Foi precisamente
a 6 de agosto de 1978, festa da Transfiguração do Senhor – já lá vão 40 anos – que
o Papa Paulo VI faleceu no palácio apostólico de Castel Gandolfo, residência de
verão usual dos Pontífices até ao pontificado de Francisco, que prescindiu da
sua utilização logo no início do seu ministério petrino e que, em 2016,
determinou que fosse aberto aos visitantes, anexando a maior parte das suas
salas e quartos ao museu que já ali existia.
Paulo VI
fica na História da Igreja como o sacerdote de profícuo trabalho pastoral junto
de setores importantes da população, o homem de fina diplomacia sob a égide de Pio
XII, o excecional pastor da arquidiocese milanesa, sob Pio XII e João XXIII, e
o Papa do Concílio Vaticano II – anunciado, convocado e aberto por João XXIII,
que presidiu à 1.ª sessão, ficando para o imediato sucessor a 2.ª, 3.ª e 4.ª. E
foi o grande timoneiro da Barca de Pedro no pós-Concílio, fazendo publicar
todos os decretos e instruções atinentes à execução e ao desenvolvimento das
reformas conciliares, sempre na prevalência da vertente pastoral, embora sem
diminuir ou obnubilar no quer que fosse os conteúdos dogmáticos.
O Pontífice
Montini rasgou horizontes na estrutura e missão dialogal da Igreja a nível
interno e a nível externo, nomeadamente nas relações ecuménicas, bem como no diálogo
inter-religioso, na relação com os não crentes e na relação como os Estados em prol
da paz.
Relevam neste
âmbito a sua encíclica Ecclesiam Suam,
a instituição do Sínodo dos Bispos, o incremento de mais atribuições das
Conferências Episcopais e do Bispo na sua diocese, as viagens apostólicas, o
discurso nos grandes areópagos internacionais, a encíclica Populorum Progressio e a Carta
Apostólica Octogesima Adveniens, no 80.º aniversário da Rerum
Novarum.
Entretanto,
o seu pontificado foi mal-amado por alguns setores devido a algum, pelo menos
aparente, temor quanto à evolução do pós-Concílio (obviamente
com distorções e abusos, mas também com muita vitalidade), pela encíclica Sacerdotalis Caelibatus (imbatível
do ponto de vista dos pressupostos, mas sem abrir mão da possibilidade de
ordenação sacerdotal de homens casados, mas reinstituiu o diaconado permanente também
para homens casados)
e, sobretudo, pela encíclica Humanae
Vitae, sobre a paternidade responsável e a regulação dos nascimentos. Sobretudo
esta emoldurou-lhe o pontificado de cores negras, por alegadamente não ter
seguido o sentido da comissão adrede criada e retrocedendo em relação à Gaudium et Spes (quod
restat demonstrandum).
Também alguns
o consideraram demasiado interventor político, já que os seus pronunciamentos
não eram anódinos (A fé tem consequências no exterior). Condenou o colonialismo, recebeu os líderes de movimentos de
libertação, declarou o direito dos povos à autodeterminação e à independência,
condenou as guerras e aceitou a teologia da libertação e a constituição das
comunidades de base.
Todavia, Paulo
VI foi o primeiro Pontífice a visitar os 5 continentes e o primeiro a encontrar-se
com o arcebispo de Cantuária e o primeiro, em vários séculos, a encontrar-se
com os dirigentes das diversas Igrejas Ortodoxas orientais. Célebre foi o
encontro e o abraço ao Patriarca Atenágoras I, no Fanar do Patriarcado Ecuménico
de Constantinopla, a 25 de julho de 1967.
Convém referir
que as altas instâncias da Igreja Católica levaram tempo a mais a fazer-lhe
justiça. E, se não foi o Papa Francisco a começar o seu processo de
beatificação e canonização, foi ele quem o beatificou a 19 de outubro de 2014, numa celebração na Praça São Pedro, na
conclusão do Sínodo extraordinário dos bispos sobre a família, e o canonizará a
14 de outubro próximo, no quadro da celebração do Sínodo dos Bispos sobre os
jovens. Mais: Francisco reconhece em Paulo VI o seu mentor na linha de uma
Igreja pobre e em saída; considera-o um visionário, que pressentiu o advento do
neomalthusianismo, e destaca o seu inestimável amor à Igreja e à humanidade,
bem como a recentração de Jesus Cristo na Igreja e no mundo. Ainda ontem, 5 de
agosto, se pronunciou sobre o mérito do Papa Montini aquando da recitação do Angelus dominical, falando, rezando e
pedindo um aplauso para ele à multidão:
“Há quarenta anos, o Beato Papa
Paulo VI estava vivendo as suas últimas horas nesta terra. Morreu, de facto, na
noite de 6 de agosto de 1978. Recordemo-lo com muita veneração e gratidão, à
espera da sua canonização, em 14 de outubro próximo. Do céu interceda pela
Igreja, que tanto amou, e pela paz no mundo. Este grande Papa da modernidade,
saudemo-lo com um aplauso, todos!”.
***
Já a 6 de
agosto de 2013, Francisco quis – “a sós, em oração no túmulo do seu predecessor”
– prestar homenagem a Paulo VI no dia do 35.º aniversário do seu falecimento. Assim,
pouco depois das 14 horas daquela terça-feira, 6 de agosto, o Pontífice, desceu
da entrada do Largo Braschi, às Grutas do Vaticano e chegou ao túmulo do Papa
Montini onde se deteve “em recolhimento para uma recordação muito pessoal”.
Depois,
no altar da cátedra, Dom Francesco Beschi, bispo de Bérgamo, natural de
Bréscia, celebrou a missa comemorativa em que participaram numerosos concidadãos
de Montini e muitíssimos fiéis, entre os quais cerca de 60 jovens dum grupo
vocacional da diocese de Bréscia que quiseram prestar homenagem ao seu Papa
vindos a pé de Poggio Bustone a Roma.
Após
a participação na missa em memória de Paulo VI, os jovens manifestaram o desejo
de se encontrarem com Francisco, que, ao tomar conhecimento do pedido, o
aceitou de bom grado. E, pouco depois das 18 horas, saiu para se
encontrar com eles diante de Santa Marta e disse-lhes pessoalmente: “Agradeço-vos muito esta visita. Como é
bonito, gosto muito disto” (L’ Osservatore Romano,
de 8-8-2013).
Também a
manhã desta segunda-feira, 6 de agosto, festa da Transfiguração do Senhor e 40.º
aniversário da morte de Paulo VI, o Papa Francisco desceu à Cripta Vaticana
para um momento de oração diante do túmulo de seu predecessor.
***
Ontem, o
postulador da causa de canonização do Papa Montini, o redentorista Padre
Antonio Marrazzo, prestou declarações ao Vatican
News. Começou por dizer, referindo palavras de Francisco em 19 de outubro
de 2014, que, ante uma sociedade que se perfilava de “secularizada e hostil”,
Paulo VI soube timonar, com “sabedoria visionária” e “às vezes na solidão”, a
barca petrina, “sem perder a alegria e a confiança no Senhor”. E sublinhou que
o Pontífice recordara o Beato Paulo VI também no Angelus deste domingo, rezando para que “do céu interceda pela
Igreja que tanto amou e pela paz no mundo”. Depois, relevou algumas asserções temáticas.
Antes de
mais, a sua “mensagem de humanidade” ficou espelhada nas meditações de
Montini, em que falava de um acontecimento – a “vida do homem” – digna de ser “cantada
em alegria”. Ali se pode ler que “esta vida mortal é, apesar de suas
dificuldades, seus obscuros mistérios, seu sofrimento e sua fragilidade
inevitável, um facto belíssimo, um prodígio sempre original”. Mais: segundo o postulador,
a mensagem de humanidade de Paulo VI encontra-se no seu “Pensamento da morte” e no seu testamento, onde fulgura a síntese do
entendimento de Montini sobre “o homem e, em particular, o homem à imagem de
Deus”.
No atinente
à civilização
do amor, o Padre redentorista assegura:
“Na sua morte há 40 anos, a Igreja continua um caminho diferente, que
começou com o Concílio, justamente levando em consideração o magistério de
Montini: colocar o homem no centro torna-se o foco, mas também a atenção
dirigida ao homem, não tanto e somente como um aspeto antropológico em si
mesmo, mas como imagem de Deus, o homem desejado por Deus à sua semelhança, um
homem que é valor, que tem uma dignidade”.
Segundo o
postulador, Montini havia levado em frente esse discurso desde o tempo de jovem
sacerdote, preocupando-se sempre com os últimos. E o seu legado consiste nesta
forte guinada que fez dar à Igreja. Paulo VI frisava que “devemos prestar
atenção ao homem na mesma medida com a qual Deus presta”, ou, como diria
hoje o Papa Francisco, com esta atitude “de misericórdia”, uma misericórdia que
Montini nos faz entender como “feita de ternura, de atenção, de compreensão
do limite do homem, sem julgar inutilmente, mas buscando antes construir”.
Neste sentido, Montini propôs a civilização
do amor, do amor que não condena, mas compreende e recupera, “porque em cada homem permanece o traço de
Deus, que devemos tentar fazer sair para fora, desabrochar”.
Em relação a
Cristo
homem universal, o Padre Marrazzo assegura que esta abarcante dimensão cristológica
começou imediatamente após o Conclave, em junho de 1963, quando o Cardeal
Montini, sacerdote e bispo de origem lombarda, nascido em Concesio em 1897, foi
escolhido para levar a bom termo o Concílio e guiá-lo com mão segura, para uma
Igreja “samaritana”, “serva da humanidade”, mais propensa a “mensagens de
confiança” do que a “presságios fatais”. Foi um pontificado de 15 anos, o de Paulo
VI, precedido de anos na diplomacia e no pastoreio que lhe conferiram a permanente
“arte da escuta e da construção da paz”. Do trabalho com os jovens, despontou a
transmissão de uma fé inteligente e livre, de uma cultura sedenta de verdade e
aberta ao diálogo. Como Arcebispo de Milão, transmitiu uma forte experiência de
uma Igreja do povo, próxima das pessoas e junto com a modernidade.
Enquanto protetor
da vida nascente e referindo a Humanae Vitae, em que Paulo VI afirmou
“a íntima união entre o amor conjugal e a
abertura à vida” e serviu de base para outros dois documentos do Magistério
da Igreja – as Instruções Donum vitae (1987) e Dignitas personae (2008), ambas sobre moral sexual e ética reprodutiva – o missionário
redentorista, recorda:
“Montini sempre disse que queria uma Encíclica sobre o amor conjugal e
sobre a continuidade criativa de Deus dada ao homem: dar vida, colaborar no dar
vida. É interessante que precisamente os dois milagres – tanto o apresentado
para a beatificação como o da próxima canonização – se refiram a algo especial:
são dois milagres que ocorreram em fetos, uma vida que ainda não se manifestou
como história, mas que já é história.”.
Depois, arrisca,
provavelmente ao arrepio da opinião generalizada, considerar Montini como o protetor da vida nascente. E explica:
“Ambas as mães e famílias invocaram Montini numa situação desesperada
para o feto. Sobretudo no último caso, uma menina italiana, de Verona, que
cresceu da 13.ª para a 24.ª semana sem esperança, porque não havia o líquido
amniótico e havia o perigo de ela nascer morta ou fortemente deformada e com
poucas horas de vida. Na realidade, a criança hoje é saudável. Quem propôs à
família que rezasse a Montini foi um ginecologista, justamente durante o
período de beatificação, em outubro de 2014; e então a criança nasceu no dia de
Natal. Esses dois milagres fazem-nos entender que da raiz, da vida
nascente, há todo o discurso que virá depois: já são pessoas que por Deus são
consideradas filhos.”.
***
Marrazzo frisa
que Francisco decidiu que Paulo VI será canonizado com Óscar Romero, que é um
mártir, e com outros santos da caridade. Com feito, a santidade não tem uma
cifra especial baseada no papel desempenhado na vida. A santidade canonizada
pela Igreja consiste sobretudo em apresentar alguém como um modelo de vida
cristã e, ao mesmo tempo, reconhecê-lo como um especial intercessor diante de
Deus. No caso de Paulo VI, é preciso atender bem aquilo que nos deixa, a centralidade de Cristo. Ao ler Cristo homem universal, nós encontramos
nele também a pessoa que, não só – como diz o próprio Montini – permite que nos
conectemos diretamente com o Deus Uno e Trino, mas também que aceitemos a todos
como género humano, sem exceção, abolindo qualquer discriminação, bem como “um sentido profundo de Igreja, a Igreja comunidade,
a Igreja corpo místico”.
***
Enfim, como
quer Francisco, no 40.º aniversário da morte de Paulo VI, há que lhe rezar para
que interceda pela Igreja que tanto amou e aplaudi-lo pela sua visão e
atividade persistente e inovadora, sem sair da Tradição eclesial, que fez evoluir
tanto quanto era possível ao tempo.
E não é demais
referir a sua grandeza de alam expressa no final da sua meditação sobre a morte,
sobre os homens e sobre a Igreja:
“Homens, compreendei-me; a todos
vos amo na efusão do Espírito Santo, em que eu, ministro, era obrigado a
fazer-vos participar. Assim olho para vós, assim vos saúdo, assim vos abençoo.
A todos. E a vós, que estais mais perto de mim, mais cordialmente. A paz esteja
convosco. E à Igreja, a quem tudo devo e que foi minha, que direi? As
bênçãos de Deus estejam sobre ti; tem consciência da tua natureza e da tua
missão; tem o sentido das necessidades verdadeiras e profundas da humanidade; e
caminha pobre, isto é, livre, forte e com amor, para Cristo.”.
2018.08.06 – Louro de Carvalho
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