domingo, 5 de agosto de 2018

“Um verdadeiro progresso dogmático”


A etiqueta vertida em epígrafe é do Arcebispo Dom Rino Fisichella, Presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, ao comentar a nova redação do n.º 2267 do Catecismo da Igreja Católica (CIC), determinada pelo Papa Francisco, que rejeita em absoluto a pena de morte. Trata-se de uma relevante mudança no texto que apresenta os conteúdos essenciais da doutrina católica sobre a fé e a moral, configurando um dinamismo de continuidade e não de rutura doutrinal – um passo decisivo na interpretação da doutrina de todos os tempos.
É certo que a carta da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) é perfeitamente elucidativa sobre o enquadramento e o alcance da inovação doutrinal ora introduzida no CIC. Todavia, era expectável que Fisichella tivesse uma palavra a dizer sobre o tema. Com efeito, a 17 de outubro de 2017, a Santa Sé publicou uma nova edição do CIC com apresentação do Papa Francisco e um comentário teológico-pastoral do Presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Ora, esta edição no 25.º aniversário da sua primeira edição, em 1992, saiu sem qualquer modificação comparativamente com a edição anterior.
Na apresentação, o Papa afirmava que “o Catecismo da Igreja Católica se apresenta como um caminho que, através de quatro etapas, ajuda a entender a dinâmica da fé”: “o desejo de cada ser humano que carrega consigo o anseio de Deus”; “a vida da graça expressa em particular nos Sete Sacramentos”; “o estilo de vida do fiel como vocação a ser vivida segundo o Espírito”; e “a oração como expressão de um encontro em que o homem e Deus se olham, falam e escutam”.
Trata-se de um percurso necessário “para entender plenamente a identidade do fiel como discípulo missionário de Jesus Cristo”.
Por sua vez, o comentário teológico-pastoral de Fisichella é “de grande ajuda para entrar sempre mais na compreensão do mistério da fé”, como explicou Francisco.
Assim, o CIC torna-se uma ulterior mediação por meio da qual se promovem e apoiam as Igrejas particulares em todo o mundo no compromisso de evangelização, como instrumento eficaz para a formação, sobretudo dos sacerdotes e catequistas”.
No comentário de Fisichella, é assinalada a importância do CIC na formação dos cristãos e no seu crescimento na fé. Diz o Arcebispo:
Para que a evangelização possa ser fecunda, pede-se a cada batizado que cresça na escuta da Palavra de Deus, que celebre os santos mistérios, que viva no caminho do Senhor e que faça da oração seu pão de cada dia. O Catecismo da Igreja Católica é um instrumento que ajuda a entrar progressivamente nesse empenho de vida.”.
Além disso, o CIC “é um instrumento necessário para a nova evangelização enquanto permite evidenciar a unidade que intervém entre o ato com o qual se crê nos conteúdos da fé”. Neste sentido, “pode ajudar a nova evangelização a superar uma dificuldade presente em várias igrejas que com frequência limitam a catequese apenas à preparação dos sacramentos”. Na verdade, “se a catequese se dirige unicamente à receção dos sacramentos, parece evidente que, terminado o percurso da iniciação cristã, a formação sucessiva corre o risco de acabar à deriva”. Por isso, o CIC constitui o “momento de retomar com convicção a possibilidade de uma formação constante, dirigida a todos os crentes”.
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Todavia, o Dicastério de Fisichella tinha promovido um encontro para assinalar o 25.º aniversário da publicação da 1.ª edição do CIC e da Constituição apostólica Fidei Depositum, que o mandou publicar. E, no seu discurso aos participantes, a 11 de outubro, já o Papa havia reiterado o desenvolvimento da doutrina e o seu enquadramento, cuja síntese fica plasmada na atual redação do n.º 2267 do CIC. Não obstante, como a matéria ainda não tinha sido objeto de debate na CDF, tornou-se prudente proceder à republicação do texto sem alterações.
Agora, depois do conveniente estudo e obtida a decisão, Fisichella vem – em nome do conceito de que “a tradição é viva pela própria natureza – comentar a alteração ao CIC introduzida por desejo de Francisco. Diz Fisichella:
A tradição, se não estiver viva, se não for mantida viva por um magistério sempre vivo, como insiste a Dei Verbum, a Constituição Dogmática sobre a Revelação, não é mais a tradição”.  
A nova formulação do CIC, que entende como inadmissível a pena de morte, introduzida por desejo do Papa através de Rescrito publicado no dia 2 de agosto, representa “um verdadeiro progresso dogmático”, com o qual exprimimos um conteúdo de fé que amadureceu progressivamente até ao ponto de nos fazer compreender a inadmissibilidade da pena de morte em nossos dias. Di-lo o presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização (o dicastério que tem a competência em matéria de catequese) em artigo publicado no “L'Osservatore Romano” no dia 3.  
Segundo o prelado, o novo conteúdo – “em continuidade com o magistério precedente” – mostra como o depósito da fé é preservado, mas progride. Declarou ele ao VaticanNews:
O novo texto do Catecismo mostra um interessante desenvolvimento, porque até ao texto precedente – quer o de 92 como o de 97, que era a editio typica – em relação ao tema da pena de morte ainda era admitida a sua possibilidade e legalidade. Agora, pelo contrário, o Papa Francisco – em continuidade com o magistério de João Paulo II e do Papa Bento – concorda em explicitar ulteriormente o argumento, dando mais um passo. E esta passagem, como é dito ‘à luz do Evangelho’, faz compreender que a pena de morte é inadmissível. E, portanto, há palavras claras que não deixam qualquer mal-entendido sobre este ensinamento.”.
Trata-se, pois, de um progresso real de um conteúdo de fé. E Fisichella esclarece:
Sobretudo se isso é considerado no novo contexto que o Papa Francisco apresenta, ou seja, a dignidade da pessoa. Aqui é preciso observar que existe uma mudança do Catecismo. Antes, o objetivo era o de defender as pessoas que, devido a instrumentos ainda não desenvolvidos, poderiam sofrer violência por parte de um agressor. Agora, para a mudança de perspetiva, o objetivo não é mais a defesa das pessoas; não porque isto não permaneça como um princípio fundamental na moral católica, mas como ele é superado pelos novos sistemas também de detenção que têm à disposição os Estados, democráticos ou não. Agora, a perspetiva é a da dignidade da pessoa. O que o Papa Francisco leva a termo é a superação de uma visão restritiva, porque diz que a ninguém pode ser tirada a possibilidade de uma reabilitação, portanto, de uma reintegração, também no tecido social.”.
E, sobre o dever do Estado e a capacidade ou não da reabilitação das pessoas, o Presidente do dicastério competente em matéria de catequese discorre:
Isso comporta, obviamente, a capacidade por parte do Estado de favorecer esta dimensão e, portanto, também por parte do culpado – não esqueçamos, quando a autoridade legítima emite uma sentença de condenação à morte significa que há um crime muito grave – deve haver um esforço em reabilitar-se. Isto porque, não obstante o crime gravíssimo, deve haver sempre, nesta visão, uma abertura que é fonte de esperança, precisamente em relação à dignidade de cada pessoa. A possibilidade de começar uma nova vida não pode ser tirada de ninguém. E devemos dizer que, como há tantos exemplos de reincidência no crime, há também muitos exemplos – e agradeçamos ao Senhor por isso! – de conversão, de reabilitação e de reconciliação entre o culpado e as vítimas ou os familiares das vítimas.”.
Quanto à diferença entre “manter” o depositum fidei, o que se deve fazer, e “mumificá-lo”, o que não se pode fazer, Fisichella, explicita:
O Papa Francisco havia dito há um ano, naquele encontro organizado pelo Pontifício Conselho para a Nova Evangelização – que, não esqueçamos, é responsável do Catecismo da Igreja Católica e, portanto, também chamado como sua missão específica à promoção do Catecismo, o uso do Catecismo e depois também para se certificar de que o Catecismo, mesmo apresentando a doutrina de sempre, corresponda às novas exigências contemporâneas – naquele discurso, em 11 de outubro do ano passado, o Papa Francisco tinha dito que a tradição não é como um cobertor colocado sob naftalina. A tradição é viva, por sua própria natureza. Este é o ensinamento do Concílio. Esta é também a compreensão da tradição e que a tradição dá de si mesma.”.
E à comparação de Francisco o Arcebispo adiciona a contida na expressão inglesa “fly in ambra” para frisar que “a tradição não é uma mosca que é inserida no âmbar, nesta resina que a conserva assim”. E comenta:
Isso significaria destruir a tradição. A tradição, se não estiver viva, se não for mantida viva por um magistério sempre vivo, como insiste a Dei Verbum, a Constituição Dogmática sobre a Revelação, não é mais a tradição. Portanto, penso que estamos diante de uma consideração notável, importante. Cumpre-se um passo realmente decisivo que ajudará também o empenho dos católicos na vida social e política dos próprios países.”.
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Na verdade, a história do dogma não vive da descontinuidade, mas da continuidade voltada para o progresso através dum desenvolvimento harmonioso que expõe dinamicamente a verdade de todos os tempos. E a missiva subscrita pelo prefeito da CDF, o Cardeal Luis F. Ladaria, para explicar aos bispos a nova redação introduzida no CIC, frisava que ela “se situa em continuidade com o Magistério precedente, levando por diante um desenvolvimento coerente da doutrina católica”. E aduzia:
A Igreja está muito consciente de que, face a tais crimes violentos e desumanos que outorgam autoridade legítima a uma sentença de pena de morte, há sempre sentimentos diversificados. Ao defender a abolição da pena de morte, certamente não esquecemos a dor das vítimas envolvidas nem a injustiça perpetrada. Mas pede-se que a justiça dê o seu passo decisivo, não de rancor e vingança, mas de responsabilidade mais além do momento presente.”. 
Por outro lado, a mudança operada no Catecismo “é um olhar para o futuro, onde a conversão, o arrependimento e o desejo de começar uma nova vida desde o princípio não podem ser tirados a ninguém, incluindo os que cometeram crimes graves. Na verdade, “reprimir voluntariamente uma vida humana é contrário à revelação cristã”; e “apresentar o perdão e a redenção é o desafio que a Igreja está chamada a fazer seu como um compromisso com a nova evangelização”. 
No discurso pronunciado em outubro de 2017 para o 25.º aniversário da publicação do CIC, o Papa abordou explicitamente a questão, como se disse, referindo que o tema deveria ter encontrado no Catecismo “um espaço mais adequado e coerente”. E a carta da CDF aduz:
Em continuidade com o magistério anterior, em particular com as afirmações de João Paulo II e Bento XVI, o Papa quis enfatizar a dignidade da pessoa, que de nenhum modo pode ser humilhada ou excluída: afirmar energicamente que a condenação à pena de morte é uma medida desumana que humilha a dignidade pessoal em qualquer forma que se processe. É em si mesma contrária ao Evangelho.”.
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Com a nova redação do n.º 2267 do CIC, a Igreja dá, assim, um passo decisivo na promoção da dignidade de cada pessoa, qualquer que seja o crime que possa ter cometido, e condena explicitamente a pena de morte. É uma formulação que tem presente o compromisso dos crentes pela vida, “especialmente nos muitos países onde persiste a pena de morte”. Com efeito, a   pena de morte ainda se aplica em 58 Estados e territórios. A última informação da ONG respetiva contabiliza 1.634 execuções em 2015, um aumento de mais de 50% relativamente ao ano anterior. E 89% das execuções têm lugar na Arábia Saudita, no Irão e no Paquistão. 
Por outro lado esta alteração no CIC testemunha uma “consciência mais viva” que emerge de maneira cada vez mais convicta nas populações, especialmente entre as gerações mais jovens chamadas a encarregarem-se da promoção de uma nova cultura em prol da vida humana.
O prefeito da CDF sustenta:
Uma leitura cuidadosa permite-nos verificar como a Igreja nestas últimas décadas avançou realmente na compreensão do ensino sobre a dignidade da pessoa e, por consequência, na reformulação do seu pensamento sobre a pena de morte”.
Por seu turno, Fisichella assinala como importante que o Papa tenha mencionado uma maior sensibilidade do povo cristão sobre o tema, “para sublinhar que hoje os Estados têm à sua disposição muitos sistemas de defesa para a proteção da população e que se desenvolveram formas de detenção que anulam o perigo e o trauma da violência contra pessoas inocentes" - o que "é igualmente um elemento decisivo”.
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A acrescentar aos dados acima referidos sobre a pena de morte, resta referir que, em 2017, se registaram quase 1000 execuções por pena de morte, uns 4% menos que no ano anterior (1.032 execuções) e menos 39% que em 2015 (1634). Em 2015, registou-se o valor percentual mais alto desde 1989.
Os Estados Unidos Estados continuam a ser o único país da América que levou a cabo execuções pelo nono ano consecutivo. O número de execuções (23) e de condenações à morte (41) nos EUA aumentou ligeiramente em relação a 2016, mas continua dentro das tendências historicamente baixas dos últimos anos. Como métodos de execução utilizaram-se a decapitação, o enforcamento, a injeção letal e a morte por arma de fogo.
Mais: há muitos casos de condenações sem prévio julgamento regular e justo. Tais são as ocorrências verificadas na Arábia Saudita, no Bahréin, na China, no Iraque e no Irán, em que as execuções por pena de morte não se fundamentam em processos judiciais justos. Ademais, supõe-se que se obtêm ‘confissões’ por meio de torturas ou maus tratos.
Assim, “Meriam contou que, durante o seu cativeiro, soubera que o Papa tinha orado por ela e que, naquela noite isso lhe deu uma fortaleza inesperada, que só quem tem uma autêntica fé conhece. Confirmara que ela estava a trabalhar por uma causa justa, que combatia numa luta que não era apenas sua. E disse sentir-se menos só” (do libro Me llamo Meriam, pg 107, apud Aleteia).
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Enfim, duma vez por todas, não à pena de morte em nome da vida e do Evangelho!

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 Cf
- http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/08/02/0556/01209.htm
- http://press.vatican.va/content/salastampa/it/bollettino/pubblico/2018/08/02/0556/01210.html
- http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/october/documents/papa-francesco_20171011_convegno-nuova-evangelizzazione.html
- https://www.vaticannews.va/it/vaticano/news/2018-08/pena-morte-modifica-catechismo-papa-francesco-rino-fisichella.html
- https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/2018-08/pena-de-morte-mudanca-catecismo-papa-francisco-tradicao.html
- https://www.acidigital.com/noticias/vaticano-publica-nova-edicao-do-catecismo-da-igreja-catolica-61002
- https://es.aleteia.org/2018/08/03/la-decision-del-papa-sobre-la-pena-de-muerte-es-continuidad-no-ruptura-doctrinal/

2018.08.05 – Louro de Carvalho

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