A primeira questão que se levanta é se a Espanha
não terá, de momento, problemas mais relevantes para resolver ou se o Governo
minoritário legítimo não tem outra forma significativa de ficar na memória
coletiva. Mas uma outra se coloca: Não
haverá outra forma de honrar a memória das vítimas da guerra civil, que
independentemente da formação partidária e militar que a venceu, fez inúmeras
vítimas de ambos os lados da barricada político-militar erigida em toda a Espanha,
mas com os convenientes apoios internacionais?
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Seja como
for, o decreto-lei aprovado a 24 de agosto pelo Governo espanhol, no regresso
de férias da maior parte dos governantes, vem aditar a Lei da Memória Histórica e permitirá muito em breve a exumação dos
restos mortais do ditador sepultado no Vale dos Caídos desde a sua morte, em
1975. E terá de passar no Congresso (em setembro, quando os seus membros
regressarem de férias), onde
bastará a maioria simples.
Além dos
votos a favor do PSOE (84 deputados), o decreto-lei
contará com os do Unidos Podemos, Partido Nacionalista Basco, PDeCAT, EH
Bildu, Compromís e, ainda, da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), que aceitou dar o “sim” após o Governo ter
garantido que o decreto-lei preveria a anulação das sentenças franquistas. Ora,
tanto o PP como o Ciudadanos se absterão na votação no Congresso. Mas, como
basta que haja mais votos a favor do que contra para ter luz verde a alteração
legislativa, a aprovação parlamentar está praticamente assegurada pelo Governo
de Pedro Sánchez, que já tem um calendário definido para este tema.
Assim, no
próximo dia 31 de agosto, será acordado o procedimento pelo qual será feita a
exumação, incluindo o aviso à família que terá, a partir dessa data, um prazo
de 15 dias para decidir o lugar para onde deve ser trasladado o corpo do
caudilho. E, caso não se pronuncie dentro do prazo estipulado, será o
governo espanhol a tomar a decisão, como explicou, em conferência de imprensa, Carmen
Calvo, a vice-primeira-ministra espanhola.
Porém, a
posição da família tem sido de total oposição à exumação do seu familiar. Em
declarações ao La Razón, fonte da
família do caudilho disse desconhecer a lei que será
discutida em Conselho de Ministros (“não temos qualquer ideia daquilo que o Governo está a
preparar”) e insistiu:
“Não
admitimos uma exumação. Enquanto não houver um mandado judicial, ninguém vai
exumar nada.”.
A Igreja
Católica, que inicialmente terá feito saber que não permitiria a entrada das
máquinas na Basílica, onde pontifica o direito canónico (e, por isso, regulada pelos acordos assinados entre o
Estado espanhol e a Santa Sé em 1979) e que está à guarda da Ordem Beneditina (tendo o Governo referido que tinha
formas de ultrapassar a questão), já veio
declarar que não se opõe à trasladação. Disse o Cardeal-Arcebispo de Madrid,
Carlos Osoro:
“A Igreja não toma nenhuma decisão: quem
toma decisões é o Governo e a família”.
Mas, porque
a família se mostrou, desde o início, contra a exumação dos restos mortais
do ditador da Basílica do Vale dos Caídos, o monumento mandado construir em
memória das vítimas da Guerra Civil espanhola, o decreto-lei foi a forma que o
Governo encontrou para contornar a oposição dos familiares de Franco.
Isto, porque
a trasladação do corpo de Francisco Franco é uma antiga reivindicação da
esquerda espanhola, embora tenha esta sido a primeira vez que um Governo se
comprometeu com ela. A este respeito, o El
País cita Carmen Calvo, a qual declarou que “ter o túmulo de Franco é uma
falta de respeito para com as vítimas que estão ali enterradas”, pelo que “não
podemos perder um único instante”, pois a “democracia não é compatível com a
existência de um túmulo que honra a memória de Franco”.
Recorde-se
que, já em 2017, o Congresso dos Deputados aprovou uma moção a favor da
exumação de Franco. Ao todo, 198 deputados votaram a favor e houve 140
abstenções, bem como um voto contra duma deputada do PP que se enganou na altura de
votar. A moção, que não tem força de lei e serve apenas como uma proposta, foi
ignorada pelo Governo de Mariano Rajoy.
***
Já no
domingo, dia 19, a agência Efe noticiara que o Conselho de Ministros do dia 24
iria alterar a Lei da Memória História,
criada em 2007, durante o segundo mandato do socialista José
Luiz Zapatero, que permitiu que fossem desenterradas valas comuns da
Guerra Civil espanhola.
Agora, como escreve
o El País sem entrar em detalhes, a
alteração que o Conselho de Ministros deveria aprovar em decreto-lei e que
depois terá de apresentar para votação no Congresso não passaria duma “simples
modificação” que consistiria na criação de “um par de artigos”.
A 3 de
agosto, após uma reunião do Conselho de Ministros e antes de partir de férias,
Pedro Sánchez tinha dado sinais de que a exumação de Franco não seria tão
rápida como pensara, mas que seria ainda assim “muito, muito em breve”, dizendo
que, “se esperámos 40 anos, também podemos esperar uma semanas ou uns dias…”.
Na verdade, o
tema das exumações de valas comuns tem sido fonte de debate no Congresso (nos programas eleitorais das últimas
eleições, de 2016, PSOE e Unidos Podemos defendiam o seu financiamento pelo
Estado; já o Ciudadanos e o PP não referiam o tema), mas o debate parece ser menos
aceso quando se fala do caso particular do caudilho. Assim, além de ter o
acordo dos partidos à esquerda (Unidos Podemos) e
das forças independentistas e regionalistas, o que chegaria para aprovar uma
alteração à Lei da Memória Histórica,
o Governo não terá oposição dos partidos à sua direita.
Da parte do
Ciudadanos, Albert Rivera já adiantou que o seu partido aprovará a exumação de Franco
se o projeto do Governo passar por transformar o Vale dos Caídos num “cemitério
nacional” que transmita a ideia de “união”, dando como exemplo o Cemitério de
Arlington (no Estado da
Virginia, EUA), criado
para enterrar soldados dos dois lados da Guerra Civil americana:
“Uma
coisa é que se apresente uma lei onde haja um projeto sério para converter o
Vale dos Caídos num cemitério nacional, como o de Arlington, onde estão
todos, independentemente do lado em que lutaram, enterrados juntos. Outra
coisa é querer dividir Espanha de forma artificial em dois lados.”.
Já é pouco
claro o discurso do PP (Partido
Popular), de Pablo
Casado, sobre o tema – o que leva alguns a crer que, em vez de a apoiar ou o de
se opor à revisão da Lei que permita desenterrar Franco, o PP deverá abster-se.
No dia 20, em declarações ao La Sexta,
Pablo Casado disse:
“Não
gastaria nem sequer um euro a desenterrar Franco e também não gastaria um euro
para voltar a enterrá-lo”.
E, depois,
disse uma frase que está a ser apontada como sinal de que o PP pode abster-se:
“Não
vou defender esse edifício nem quem está enterrado nele, incluindo por razões
familiares, como neto de alguém que sofre represálias do regime franquista, mas
Espanha tem de olhar para o futuro”.
***
Exumar Franco é tema que volta a dividir a Espanha social e a criar nela
forte divisão histórico-política, quando mais não fosse pelo número crescente
de visitantes ou turistas que se dirige a Vale dos Caídos desde que o Governo
equacionou a hipótese da exumação.
Volta e meia, a polémica vem ao de cima como uma ferida mal sarada que
reitera a infetação. Apesar de viver há quase 43 anos em democracia, a Espanha
regista ainda muitas das sequelas divisionistas da Guerra Civil, de que saíram
vencedores os nacionalistas do generalíssimo Francisco Franco sobre os
republicanos. Franco, que governou como caudilho até 1975, foi sepultado num
mausoléu que o próprio mandou construir no Vale dos Caídos, em San Lorenzo del
Escorial, a 40 quilómetros de Madrid. Ao longo dos anos debateu-se, em várias
ocasiões, a retirada dos restos mortais do generalíssimo daquele local, mas
sempre com polémica – polémica que Pedro Sánchez, recém-arvorado em líder do
governo espanhol, decidiu retomar. Na sequência da sua
opção, acaba de surgir o decreto-lei de alteração da Lei da Memória Histórica,
que data de 2007, tempo de José Luis Rodríguez Zapatero. Para o Ministro da
Cultura, José Guirao, o decreto-lei foi a fórmula encontrada para a
Espanha consiguir realizar “quanto antes” a exumação do ditador “evitando
quaisquer processos judiciais” que pudessem impedir a mesma. Isto porque, segundo os media espanhóis,
os familiares de Franco, falecido aos 82 anos, são contra a exumação dos restos
mortais do ditador e recusam recebê-los se forem dali retirados.
Neste sentido,
Francisco Franco, seu neto, considera “um absurdo” a ideia da exumação e “oportunismo
propagandístico querer uma vingança 42 anos depois”; diz que “não
há nada para falar com o governo” e, uma vez aprovado o decreto-lei, “verá o
que fazer”.
Além do ditador, segundo dados do Ministério da Justiça espanhol, estão
no Vale dos Caídos depositados restos mortais de 33 833 pessoas, 21 423
identificadas e 12 410 por identificar, dos dois lados que se defrontaram na
Guerra Civil. Para ali foram levados entre 1959 e 1983, oriundos de valas
comuns ou de cemitérios das várias províncias. Muitas famílias, sobretudo do
lado dos republicanos, exigem retirar dali os restos mortais dos seus entes
queridos.
***
Foi no início de junho que a moção foi aprovada graças ao apoio de 180
deputados, os do PSOE, os do Unidos Podemos, os da Esquerda Republicana da
Catalunha, os do Partido Democrático e Europeu da Catalunha, os do Partido
Nacionalista Basco, os do Compromís, os do EH Bildu e um da Nueva Canarias. E, chegado à Moncloa, Sánchez
prometeu tirar Franco do Vale dos Caídos. Em debate no
Parlamento espanhol, a 17 de julho, o líder do PSOE disse que a exumação dos
restos mortais do ditador “é uma decisão firme” que será tomada “em breve” e
executada “num muito breve espaço de tempo”. Como era de esperar, multiplicaram-se, a seguir, os protestos dos
simpatizantes do franquismo, junto ao Vale dos Caídos, onde está sepultado, mas
também o número de turistas a ir em visita ao túmulo do homem forte de Espanha
entre 1936 e 1975. Segundo o El Mundo, neste ano já visitaram o
Vale dos Caídos 153 677 pessoas, 38 269 delas só em julho. O que pressupõe um
aumento de 49%, pois em julho de 2017 o número de visitas ao monumento situou-se
nas 25 532.
Apesar de a oposição se vir a abster no debate no Congresso, acusa Sánchez de recorrer ao
decreto-lei como forma de governar para contornar o facto de os socialistas
estarem em minoria. Este será o sétimo decreto-lei desde que
Sánchez chegou à Moncloa, fará no dia 2 de setembro 3 meses. Em defesa do PSOE,
no dia 21, disse a porta-voz do partido no Parlamento, Adriana Lastra, que “o
que incomoda o PP não são os decretos reais, mas sim retirar o ditador” Franco
do Vale dos Caídos, embora “não seja capaz de o dizer abertamente”. Segundo
afirmou à Telecinco, a exumação dos
restos mortais de Franco acontecerá sem aviso prévio em setembro, para evitar
qualquer tipo de protestos ou manifestações, de modo que a exumação será
realizada “com muita prudência, sem grande alarido, sem informar sobre o dia
concreto”.
Quando o PP de Mariano Rajoy chegou ao poder em Espanha, em 2011, o
financiamento para a Lei da Memória Histórica, sobretudo no atinente a dinheiro
para exumações, foi drasticamente reduzido. Agora, face à ideia de exumar Franco, o partido afirma
não querer travar a retirada dos restos mortais do ditador, mas não deixará de
contestar o decreto-lei do Governo de Sánchez. A este respeito,
o secretário-geral do PP, Teodoro García
Egea, citado pelos media, avisou o Governo de que não deve contar
com o apoio do maior partido da oposição para aprovar o decreto-lei porque não
está de acordo que “se ressuscite o passado
para evitar falar do futuro” e garantiu que os populares “vão recorrer de todos decretos que não
tenham carácter urgente”. E Francisco Martínez, porta-voz do PP na comissão
de Assuntos Constitucionais do Parlamento, declarou-se à espera de conhecer “as
razões de necessidade urgente” para aprovar a exumação de Franco através do uso
de decreto-lei”, explicitando:
“Vamos aguardar para conhecer de que forma o Governo
justifica esta medida e se cumpre as exigências constitucionais. Ainda
que, a priori, tenhamos muitas dúvidas.”.
Por seu
turno, o novo líder do PP, Pablo Casado, já declarou que não vai defender um
ditador e opor-se à exumação, mas sublinhou que a iniciativa do PSOE “visa
reabrir feridas”, que deviam ter ficado fechadas na Transição, e usar Franco como bode expiatório para encobrir a sua
debilidade e a sua incapacidade de governar Espanha.
Do seu lado, o Ciudadanos optará pela abstenção porque o Governo só está
preocupado com “os ossos de Franco”. Por isso, o líder do
Ciudadanos, Albert Rivera, indicou, no dia 22, que não se oporá à exumação de
Franco, mas confirmou que os deputados do seu partido optarão pela abstenção na
votação do decreto-lei. E declarou aos microfones da rádio Onda Cero:
“Esta não é a prioridade. Não é maneira de
abordar o assunto. Preocupam-me bastantes mais coisas do que os ossos de
Franco, preocupa-me mais a educação dos nossos filhos ou a direção que está a
tomar a Europa. Se a única coisa que há para votar são os ossos de Franco,
então não vamos apoiar isso. Não concordo com a forma; o decreto-lei é um
instrumento absolutamente excecional para questões urgentes. Não podemos apelidar
isto de questão urgente.”.
Segundo confirmou um porta-voz do Ciudadanos, citado pelo El País, o partido optará pela
abstenção, com a seguinte adução:
“Se tivesse havido um projeto para o Vale
dos Caídos como monumento de reconciliação, com a exumação de Franco incluída,
isso é o que defende o Ciudadanos. Mas, como parece que o único tema é Franco e
por decreto-lei, como se fosse uma urgência, vamos abster-nos.”.
A ERC, um dos partidos catalães que puseram Sánchez no poder, avisou
que só votará a favor do decreto-lei se o executivo se comprometer a anular as
sentenças do tempo do franquismo, nomeadamente a condenação à morte ditada
contra o ex-presidente da Generalitat Lluís Companys. O seu porta-voz, Joan
Tardà, referindo-se à exigência de que o executivo assuma o compromisso de
anular até ao final da legislatura todas as sentenças ditadas pelos tribunais da
ditadura, considerou a condenação à morte de Companys, que acabou fuzilado em
outubro de 1940, talvez o caso mais simbólico. Em 2007, a ERC
votou contra a predita lei por não incluir a anulação das sentenças do tempo do
franquismo. E as vítimas não só não tiveram nenhuma reparação como o modelo de
impunidade “cobriu o espaço do presente com uma nuvem de amnésia absoluta” –
lamentou Tardà, citado pela agência noticiosa espanhola Europa Press.
***
A Espanha
tem muitos problemas para onde se virar, incluindo o rumo que a UE está a tomar;
a homenagem às vítimas podia bem ser um monumento comum a edificar lá no sítio,
sem exumações, e a revogação das sentenças franquistas mais dolorosas. As sugestões
vêm explícitas! De resto, só avivará as feridas e criará problema a familiares
sem poder político.
Imagine-se
que nós queríamos desenterrar todos os que fizeram mal a portugueses, como Oliveira
Salazar, João Franco, Costa Cabral, Marques de Pombal, Pedro IV, Miguel, João
II…!
2018.08.25 –
Louro de Carvalho
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