Conforme informação
da página web do SNPC (Secretariado
Nacional da Pastoral da Cultura), a 10 de
agosto, “Junto ao chão” é o designativo da exposição patente ao público desde
o passado dia 26 de julho até ao próximo dia 9 de setembro, na capela de
Nossa Senhora da Bonança, conhecida como a capela do Rato, em Lisboa. E Luísa Soares de Oliveira recorda esta
a expressão segundo o olhar místico de São João da Cruz, escrevendo:
“Junto
ao chão é também o lugar de um corpo que só pode olhar para o alto, e
tentar descobrir, como diz São João da Cruz, citado por Carlos Nogueira, o
caminho para chegar das coisas que se veem às coisas não se veem”.
A instalação
é do artista plástico Carlos Nogueira, com textos do poeta Manuel de Freitas. Assim,
“capela/escória de ferro, ferro, sal, luz,/o som do vento e da água que corre,/bonança”
são os elementos presentes e evocados na instalação, que extraiu os bancos do
espaço religioso e o imergiu na penumbra, cobrindo o claro chão liso de porosa
gravilha cinza.
A exposição
está patente até ao dia acima indicado e pode ser visitada de quinta-feira a
domingo das 14,30 horas às 19.
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Na sua
crónica semanal, publicada hoje, dia 18, na Revista
do Expresso, Dom José Tolentino de
Mendonça, até há pouco responsável pelo serviço pastoral e de reflexão na
predita capela, explica a génese desta exposição em tempo estivo.
Na verdade,
a crónica, inserta no antetítulo genérico “Que
coisa são as nuvens”, desta feita vem subordinada ao título “Andar junto ao chão” e começa por
advertir que “este verão, quem entrar na Capela do Rato escutará, antes de tudo,
a voz dos seus passos através da escuridão”.
A inspiração
da iniciativa remonta a uma asserção, longínqua no tempo, de Gonçalo M. Tavares:
“Vocês poderiam retirar todas estas cadeiras e encher de areia o
pavimento, para lembrar aos crentes que a fé é experiência do nomadismo e
estrada, mais do que confortável sedentarismo”.
Reconhecendo
o valor da sugestão, o cronista agora arcebispo e próximo responsável pela
Biblioteca Apostólica e Arquivo Secreto, confessa que aproveitou a sugestão “mais
como repto a uma desinstalação interior do que propriamente como desafio a uma
reconfiguração do espaço sagrado em tais moldes”.
Entretanto,
há muito tempo vem acontecendo que se aproveita o habitual encerramento de
verão para desafiar artistas a ajudarem “com outras linguagens e até outros
pontos de vista” a aprofundar o exercício de procura que ali se faz.
Luísa Soares
de Oliveira aceitou agora ficar como procuradora do projeto e propôs uma dupla
para iniciar o seu desenvolvimento: Carlos Nogueira, que criaria a instalação;
e Manuel de Freitas, o poeta que redigiria os textos.
Ora, Carlos
Nogueira, não conhecendo a asserção de M. Tavares, propôs-se retirar as cadeiras
e cobrir o espaço com escória de ferro, ocultando totalmente o soalho atual, de
modo que, ao caminhar, “tomemos maior consciência da forma e do som dos nossos passos”.
O cronista
adverte:
“Não é fácil caminhar sobre gravilha irregular ali colocada: é como se o
corpo precisasse de se interrogar de novo acerca disso que é mover-se de um
aqui a um além”.
Porém, é de acentuar
que a caminhada sobre a gravilha irregular não é o fim. Carlos Nogueira colocou,
na clareira central, “uma escultura de ferro, longa e branca como uma mesa
aberta ou um sepulcro vazio”, sendo que “o impacto deste vazio” se obtém
através duma camada coesa de sal sobre a qual incide uma luz a acentuar o cromatismo.
Dom José Tolentino
abre para a leitura cristológica do cenário, remetendo para o episódio da Transfiguração
de Jesus no relato do autor do 2.º Evangelho:
“As suas vestes tornaram-se tão brancas como nenhum lavadeiro sobe a
terra as poderia branquear” (Mc 9,3).
Por outro
lado, vê a perspetiva do discipulado pela recordação da asserção de Jesus no Evangelho
de Mateus aos discípulos: “Vós sois o sal
da terra” (Mt 5,13), os quais
também são “a luz do mundo” (Mt 5,14).
Também o som
da água a correr, com que pontua Carlos Nogueira o silêncio da Capela, nos
reporta para a alusão à fonte batismal, de acordo com a gramática cristã – tal como
“o vento delicado que esparsa o invisível”, a soprar onde quer (cf Jo 3,8), se figura como “símbolo da efusão do Espírito Santo
e dos seus dons”.
A respeito
da exposição, Manuel Freitas, citado por Dom José Tolentino, assegura que ela é,
“num silêncio cada vez maior… um chão perdoável”.
***
Carlos
Nogueira, nascido em 1947, em Moçambique, estudou escultura na Escola Superior
de Belas Artes do Porto e diplomou-se em pintura na Escola Superior
de Belas Artes de Lisboa. Desde o início a sua obra referencia-se a um
território multidisciplinar onde cabem, não apenas a pintura e escultura, mas
também as ações performativas e manifestações em que o espectador é chamado a
intervir.
Marcados pela sensibilidade poética, os seus trabalhos
escultóricos articulam temas procurados no mundo natural como a floresta, o
rio, a água, o céu, o mar, “estabelecendo como base da sua prática artística
a expressão de uma relação simbólica com o mundo. [...] Emblemático
do seu trabalho é também o uso de materiais do quotidiano e industriais – o
ferro, o aço, o mosaico hidráulico, o vidro –, aos quais confere poder de
evocação poética e uma existência que, de lugar para lugar, remete
simultaneamente a sua obra para o sentimento de corporalidade e imaterialidade,
de peso e leveza, do íntimo e do infinito.” (cf Jürgens, Sandra
Vieira – Carlos Nogueira. In: Centro
de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão: Roteiro da coleção. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004, p. 172).
Ganhou o
Prémio Camões da II Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira (1980), tendo integrado as representações portuguesas à
Bienal de Veneza (1986), à Trienal
de Arquitetura de Milão (1996) e à
Quadrienal de Escultura de Riga (2004).
Sobre a sua
obra, Carlos Nogueira, professor associado convidado no curso de Arquitetura da
Universidade Autónoma de Lisboa, escreveu
“A minha obra centra-se em questões de raiz
tectónica e poética onde conceitos como permanência, efémero e sagrado são
eixos sempre presentes”.
Autor do
desenho gráfico de catálogos e monografias para várias instituições, Nogueira é
também coautor em trabalhos de arquitetura com Ueli Krauss, Miguel Nery, José
Manuel Fernandes, Maria de Lurdes Janeiro, Manuel Lacerda, Manuel Aires Mateus,
José Adrião, entre outros, como pode ler-se na sua página web.
A sua obra
pode ser vista no Ar.Co; câmaras municipais de Lisboa e Vila Nova da Barquinha;
Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea; CAM – Fundação Calouste
Gulbenkian; Centro Cultural de Belém; Centro Cultural Emmerico Nunes; Fundação
Carmona e Costa; Fundação Mário Soares; Fundação de Serralves; Museu do Chiado
– Museu Nacional de Arte Contemporânea; Museu Coleção Berardo; Secretaria de
Estado da Cultura; Brighton University; Caixa Geral de Depósitos; Archivo
Lafonte – Espanha; e em coleções particulares em Portugal e no estrangeiro.
***
Manuel de
Freitas – poeta, editor e crítico literário – nasceu em 1972, no Vale de
Santarém, e vive em Lisboa desde 1990. Publicou, além de pequenos ensaios,
vários livros de poemas; colabora enquanto crítico literário no jornal “Expresso”; e tem colaboração dispersa em
várias revistas literárias portuguesas. Dirige, com
a poetisa Inês Dias, a pequena editora Averno; e é diretor, também com a mesma Inês Dias, das
revistas Telhados de Vidro e Cão Celeste. É ainda
um dos livreiros da pequena livraria Paralelo W, em Lisboa.
Publicou o seu primeiro livro de poemas em 2000.
Em 2002 organizou a antologia Poetas
sem Qualidades, obra que acabaria por contribuir para uma acesa polémica
sobre os caminhos da poesia portuguesa surgida nos últimos anos.
Num dos
textos da instalação na Capela do Rato, assinala:
“Eu dantes escrevia poemas, como diria Karen
Blixen da sua quinta em África ou Álvaro de Campos do dia do seu aniversário.
Os versos tornaram-se-me prosa baça, apontamentos, meros diálogos ou evocações.
Evito metáforas e ardis retóricos como quem evita aviões ou elétricos cheios de
ninguém. Custa-me, por vezes, reconhecer a cidade onde decidi viver.”.
Algumas das
suas obras são: “Game over” (Edições
Alambique), “Incipit” (Averno), “Marilyn Moore”, “A Última Porta”, “Juros de
Demora”, “Cretcheu Futebol Clube”
e “Vai e Vem” – todas da Assírio
& Alvim.
Porem, agora
escreve:
“Estamos fartos de saber que ‘cada poema é
um epitáfio’ (T.S. Eliot). Pela parte que me toca, já não preciso de poemas. De
epitáfios talvez, mas num silêncio cada vez maior. Parecido, afinal, com as
vírgulas de luz com que Carlos Nogueira suspende as trevas ou nos oferece um
chão perdoável.”.
***
Enfim,
vale a pena visitar a exposição “Junto ao chão” e palpar os
efeitos duma especial hermenêutica do pequeno espaço sagrado em causa, chamando
a atenção para vertentes essenciais do cristianismo.
2018.08.18 –
Louro de Carvalho
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