quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Em torno das palavras “solar” (de solo) e “solar” (de sol)


Há dias ouvi uma explicação sobre as palavras referenciadas em epígrafe numa emissora radiofónica de expansão nacional e confesso que me soube a pouco. Poderia pensar-se que num programa radiofónico as explicações são sempre breves e até fragmentárias. No entanto, o “consultor” apelou para os conhecimentos de grego e de latim que aprendera nas aulas de Português no antigo 5.º ano de liceu, lamentando que agora os alunos não aprendem nada disso.
Devo dizer que eu também passei por isso e o que então se aprendeu não dá para discorrer muito sobre a etimologia das palavras e a sua adequada aplicação em contexto. Por outro lado, não sei se o predito “consultor” sabe que atualmente no 9.º ano de escolaridade (antigo 5.º ano de liceu) são lecionados os fenómenos de evolução fonética e de evolução semântica, o que pressupõe conhecimentos de latim. Se os alunos ficam a saber muito disso ou pouco, isso é outra cantiga.
E estribar-se no que eventualmente se aprendeu no antigo 5.º ano do liceu para se emaranhar nas questões etimológicas é um pouco temerário, não? Mas atentemos no tema que nos propusemos.
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Da primeira palavra vertida em epígrafe deve dizer-se que o termo “solar” provém do adjetivo latino biforme “solaris, solare”, que, por sua vez, deriva do nome neutro latino “solum, soli” (de que derivou o adjetivo solius, a, um – do solo, que deu o nosso “solho”) que significa: 1parte chata e inferior dum corpo (lá está a sola do pé e, por transferência, a sola do sapato, sendo que os animais que assentam as patas no chão se denominam de solípedes), base, sustentáculo; 2fundo (do mar, dum fosso, etc.), pavimento, planta do pé, sola; 3solo, chão, terra, território, região; e, em sentido figurado, 4base, fundamento, qualidade fundamental.
Atendendo ao sentido explicitado em 3, é de referir que, sobre o termo “solar”, na douta opinião de Carlos Rocha, proferida, a 24 de abril de 2013, em Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-etimologia-de-solar/32238), ficamos a saber que o nome “solar” é usado nos sentidos de “moradia de família nobre ou importante” e “moradia de grandes dimensões, geralmente de arquitetura requintada” (cf solar3Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia). Mais discorre que o nome “solar surgira como derivado de solo, “chão, terra” – a que se associou o sufixo formador de adjetivos -ar (cf Dicionário Houaiss; José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa). Sobre este sufixo, lê-se também no Dicionário Houaiss (abreviaturas desenvolvidas):
Do latim -arise, alternativo do sufixo -al do latim -ālis, e; é de notar, para estes casos, que a opção linguageira por -ar adjetival, quase que sistematicamente, ocorre em palavras cujo radical encerra l, numa tendência clara à dissimulação de dois ll; a série de adjetivos, sempre de dois géneros, compreende um bom número de palavras que se substantivam, ocasional ou quase regularmente; nesses casos, o género da palavra substantivada é quase sistematicamente função de silepse, subentendido, assim, o género do substantivo pensado: os (elementos) preliminaresas (noções) preliminares, a (decisão, sentença) liminar, o (despacho) liminar etc. [...]”.
Ora, cingindo a discussão a “solar, o termo terá tido inicialmente valor adjetival, designando o que era relativo ao solo que era propriedade duma família. Depois, verificou-se a sua substantivação ou nominalização em “o solar”, acompanhada dum processo de restrição semântica que acabou por tornar “solar sinónimo de “paço”, que evolui foneticamente de “palácio” (palatium, ii), tornando-se sua palavra divergente ou alótropa, por via dita popular: apócope do m para palatiu; síncope do l para paatiu; crase de aa, para patiu; e palatalização em ç para paço.
Recorde-se que, de “solar”, se deriva o adjetivo solarengo, que muitos falantes usam, em vez de soalheiro e ensolarado. Quem refere que é erro tal uso, criticando o Dicionário da Academia de Ciências por isso esquece o fenómeno da contaminação recorrente na língua portuguesa.
No entanto, é mais óbvio, ao falar-se de solar neste sentido, que se aplique o termo “solarengo”, que não é tão unívoco como alguns pensam. Assim, solarengo – derivado de solar + o sufixo -engo – pode assumir-se como adjetivo uniforme (relativo ou pertencente a solar ou como referente a moradia que tem o aspeto de solar – ou que é grande e tem arquitetura requintada) e como nome masculino (dono ou habitante de solar ou aquele que, como serviçal ou lavrador, vivia no solar ou fazenda de outrem). 
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O conceito de “solar” evoluiu ao longo do tempo. Solar ou palacete é a casa de origem de família nobre. Mas o nome também é utilizado de modo mais amplo para residência antiga de grande luxo e conforto, relativo à sua época. Um solar podia ser habitado por nobres ou simplesmente por uma família pertencente à elite tradicional e antiga duma região ou cidade. Nalguns poucos casos as famílias originais continuam a habitar os seus antigos solares.
Também alguns abastados comerciantes e empresários  construíram os seus solares, nomeadamente no Brasil, sendo que todos estes foram erguidos no início do século XX.
Em Portugal, essa influência política e de riqueza tradicional expandia-se por todo o país e, no tempo do Império, famílias que detinham grandes quantidades de terras nas colónias e navios mercantes costumavam erguer o seu solar na Metrópole para terem representação na corte. Esses solares existiam em muitos territórios do antigo Império, pois a expansão ultramarina deu azo a que as famílias nobres e ricas continuassem a sua dominação, tendo-se juntado a estas algumas famílias que eram importantes em certos territórios e que, depois da colonização portuguesa, se “aportuguesaram”, como sucedeu, por exemplo, em Moçambique, Brasil e Goa.
A designação de solar é mal utilizada por quem o confunde com as suas caraterísticas acessórias mais evidentes, ou seja, de casa antiga e com alguma grandeza, em geral associada à nobreza. Assim, começou a ser cada vez mais vulgar o uso do termo solar para casas que nunca o foram nem na respetiva documentação histórica são identificadas como tal, como é, por exemplo, o caso dos agora ditos Solar do Visconde de Almendra ou o Solar dos Noronhas, na Calheta.
Em rigor, o solar é a casa donde nasceu uma linhagem nobre. Daí que sejam muito poucos os verdadeiros solares que subsistem, se bem que este termo também pode, por isso mesmo, ser aplicado a palacetes por exemplo do século XIX pertencentes a famílias então nobilitadas, por se considerar que essa família, enquanto tal, começou então.
Os verdadeiros solares são, portanto, construções como a a torre de Vasconcelos, solar dos Vasconcelos, mas em geral pouco ou nada resta dessas construções iniciais, pelo menos no que toca à maioria das famílias com origens na Idade Média. Um exemplo importante é o Solar dos Távoras, na freguesia de Souro Pires, concelho de Pinhel, no distrito da Guarda, edificado no século XV, donde se terá iniciado a linhagem da mais importante família do Império nos séculos XVII e XVIII – os Távoras, cuja história terminou no processo mais mediático da época, o Processo dos Távoras. Por extensão, começou também a chamar-se solar à casa principal, dita casa-mãe, não já duma linhagem,mas duma Casa titular. Assim, por exemplo, o castelo de Alvito seria o solar dos barões de Alvito. Mas a designação é inadequada, pois o senhorio e o castelo de Alvito pertenceram a um ramo da linhagem dos Lobo, muito anterior, e o 1.º barão de Alvito nem sequer era desta família, tendo o senhorio e o castelo por herança de sua mulher. Embora seja uma situação mais tardia, há casos especiais em que podemos vê-los a abranger as duas situações como corretas em simultâneo, nomeadamente no Paço de Lanheses se o considerarmos como sendo igualmente o Solar dos Ricaldes e, muito mais tarde, até à atualidade, o Solar dos Almadas quando se tornou a casa-mãe dessa família.
E podem ser destacados outros exemplos de solares que pertencem ou pertenciam a famílias nobres e tradicionais ou apenas tradicionais, como a nobre família Morais Sarmento, que detém o conhecido Solar do Visconde de Almendra, em Almendra, concelho de Vila Nova de Foz-Coa, ou como a parte nobre da família Noronha, que detém o Solar dos Noronhas em Calheta, ou ainda como o Solar de Alarcão, que pertencia à tradicional “família Alarcão”. (cf https://pt.wikipedia.org/wiki/Solar_(habita%C3%A7%C3%A3o)
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Da segunda palavra vertida em epígrafe deve dizer-se que este termo “solar” provém do adjetivo biforme latino “solaris, solare” (solar, do sol), que, por sua vez, deriva do nome neutro latino “sol, solis”, que significa: 1Sol (astro ou deus); 2dia, luz, claridade, raio; 3calor (do sol), ardor, dia calmo; 4dia, sol; 5céu, clima.
Porém, o dicionário Novo Aurélio dá ao terno “sol” as seguintes aceções: 1estrela que é o centro do sistema solar; 2estrela ou outro astro que é centro de um sistema planetário; 3luz ou calor dessa estrela; 4representação dessa estrela; 5tempo correspondente a um dia; 6luz intensa; 7génio, grande talento; 8princípio ou ideia que exerce grande influência na sociedade; 9círculo com doze raios, seis direitos e seis em ondulações com esmalte de ouro; 10designação de vários peixes teleósteos da família dos molídeos, de corpo arredondado; 11na praça de touros, conjunto de lugares que fica onde se apanha sol durante as lides; 12chova ou faça sol – em qualquer circunstância; aconteça o que acontecer; 13“de sol a sol – do nascer ao pôr do sol; enquanto há luz natural; 14tapar o sol com a peneira:  tentar esconder algo que é evidente; 15moeda do Peru; 16tempo correspondente a um dia.
Por seu turno, o Dicionário da Porto Editora refere os seguintes sentidos do adjetivo uniforme “solar”: 1pertencente ou referente ao Sol; 2(em sentido figurado) luminoso. E define, em astronomia, como a constante solar a intensidade da radiação solar incidente num plano perpendicular em direção à propagação no limite da atmosfera terrestre, quando a distância da Terra ao Sol tem o valor médio de 150x106 quilómetros e o seu valor médio é de 1353W/m2; e, como o cume solar, a região da esfera celeste para a qual o sistema solar se está a mover como um todo e que existe na constelação de Hércules. Em física, define o espectro solar como o espectro contínuo, brilhante, com numerosas riscas negras (riscas de Fraunhöfer, físico alemão, 1787-1826). Por outro lado, menciona o nome solário (do latim solarium, clepsidra, quadrante solar, galeria ou terraço voltado ao sol) no sentido de estabelecimento onde as pessoas se podem bronzear artificialmente; equipamento para esse efeito; estabelecimento destinado à cura de doenças através da exposição ao sol; relógio de sol usado pelos antigos romanos (gnómon); terraço ou divisão duma casa em que se pode apanhar sol. Menciona ainda “solarímetro” (nome masculino, do latim solare, solar + o grego métron, medida), a significar instrumento que serve para medir o fluxo de energia solar através duma superfície; “solarização” (nome feminino, do inglês solarization), a significar ato ou efeito de solarizar; e, por conseguinte, o verbo “solarizar”, no sentido de reduzir a transparência (de um vidro) por efeito da luz solar ou de radiações ultravioletas (do inglês solarize).
Também se refere a “solar” no sentido, acima referido, de moradia nobre, importante ou de grandes dimensões, geralmente de arquitetura requintada, como trata do adjetivo “solarengo”, no sentido acima referenciado. E menciona o verbo “solar” (vd significados de solo) no sentido de deitar solas, bem como o nome feminino “solaria” no sentido de quantidade de cabedal para calçado ou conjunto de solas para calçado – derivado de sola (peça geralmente de couro ou borracha, que forma a parte inferior, mais dura e resistente, do calçado; couro preparado par afazer calçado; planta do pé; e, como regionalismo, bucho do boi), do latim vulgar “sola” por “solea” sandália (de solum, i).
E poderia mencionar “solar” no sentido de um solista cantar a solo, do latim solus, sola, solum – só, um só, sozinho – por via italiana. Mas o tempo não lhe deu para tudo.
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Falta uma referência, ainda que sucinta, às palavras “ensolarado” e “soalheiro”.
“Ensolarado” é um adjetivo biforme derivado de “solar” (de sol) por parassíntese, derivação simultaneamente por prefixação e sufixação. E significa obviamente: soalheiro, que está ao sol, que apanha muito sol.
Por seu turno, “soalheiro” (de soalhar + eiro), é um adjetivo biforme que significa exposto ao sol, quente; e um nome masculino que significa lugar onde dá o sol; e, num sentido popular, reunião de pessoas ociosas, geralmente sentadas ao sol, para falarem da vida alheia; má-língua. E contrapõe-se ao nome feminino “soalheira” (hora de maior calor; ardor do sol, calor; exposição ao sol). Também se usa, no sentido de “soalheiro” e em termos populares, o nome masculino “soalhal”.
Ora, qual será a proveniência latina de soalheira, soalheiro e soalho? Se nos ativermos a solum, i (solo, chão ou algo que fica em contacto com o chão ou que faz de chão), teremos que pensar no diminutivo latino de “solum, i”, o “solaculum, i”, que evoluiu foneticamente para soalho por apócope do m (solaculu), síncope do u (solaclu), síncope do l (soaclu) e palatalização de cl (soalhu/o). Estaríamos a aplicar a realidades vocabulares conexas com sol vocábulos conexos com solo – por via da contaminação, a que se aludiu acima. Neste sentido, “soalhar” (verbo transitivo direto) – no sentido de pôr soalho em ou sobradar seria próximo de “soalhar” no sentido figurado de divulgar, expor à luz do sol. Porém, não seria conexo com “soalhar” no sentido de fazer retinir as soalhas de pandeiro. “Soalha” é a designação que se dá a cada rodela metálica do pandeiro ou a cada peça móvel da balestilha. E provém do verbo latino “sonare” (sono, as are, ui, itum ou avi, atum), que significa soar, produzir som, fazer barulho, tocar, cantar, retumbar. Proviria da forma neutra do plural “sonacula” (do adjetivo diminutivo sonaculus, a, um – de sonax, acis – que produz som), cuja evolução fonética para “soalha” é similar da de “solaculum”: síncope do u (sonacla), síncope do n (soacla) e palatalização de cl (soalha)  
Mas há outra hipótese que é soalho, soalheira e soalheiro provirem de “solaculum, i”, diminutivo popular de “sol, is” e com evolução fonética igual à do homónimo. Quantas vezes não dizem ainda hoje que está um solzinho de queimar ou um solzinho bem tímido!
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Seja como for, a etimologia muitas vezes constrói-se no campo das hipóteses, até porque, regra geral, a maior parte dos vocábulos que provieram do latim, provieram da variante popular (sobretudo até aos séculos XVI e XVII – em que se operou um enriquecimento da língua com base em muitas palavras do latim erudito), que em parte se esconde na nebulosidade do tempo. Por isso, as certezas nestas coisas são muito poucas! Faz-se o que se pode.
2018.08.23 – Louro de Carvalho

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