Esta
indicação de vida vem inserta na perícopa do Livro dos Provérbios tomada como
1.ª leitura (Pr 9,1-6)
da Missa do XX domingo do Tempo Comum no Ano B e perdura nas demais.
Em
termos gerais, o Livro dirige-se às gerações jovens necessitadas das lições da
sabedoria experiencial e da sabedoria teológica, pelo que lhes coloca à frente um
conjunto de ditos que a experiência sapiencial soube formular e de outros que a
reflexão dos mestres em contacto com a revelação por parte da Sabedoria
incriada – Deus – pôs em evidência.
Em especial,
esta perícopa sapiencial expõe a Sabedoria como arquiteta perfeita (edificou a casa e levantou sete colunas), estratega (abateu os animais, preparou o vinho e pôs a mesa; enviou as
servas a proclamar nos pontos mais altos da cidade: ‘Quem é inexperiente venha por aqui’) e como conselheira leal junto dos insensatos: “Vinde comer
do meu pão e beber do vinho que vos preparei. Deixai a insensatez e vivereis;
segui o caminho da prudência. Através da
parábola, o “sábio” apresenta a “senhora sabedoria” e o convite que ela dirige
a todos os que a querem descobrir.
A casa que ela edifica tem obviamente sete colunas (o número sete é, no universo cultural judaico, o número da
plenitude, da perfeição), pois é a “casa” onde se encontra a plenitude. Tratar-se-á escola
regida pelos “sábios” de Israel e onde se ensinava a “sabedoria”?
Na sua “casa”, a “senhora sabedoria” organiza o “banquete”, preparando
comida e vinho em abundância e põe a mesa, após o que envia as servas para que
levem a toda a cidade o pregão-convite à participação na festa. A “comida” e o
“vinho” referem-se ao “alimento sapiencial”, ou seja, às normas ensinadas pelos
“sábios” nas escolas sapienciais destinadas a “armar” os discípulos para
enfrentarem com êxito os problemas do quotidiano e alcançarem a felicidade.
Porém, visto que muitos dos segmentos veterotestamentários são antecipação
figurativa do Novo Testamento, não estaremos face à antecipação do banquete
nupcial para o qual o Rei convidou muitos, que arranjaram motivos de escusa,
pelo que mandou os servos trazerem todos os pobres e deficientes que
encontrassem pelo caminho (cf Lc 14,15-24)? E certamente
que se pode ler esta perícopa do Livro dos Provérbios com a mira no discurso do
Pão da Vida que enforma a leitura evangélica dos XVII, XVIII, XIX, XX e XXI
domingos do Tempo Comum deste Ano B e, em particular o Evangelho do XX (Jo 6,51-58).
Assim, é de questionar “quem serão os destinatários do
convite feito pela senhora Sabedoria”? E a resposta tem de abranger os “simples”,
os inexperientes e mesmo os insensatos. Porém, estes não se podem enclausurar
no murmúrio, no hipercriticismo. Têm, antes, de estar disponíveis para seguir a
via da prudência com vista ao mistério e à vida, procurados e trabalhados, não
pelo instinto, mas pela inteligência e pela sensatez com que a Sabedoria
incriada, ora encarnada no meio dos homens, vem em socorro e incremento do
esforço humano.
Os “simples” equivalem aos “pobres” da literatura bíblica:
são os pequenos, os humildes, os que não vivem enredados em mecanismos de
orgulho e autossuficiência e têm o coração aberto a Deus e às suas propostas.
Os “insensatos” que desejam seguir a rota da prudência são os que não se
conformam com a sua fragilidade e debilidade e estão disponíveis para o esforço
de reformulação da sua vida e de acolhimento dos dons da sabedoria.
***
Já o
texto da Carta aos Efésios tomado como 2.ª leitura (Ef 5,15-20),
pertencente à 2.ª parte da Carta (exortação
aos batizados)
constitui uma chamada de atenção aos destinatários para que olhem o mundo que
os envolve e leiam a urgência de abandono das antigas formas de viver. E, revestidos de Cristo, imitando a Deus e passando das
trevas à luz – tópicos da catequese batismal – hão de viver como pessoas inteligentes, aproveitando bem o tempo
e procurando discernir qual é a vontade do
Senhor. Por isso têm de se abster de tudo quanto seja caminho para a luxúria e
encher-se do Espírito Santo, obviamente rejeitando as seduções e pompas
mundanas e fortalecendo a inteligência e a vontade com a recitação, em
comunidade, de “salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e salmodiando” nos
corações, e “dando graças, por tudo e em todo o tempo, a Deus Pai, em nome de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Os cristãos,
definitivamente comprometidos com Cristo pelo Batismo, não podem,
insensatamente voltar aos valores do homem velho. É certo que os tempos não são
favoráveis e não ajudam a viver com coerência a própria fé e os seus valores;
mas é precisamente nesses ambientes mais difíceis e adversos que se torna mais
necessário dar testemunho do projeto de Deus e cumprir a vontade do Senhor. E a
oração, sobretudo a comunitária, é uma grande fonte de alimentação desta nova
forma de viver.
***
O Evangelho de João (Jo 6,51-58) continua o
discurso do Pão da Vida. A afirmação perentória de Jesus “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu:
se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei de dar é a
minha carne, pela vida do mundo”, enervou os
judeus, que discutiam entre si, exaltados, “Como pode Ele dar-nos a sua carne a
comer?!”.
Santo Agostinho, considerando que
as palavras “Jesus,
carne e sangue, pão e vinho” são as palavras que, pronunciadas sobre o altar,
operam uma transformação, discorre:
“Se tiras a palavra, é pão e vinho; se acrescentas a palavra, é já outra
coisa. E esta outra coisa é o corpo e o sangue de Cristo. Tiras a palavra, é
pão e vinho; acrescentas a palavra e converte-se em sacramento.”.
Por isso,
devemos interrogar-nos sobre a importância que tem para nós a Palavra de Deus e
sobre o repto espiritual e pastoral de a pronúncia das palavras de Jesus sobre
a nossa carne poderá converter-nos em pão para o mundo. Na verdade, São
Policarpo de Esmirna, no auge do martírio, clamava que se tornara trigo para
alimento da Igreja e dos pobres e agora o converteram em alimento das
feras.
João não relata
a instituição da Eucaristia, mas frisa o seu significado na vida da comunidade.
A simbologia do lavar os pés e a força do mandamento novo (Jo 13,1-35) serão o memorial do pão repartido e
do vinho derramado. O conteúdo teológico é o dos sinóticos. A tradição cultual
joânica encontra-se no “discurso eucarístico” subsequente ao milagre
da multiplicação dos pães e que evidencia o significado profundo da existência
de Cristo dada ao mundo, dom e fonte de vida que induz a comunhão profunda no
novo mandamento da pertença. A referência ao maná é explicativa da simbologia
pascal em que o sentido da morte é assumido e superado pela vida: “Os
vossos pais comeram o maná no deserto e morreram, mas este é o pão que desce do
céu para que quem o coma não morra”. O destinatário deste pão (cf Ex 16; Jo 6,31-32) não é tanto cada um, mas sobretudo
a comunidade, embora cada um seja chamado a participar pessoalmente no alimento
dado para todos. E quem o come não morrerá, pois este pão da revelação é o
lugar da vida sem ocaso. Do pão, o 4.º evangelista passa outra palavra para
indicar o corpo, sarx, que designa a pessoa humana na sua frágil
e débil realidade diante de Deus, e em João a realidade humana do Verbo divino
feito homem. Este pão é a carne de Jesus. Não é um pão metafórico, mas o pão
eucarístico. E, enquanto a revelação, ou seja, como pão da vida,
identificado com a pessoa de Jesus, é dado pelo Pai. O pão eucarístico, ou seja,
o corpo de Jesus, será oferecido por Ele pela morte na cruz prefigurada na
consagração do pão e do vinho durante a Última Ceia: “O pão que eu darei é
a minha carne para a vida do mundo”.
A discussão dos judeus revela o drama do pensamento que se fica
no empirismo, não ousando penetrar o véu do mistério. É a situação de quem crê
sem crer, de quem sabe sem saber. Ora, o convite de Jesus para fazer o que Ele
fez “em memória” d’Ele, tem paralelismo na palavra de Moisés, ao
prescrever a recordação pascal: “Este dia será para vós um memorial e vós o
festejareis” (Ex 12,14). E a celebração da Páscoa judaica não
era apenas a recordação dum acontecimento passado, mas também a sua presentificação,
no sentido de que Deus está disposto a oferecer de novo ao povo a salvação,
sobretudo a quem, nas circunstâncias mutáveis da história, tem mais necessidade.
Assim, o passado irrompe no presente com a força salvífica e o sacrifício
eucarístico “poderá” dar pelos séculos “carne para comer”.
Jesus não desarma e adverte: “Se
não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não
tereis a vida em vós”. Tal como os sinóticos, João utiliza expressões
separadas para indicar a entrega de Cristo, o que não significa a separação em
partes, mas a totalidade da doação da pessoa e, sobretudo, a corporeidade de
Cristo ressuscitado, totalmente compenetrado pelo Espírito Santo no
acontecimento pascal, transmutada em manancial de vida para todos os crentes,
de modo eminente pela Eucaristia, unindo estreitamente a Cristo glorificado à
direita do Pai cada um dos crentes, fazendo-o participante da sua vida divina.
João não refere expressamente as espécies do pão e do vinho, mas o que nelas é
significado: carne para comer, porque Cristo é presença que alimenta a vida; e
sangue para viver – ação sacrílega para os judeus – porque Cristo é o Cordeiro imolado.
É evidente o caráter litúrgico sacramental: Jesus insiste na realidade da carne
e do sangue referindo-se à sua morte, pois, na imolação das vítimas, a carne
era separada do sangue (e
o sacrifício de Cristo inova na continuidade).
A comunhão na carne e no sangue
de Cristo garante-nos, já no presente, a vida eterna e, no último dia, a ressurreição
(cf Jo 6,54). Daqui resulta que a Páscoa vivida e liderada por Jesus e assumida pelo
cristianismo primitivo recebe novo penhor, a ressurreição de Cristo, definitivo
êxodo da liberdade plena (Jo
19,31-37), que encontra
na Eucaristia o novo memorial, símbolo do Pão de vida que sustenta a Igreja na
caminhada no deserto, sacrifício e presença que fortalece o novo povo de Deus, que,
atravessadas as águas da regeneração, não cessará de fazer memória como Ele
disse (Lc 22,19; 1Cor 11,24) até à Páscoa eterna. Fazendo o que
Ele mandou em sua memória, anunciamos a
sua morte e proclamamos a sua ressurreição até que Ele venha.
Penetrados pela
presença do Verbo de Deus humano, os cristãos vivem em peregrinação a passagem
da escravidão do pecado à liberdade de filhos de Deus: em conformidade com
Cristo, capacitam-se para proclamar as maravilhas da luz admirável, oferecendo
a Eucaristia da corporeidade do Senhor – sacrifício vivo, santo e agradável num
culto espiritual (cf Rm
12,1) que se coaduna com
o povo da conquista, estirpe escolhida, sacerdócio real (cf 1Pe 2,9).
A carne de Cristo como verdadeira
comida e o seu sangue como verdadeira bebida (cf Jo 6, 55-56) constituem uma
forma de interpenetração mútua. O comungante ficar a morar em Cristo Ele no
comungante. A
comunhão de vida que Jesus tem com o Pai é oferecida a todo o que come o corpo
sacrificado de Cristo. Isto, sem incorrer na conceção mágica do alimento
sacramental que confira automaticamente a vida eterna a quem o deguste. Não se
trata de uma poção mítica! A comunhão da carne e do sangue postula a pregação
para a fornecer a inteligibilidade e a possível e necessária compreensão da ação
de Deus, requer a fé por parte de quem participa no banquete e conta com a ação
proveniente de Deus, sem a qual não haverá nem escuta nem fé.
A participação no corpo e no
sangue do Senhor gera uma vivência tão íntima entre o crente e Cristo muito
semelhante à que o Filho tem com o Pai (cf Jo 6,57). Não se coloca, porém, o acento no
culto como cume e fundamento da caridade, mas na unidade do corpo de Cristo
vivo e operante na comunidade. Com efeito, “uma liturgia despregada da
caridade fraterna equivale à própria condenação, porque despreza o corpo de
Cristo que é a comunidade”. Na liturgia eucarística, o passado, o presente
e o futuro da história da salvação, encontram símbolo eficaz para a comunidade,
expressivo e não substitutivo da experiência de fé que deve estar sempre
presente na história a insuflar-lhe vida. Pela Ceia e pela Cruz – inseparáveis
–, o povo de Deus tomou posse das antigas promessas: a terra para além do mar,
do deserto, do rio, onde mana o leite e o mel da liberdade capaz da obediência
a Deus. As magnas realidades da antiga economia da salvação encontram nesta
hora (cf Jo 17,1) a plena realização: da promessa
feita a Abraão (Gn 17,1-8) à Páscoa hebraica (Ex 12,1-51). É um momento decisivo de recolha
do passado do povo (cf DV,
4) em que se oferece ao
Pai a primeira e mais nobre Eucaristia da nova aliança: o pleno cumprimento,
sobre o altar do banquete e da cruz, de tudo quanto se esperava.
Na verdade, este pão que desceu do Céu não é como
aquele que os antepassados comeram, pois morreram; efetivamente quem come mesmo
deste pão viverá eternamente (cf Jo 56,8). Jesus, ao declarar “Isto é o meu corpo” e “Este é o cálice do meu sangue”,
estabelece uma relação verdadeira e objetiva entre estes elementos materiais e
o mistério da sua morte, coroada na sua ressurreição. São palavras criadoras duma
nova situação com elementos comuns da experiência humana e pelas quais se
realiza verdadeiramente e sempre e misteriosa presença de Cristo vivo. Os
elementos escolhidos são instrumento e símbolo. O “pão” que, pela relação com a
vida, tem em si uma significação escatológica (cf Lc 14,15) facilmente se compreende enquanto alimento indispensável à
subsistência e motivo de partilha universal. E o “vinho”, pela sua simbologia
natural, exprime a alegria do homem e leva à plenitude da vida (cf Sl 104/103,15).
***
Em Jesus
cumpre-se o verdadeiro Pesach da história humana e dá-se-lhe
novo e pleno sentido:
“Antes
da festa da Páscoa, Jesus, sabendo que chegara a hora de passar deste mundo
para o Pai, depois de ter amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim.
Enquanto ceavam...” (Jo 13,1).
A novidade da
Páscoa cristã é a passagem de Cristo deste mundo para o Pai mediante o sangue
do seu sacrifício. E a Eucaristia torna-se o seu memorial. O pão do deserto faz-se
presença de salvação e pacto de fidelidade e comunhão escrito na pessoa do
Verbo. A história salvífica, que em Israel é narrada com acontecimentos, nomes,
lugares, passa agora à reflexão e celebração da fé numa experiência de vida que,
tendo feito de Javé o único nome, agora constitui Jesus, o seu Ungido, como o
Senhor e Salvador. Tudo começa no grande encontro entre Deus e o homem traduzido
num pacto de aliança, a antiga, e agora da nova e sempiterna. Se no mar dos
juncos – última fronteira da escravidão para lá da qual se estende o território
da liberdade – ficou deposto o corpo do velho Israel, agora ressurge o novo e
livre Israel, agora nasce o Israel que abarca e inclui todos os filhos de Deus.
E a celebração memorial da Páscoa de Cristo repropõe o acontecimento
escatológico, capaz da plenitude divina que atua no presente, sinal sacramental
da iniciativa de um Deus sempre fiel.
Peçamos o pão
de cada dia incluindo o Pão da Vida e
buscando o pão do corpo para todos.
2018.08.19 – Louro de Carvalho
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