étnico, de conflitos
e violências inextrincáveis, de desprezo pela dignidade humana e pelos direitos
humanos fundamentais, e ao crescente desnível entre ricos e pobres. Por isso, vem
evidenciar a necessidade de recuperar, na vida política e social, o sentido da
verdadeira família de povos, sem perder “a esperança e a coragem de perseverar
no imperativo moral de sermos obreiros de paz, reconciliadores e guardiões uns
dos outros” – isto no fio condutor dos ensinamentos papais logo desde o início
do seu Pontificado.
Neste âmbito,
recordou os esforços de há 20 anos por parte do Governo irlandês, “juntamente
com os líderes políticos, religiosos e civis da Irlanda do Norte e do governo
britânico e com o apoio de outros líderes mundiais, de dar vida “a um contexto
dinâmico tendente a resolver pacificamente um conflito que causara enormes
sofrimentos em ambos os lados”.
Recordando que,
segundo o Evangelho, a paz verdadeira é dom de Deus, brota de corações sanados
e reconciliados e se estende até abraçar o mundo inteiro, diz que postula, da
nossa parte, “uma conversão constante,
fonte dos recursos espirituais que são necessários para construir uma sociedade
verdadeiramente solidária, justa e ao serviço do bem comum”. Sem isto, “o
ideal duma família global de nações de não passará dum “lugar-comum” vazio”. E
Francisco denuncia que o objetivo de gerar prosperidade económica ou
financeira, em vez de levar a uma ordem social mais justa e equitativa, pode
aumentar a “cultura do descarte”, perdido no lodaçal da indiferença para com os
pobres e os membros mais indefesos da família humana, incluindo os nascituros
privados do próprio direito à vida. Ademais, põe o dedo na chaga da maciça crise
migratória tendente a não desaparecer e cuja solução exige sabedoria,
perspetivas amplas e a preocupação humanitária que ultrapasse as decisões
políticas de curto prazo.
Depois, tendo
em conta os mais vulneráveis, o Papa reconheceu publicamente “o grave escândalo causado na Irlanda pelos
abusos sobre menores por parte de membros da Igreja encarregados de os proteger
e educar” – o que alguns observadores consideram pouco, talvez porque não
ouviram ou não leram tudo. Com efeito, Francisco agradecendo as palavras da Ministra
para a Infância no aeroporto, reconheceu que “o falimento das autoridades
eclesiásticas – bispos, superiores religiosos, sacerdotes e outros – ao
enfrentarem adequadamente estes crimes repugnantes, suscitou, justamente,
indignação e continua a ser causa de sofrimento e vergonha para a comunidade
católica”, sendo que o próprio Pontífice partilha estes sentimentos, o qual salientou
o facto de Bento XVI não ter poupado “palavras para reconhecer a gravidade da
situação e pedir que fossem tomadas medidas ‘verdadeiramente evangélicas,
justas e eficazes’ em resposta a esta traição de confiança”. E mencionou a
recente Carta ao Povo de Deus, onde reafirmou “o compromisso, antes, o
compromisso maior, de eliminar este flagelo na Igreja a qualquer custo, moral e
de sofrimento”. E justificou-se também pela positiva:
“Cada
criança é um dom precioso de Deus que devemos guardar, encorajar no
desenvolvimento dos seus dons e levar à maturidade espiritual e à plenitude
humana. A Igreja na Irlanda desempenhou, no passado e no presente, um papel de
promoção do bem das crianças que não pode ser ofuscado. A minha esperança é que
a gravidade dos escândalos dos abusos, que fizeram emergir as culpas de muitos,
sirva para evidenciar a importância da proteção de menores e adultos
vulneráveis por parte da sociedade inteira. Neste sentido, todos temos consciência
da necessidade urgente de oferecer aos jovens um acompanhamento sábio e valores
sadios para o seu caminho de crescimento.”.
E não omitiu
referências ao trabalho evangelizador na e da Irlanda desde os tempos de São
Patrício e de outros missionários e santos, bem como a toda a evolução político-social
do país.
***
Na visita à histórica
pró-Catedral de Santa Maria – testemunha de inúmeras celebrações do sacramento
do matrimónio e agora palco do encontro papal com muitos casais de noivos e de esposos
que se encontram nas diferentes fases do percurso do amor sacramental, bem como
da bela música das crianças que choram – Francisco responde ao estribilho de
que “os jovens não querem casar-se” assegurando: “Casar-se e compartilhar a vida é algo belo”. E abona-o com o ditado
espanhol “Dores em dois, dor pela metade”.
Reparando que
estavam ali casais com 50 anos de matrimónio, declarou que “o futuro e o
passado se encontram no presente”. Na verdade, se os idosos (e também as sogras) possuem a sabedoria, as crianças e
os jovens devem escutar a sabedoria e falar com os idosos, porque “eles são as
raízes”. As novas gerações, de facto, não são como as antigas, mas precisam da
experiência dessas para serem diferentes, para avançarem ainda mais. E, face às
experiências conjugais de dificuldade e até discussão, o Papa salienta um
segredo, que explica assim:
“Podem
até voar os pratos, mas o segredo é fazer a paz antes que termine o dia. E para
fazer a paz, não é preciso um discurso, basta uma carícia e, assim, faz-se a
paz. E sabeis porque é importante? Porque, se não se faz a paz antes de ir
para a cama, a ‘guerra fria’ do dia seguinte é demasiado perigosa; começa o
rancor... Sim, brigueis o que queirais, mas no final da noite fazei a paz.”.
Depois,
salienta o contributo dos casais antigos e modernos:
“Crescendo
juntos nesta comunidade de vida e de amor, experimentastes muitas alegrias e
também, certamente, não poucos sofrimentos. Juntamente com todos os esposos que
já percorreram um longo pedaço do caminho, sois os guardiões da nossa memória
coletiva. Precisaremos sempre do vosso testemunho, cheio de fé. É um recurso
precioso para os noivos, que olham para o futuro com emoção e esperança... e,
também, talvez com um pouco de ansiedade: como será este futuro?”.
E, para que o matrimónio se afirme como uma vocação e uma
forma de vida duradoura – contra a cultura do provisório –, Francisco indica a necessidade
de fazer crescer diariamente o amor e pôr ao serviço da família os meios que a
Graça de Deus coloca à nossa disposição. E diz:
“Entre
todas as formas da fecundidade humana, o matrimónio é único. É um amor que dá
origem a uma nova vida. Implica a responsabilidade mútua na transmissão do dom
divino da vida e oferece um ambiente estável no qual a nova vida pode crescer e
florescer. O matrimónio na Igreja, isto é, o sacramento do matrimónio,
participa de modo especial no mistério do amor eterno de Deus. Quando se unem
pelo vínculo do matrimónio um homem e uma mulher cristãos, a graça de Deus
habilita-os a prometerem-se livremente um ao outro um amor exclusivo e
duradouro. Assim, a sua união torna-se sinal sacramental – e isso é importante:
o sacramento do matrimónio – torna-se um sinal sacramental da nova e eterna
aliança entre o Senhor e a sua esposa, a Igreja. Jesus está sempre presente no
meio deles. Sustenta-os ao longo da vida no dom recíproco de si mesmos, na
fidelidade e na unidade indissolúvel.”.
Por outro
lado, salienta a importância de rezar juntos em família de falar de coisas boas
e santas, de deixar que Maria, nossa Mãe, entre na vida da família, de celebrar
as festividades cristãs e de viver em profunda solidariedade com aqueles que
sofrem e estão à margem da sociedade.
***
Na visita ao
Centro de Acolhimento dos Padres Capuchinhos para
famílias sem casa, dirigindo-se ao superior capuchinho, frisou o carisma dos
Capuchinhos de proximidade com o povo e, em especial, com os pobres, tendo “a graça de contemplar as chagas de Jesus em pessoas
que passam necessidade, que sofrem, que não são felizes ou que não têm coisa
alguma, ou estão cheias de vícios e falhas”. Para eles esta “é a carne de
Cristo”.
Dirigindo-se
aos pobres, reconheceu que eles ali não pedem nada, só esperam a dádiva. Mais,
passando para o caso dos sacerdotes que na confissão cumulam o penitente de
perguntas, disse:
“O vosso testemunho ensina os sacerdotes a
escutar, ser próximos, perdoar e não perguntar muito. Ser simples, como Jesus
contou que fez aquele pai, quando o filho voltou cheio de pecados e vícios: o
pai não se sentou no confessionário e se pôs a perguntar e perguntar; ele
acolheu o arrependimento do filho e abraçou-o. Que o vosso testemunho para o
povo de Deus, e este coração capaz de perdoar sem causar sofrimento, alcance
todos os sacerdotes.”.
E, considerando
que o amor e a confiança destes pobres com os Capuchinhos resulta de eles ajudarem
sem arrancar a dignidade dos destinatários, pois cada um destes é Cristo,
frisou:
“Vós sois a Igreja, sois o povo de Deus.
Jesus está convosco. Eles dar-vos-ão coisas de que necessitais, mas escutai os
conselhos que eles vos dão: eles sempre vos aconselharão bem. E, se tendes
alguma coisa, alguma dúvida, alguma dor, falai com eles, e eles vos
aconselharão bem. Sabeis que eles vos querem bem: ao invés, esta obra aqui não
existiria. Obrigado pela vossa confiança. E uma última coisa: rezai. Rezai pela
Igreja. Rezai pelos sacerdotes. Rezai pelos Capuchinhos. Rezai pelos bispos,
pelo vosso Bispo. E rezai por mim também... permito-me pedir um pouco.”.
***
No
fim do dia 25, foi a Festa das Famílias,
no Croke
Park Stadium (Dublin) – a 2.ª em que participou Francisco (a 1.ª foi em Filadélfia em
2015, como recordou aos jornalistas no voo de Roma para Dublin) – cuja celebração o
Papa reconhece que “nos torna mais
humanos e mais cristãos”, ajudando “a
partilhar a alegria de saber que Jesus nos ama, acompanha no percurso da vida
e, cada dia, nos atrai para mais perto de Si”. E, da noção de família,
passa à noção de Igreja:
“Em cada celebração familiar, sente-se a presença de todos: pais, mães,
avós, netos, tios e tias, primos, quem não pôde vir e quem vive demasiado
longe, todos. Hoje, em Dublin, reunimo-nos para uma celebração familiar de ação
de graças a Deus pelo que somos: uma
única família em Cristo, espalhada por toda a terra. A Igreja é a família dos filhos de Deus; uma família, onde se
regozija com aqueles que estão na alegria e se chora com aqueles que estão na
tribulação ou se sentem desanimados com a vida. Uma família onde se cuida de
cada um, porque Deus nosso Pai nos fez, a todos, seus filhos no Batismo.”.
Daqui
resulta a vantagem de os pais levarem ao Batismo os filhos logo que possível, “para que se tornem parte da grande família
de Deus”, pois “uma criança com o
Batismo, com o Espírito Santo dentro de si, é mais forte, porque tem dentro a
força de Deus!”.
E,
precisamente, porque, no seu dizer, sem as famílias cristãs, a Igreja ficaria
descaraterizada ficando como “uma Igreja de estátuas, uma Igreja de pessoas
solitárias”, revelou ter sido para “ajudar a reconhecer a beleza e a
importância da família, com as suas luzes e sombras”, que foi escrita a Amoris laetitia, sobre a alegria do
amor, e que o tema escolhido para este IX
Encontro Mundial das Famílias foi “O Evangelho da família, alegria para
o mundo”. Na verdade, “Deus quer que cada família seja um farol que irradia
a alegria do seu amor pelo mundo”, ou seja, “que nós, depois de ter encontrado
o amor de Deus que salva, procuramos, com palavras ou sem elas, manifestá-lo
através de pequenos gestos de bondade na vida rotineira de cada dia e nos momentos
mais simples da jornada”. E isto chama-se santidade, a santidade dos santos ‘ao
pé da porta’, isto é, “de todas aquelas pessoas comuns que refletem a presença
de Deus na vida e na história do mundo”. E disse com toda a clareza:
“A vocação ao amor e à santidade não é algo reservado para poucos
privilegiados. Não. Mesmo agora, se tivermos olhos para ver, podemos
vislumbrá-la ao nosso redor. Está silenciosamente presente no coração de todas
as famílias que oferecem amor, perdão, misericórdia, quando veem que há
necessidade, e fazem-no tranquilamente, sem tocar a trombeta. O Evangelho da
família é, verdadeiramente, alegria para o mundo, visto que lá, nas nossas
famílias, sempre se pode encontrar Jesus; lá habita, em simplicidade e pobreza,
como fez na casa da Sagrada Família de Nazaré.”.
De
facto, segundo o Bispo de Roma, estacionado em Dublin, “o matrimónio cristão e a vida familiar são compreendidos em toda a sua
beleza e fascínio, se estiverem ancorados no amor de Deus, que nos criou à sua
imagem para podermos dar-Lhe glória como ícones do seu amor e da sua santidade
no mundo”.
Depois,
mencionando o ensinamento do Padre Peyton, irlandês, referiu que “a família que
reza unida permanece unida” e irradia paz, podendo “ser um apoio especial para outras famílias que não vivem em paz”,
logrando o perdão, a reconciliação e o reencaminhamento. E enfatizou a importância
de se ensinar bem, em família, às crianças o sinal da cruz, porque esta é fonte
futura de ensinamento e porque o sinal da cruz “é o primeiro Credo que as crianças aprendem, o Credo
no Pai, no Filho e no Espírito Santo”.
Por
fim e apesar do notório cansaço geral, ainda pediu que lhe deixassem dizer mais
uma coisa:
“Vós, famílias, sois a esperança da Igreja e do mundo! Deus, Pai, Filho
e Espírito Santo, criou a humanidade à sua imagem e semelhança para fazê-la
participante do seu amor, para que fosse uma família de famílias e gozasse
daquela paz que só Ele pode dar. Com o vosso testemunho do Evangelho, podeis
ajudar Deus a realizar o seu sonho. Podeis contribuir para aproximar todos os
filhos de Deus, para que cresçam na unidade e aprendam o que significa, para o
mundo inteiro, viver em paz como uma grande família.”.
Por
isso, Francisco quis entregar a cada um dos presentes uma cópia da Amoris laetitia, preparada nos dois
Sínodos sobre a família e escrita como uma espécie para se viver com alegria o
Evangelho da família. E a sessão festiva encerrou-se com a oração deste
Encontro das Famílias e com a bênção papal e o desejo de boa dormida e
despedida até ao dia seguinte.
***
Talvez seja
oportuno assumir esta dimensão da Igreja como “Uma Família de famílias” e
perceber que as feridas das famílias, como as da Igreja, não se previnem, curam
ou evitam deitando a toalha ao chão, como se diz hoje, ou rasgando as vestes,
como faziam os antigos, e, muito menos, enveredando por um estilo de
maledicência ou por uma campanha de difamação e de infamação ou de caça ao
homem, mas encarando os problemas com todo o realismo humano e toda a caridade evangélica
e a necessária solidariedade. Et Deus
adiuvet!
2018.08.26 –
Louro de Carvalho
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