Há dias
ouvi uma explicação sobre as palavras referenciadas em epígrafe numa emissora
radiofónica de expansão nacional e confesso que me soube a pouco. Poderia
pensar-se que num programa radiofónico as explicações são sempre breves e até
fragmentárias. No entanto, o “consultor” apelou para os conhecimentos de grego
e de latim que aprendera nas aulas de Português no antigo 5.º ano de liceu,
lamentando que agora os alunos não aprendem nada disso.
Devo
dizer que eu também passei por isso e o que então se aprendeu não dá para
discorrer muito sobre a etimologia das palavras e a sua adequada aplicação em
contexto. Por outro lado, não sei se o predito “consultor” sabe que atualmente
no 9.º ano de escolaridade (antigo 5.º ano de liceu) são lecionados os fenómenos de
evolução fonética e de evolução semântica, o que pressupõe conhecimentos de
latim. Se os alunos ficam a saber muito disso ou pouco, isso é outra cantiga.
E estribar-se
no que eventualmente se aprendeu no antigo 5.º ano do liceu para se emaranhar
nas questões etimológicas é um pouco temerário, não? Mas atentemos no tema que
nos propusemos.
***
Da primeira
palavra vertida em epígrafe deve dizer-se que o termo “solar” provém do
adjetivo latino biforme “solaris, solare”,
que, por sua vez, deriva do nome neutro latino “solum, soli” (de que derivou o adjetivo solius, a, um –
do solo, que deu o nosso “solho”)
que significa: 1parte chata e inferior dum corpo (lá
está a sola do pé e,
por transferência, a sola do sapato, sendo que os animais que assentam as patas
no chão se denominam de solípedes),
base, sustentáculo; 2fundo (do mar, dum fosso, etc.), pavimento, planta do pé, sola;
3solo, chão, terra, território, região; e, em sentido figurado, 4base,
fundamento, qualidade fundamental.
Atendendo
ao sentido explicitado em 3, é de referir que, sobre o termo
“solar”, na douta opinião de Carlos Rocha, proferida, a 24 de abril de 2013, em
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-etimologia-de-solar/32238), ficamos a saber que o nome
“solar” é usado nos sentidos de “moradia de família nobre ou importante” e “moradia
de grandes dimensões, geralmente de arquitetura requintada” (cf solar3, Dicionário
da Língua Portuguesa da Porto Editora, na Infopédia). Mais discorre que o nome “solar” surgira como derivado de “solo”, “chão, terra” – a que se associou o sufixo
formador de adjetivos -ar (cf
Dicionário Houaiss; José Pedro Machado, Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa). Sobre este sufixo, lê-se também
no Dicionário Houaiss (abreviaturas desenvolvidas):
“Do latim -aris, e, alternativo do sufixo -al do
latim -ālis, e; é de notar, para estes casos, que a opção linguageira
por -ar adjetival, quase que sistematicamente, ocorre em palavras cujo
radical encerra l, numa tendência clara à dissimulação de
dois ll; a série de adjetivos, sempre de dois géneros, compreende
um bom número de palavras que se substantivam, ocasional ou quase regularmente;
nesses casos, o género da palavra substantivada é quase sistematicamente função
de silepse, subentendido, assim, o género do substantivo pensado: os
(elementos) preliminares, as (noções) preliminares,
a (decisão, sentença) liminar, o (despacho) liminar etc.
[...]”.
Ora,
cingindo a discussão a “solar”, o termo
terá tido inicialmente valor adjetival, designando o que era relativo ao solo
que era propriedade duma família. Depois, verificou-se a sua substantivação ou
nominalização em “o solar”, acompanhada dum processo de restrição semântica que
acabou por tornar “solar” sinónimo
de “paço”,
que evolui foneticamente de “palácio”
(palatium, ii), tornando-se sua palavra
divergente ou alótropa, por via dita popular: apócope do m para palatiu; síncope
do l para paatiu; crase de aa, para
patiu; e palatalização em ç para paço.
Recorde-se
que, de “solar”, se deriva o adjetivo solarengo, que muitos
falantes usam, em vez de soalheiro e ensolarado. Quem refere que é erro tal uso, criticando o Dicionário da Academia de Ciências por
isso esquece o fenómeno da contaminação recorrente na língua portuguesa.
No
entanto, é mais óbvio, ao falar-se de solar neste sentido, que se aplique o
termo “solarengo”, que não é tão
unívoco como alguns pensam. Assim, solarengo – derivado de solar + o sufixo
-engo – pode assumir-se como adjetivo uniforme (relativo ou pertencente a solar ou como referente a moradia que tem o aspeto de
solar – ou que é grande e tem arquitetura requintada) e como nome masculino (dono ou habitante de solar
ou aquele
que, como serviçal ou lavrador, vivia no solar ou fazenda de outrem).
***
O conceito
de “solar” evoluiu ao longo do tempo. Solar ou palacete é
a casa de origem de família nobre. Mas o nome também é utilizado de modo
mais amplo para residência antiga de grande luxo e conforto, relativo à sua
época. Um solar podia ser habitado por nobres ou simplesmente por uma família
pertencente à elite tradicional e antiga duma região ou cidade. Nalguns
poucos casos as famílias originais continuam a habitar os seus antigos solares.
Também alguns
abastados comerciantes e empresários construíram os seus solares,
nomeadamente no Brasil, sendo que todos estes foram erguidos no início do
século XX.
Em Portugal,
essa influência política e de riqueza tradicional expandia-se
por todo o país e, no tempo do Império, famílias que detinham grandes
quantidades de terras nas colónias e navios mercantes costumavam erguer o seu
solar na Metrópole para terem representação na corte. Esses solares existiam em
muitos territórios do antigo Império, pois a expansão ultramarina deu azo
a que as famílias nobres e ricas continuassem a sua dominação, tendo-se juntado
a estas algumas famílias que eram importantes em certos territórios e que,
depois da colonização portuguesa, se “aportuguesaram”, como sucedeu, por exemplo,
em Moçambique, Brasil e Goa.
A designação
de solar é mal utilizada por quem o confunde com as suas caraterísticas
acessórias mais evidentes, ou seja, de casa antiga e com alguma grandeza, em geral
associada à nobreza. Assim, começou a ser cada vez mais vulgar o uso do termo
solar para casas que nunca o foram nem na respetiva documentação histórica são
identificadas como tal, como é, por exemplo, o caso dos agora ditos Solar
do Visconde de Almendra ou o Solar dos Noronhas, na Calheta.
Em rigor, o
solar é a casa donde nasceu uma linhagem nobre. Daí que sejam muito
poucos os verdadeiros solares que subsistem, se bem que este termo também pode,
por isso mesmo, ser aplicado a palacetes por exemplo do século XIX pertencentes
a famílias então nobilitadas, por se considerar que essa família, enquanto tal,
começou então.
Os
verdadeiros solares são, portanto, construções como a a torre de
Vasconcelos, solar dos Vasconcelos, mas em geral pouco ou nada resta dessas
construções iniciais, pelo menos no que toca à maioria das famílias com origens
na Idade Média. Um exemplo importante é o Solar dos Távoras, na
freguesia de Souro Pires, concelho de Pinhel, no distrito da Guarda, edificado
no século XV, donde se terá iniciado a linhagem da mais importante família do Império
nos séculos XVII e XVIII – os Távoras, cuja história terminou no processo
mais mediático da época, o Processo
dos Távoras. Por extensão, começou também a chamar-se solar à casa principal,
dita casa-mãe, não já duma linhagem,mas duma Casa titular. Assim, por
exemplo, o castelo de Alvito seria o solar dos barões de Alvito. Mas
a designação é inadequada, pois o senhorio e o castelo de Alvito pertenceram a
um ramo da linhagem dos Lobo, muito anterior, e o 1.º barão de Alvito nem
sequer era desta família, tendo o senhorio e o castelo por herança de sua mulher.
Embora seja uma situação mais tardia, há casos especiais em que podemos vê-los
a abranger as duas situações como corretas em simultâneo, nomeadamente no Paço
de Lanheses se o considerarmos como sendo igualmente o Solar dos Ricaldes
e, muito mais tarde, até à atualidade, o Solar dos Almadas quando se tornou a
casa-mãe dessa família.
E podem ser
destacados outros exemplos de solares que pertencem ou pertenciam a
famílias nobres e tradicionais ou apenas tradicionais, como a
nobre família Morais Sarmento, que detém o conhecido Solar do
Visconde de Almendra, em Almendra, concelho de Vila Nova de Foz-Coa, ou
como a parte nobre da família Noronha, que detém o Solar dos Noronhas em Calheta,
ou ainda como o Solar de Alarcão, que pertencia à tradicional “família
Alarcão”. (cf
https://pt.wikipedia.org/wiki/Solar_(habita%C3%A7%C3%A3o)
***
Da
segunda palavra vertida em epígrafe deve dizer-se que este termo “solar” provém
do adjetivo biforme latino “solaris,
solare” (solar, do sol),
que, por sua vez, deriva do nome neutro latino “sol, solis”, que significa: 1Sol (astro ou
deus); 2dia, luz, claridade, raio; 3calor
(do
sol), ardor, dia
calmo; 4dia, sol; 5céu, clima.
Porém, o
dicionário Novo Aurélio dá ao terno “sol” as seguintes aceções: 1estrela
que é o centro do sistema solar;
2estrela ou outro astro que é centro de um sistema
planetário; 3luz ou
calor dessa estrela; 4representação dessa estrela; 5tempo
correspondente a um dia; 6luz intensa; 7génio, grande
talento; 8princípio
ou ideia que exerce grande influência na sociedade; 9círculo
com doze raios, seis direitos e seis em ondulações com esmalte de ouro; 10designação
de vários peixes teleósteos da família dos molídeos, de corpo arredondado; 11na
praça de touros, conjunto de lugares que fica onde se apanha sol durante as lides; 12chova
ou faça sol – em qualquer circunstância; aconteça o que acontecer; 13“de sol
a sol – do nascer ao pôr do sol; enquanto há luz natural; 14tapar o
sol com a peneira: tentar esconder algo que é evidente; 15moeda
do Peru; 16tempo
correspondente a um dia.
Por seu
turno, o Dicionário da Porto Editora refere os seguintes sentidos do adjetivo
uniforme “solar”: 1pertencente
ou referente ao Sol; 2(em sentido figurado) luminoso. E define, em
astronomia, como a constante solar a
intensidade da radiação solar incidente num plano perpendicular em direção à
propagação no limite da atmosfera terrestre, quando a distância da Terra ao Sol
tem o valor médio de 150x106 quilómetros e o seu valor médio é de
1353W/m2; e, como o cume solar,
a região da esfera celeste para a qual o sistema solar se está a mover como um
todo e que existe na constelação de Hércules. Em física, define o espectro
solar como o espectro contínuo, brilhante, com numerosas riscas negras (riscas
de Fraunhöfer, físico alemão, 1787-1826).
Por outro lado, menciona o nome solário (do latim solarium, clepsidra, quadrante solar,
galeria ou terraço voltado ao sol)
no sentido de estabelecimento onde as pessoas se podem bronzear
artificialmente; equipamento para esse efeito; estabelecimento destinado à cura
de doenças através da exposição ao sol; relógio de sol usado pelos antigos
romanos (gnómon); terraço ou divisão duma casa
em que se pode apanhar sol. Menciona ainda “solarímetro” (nome
masculino, do latim solare, solar + o
grego métron, medida), a significar instrumento que
serve para medir o fluxo de energia solar através duma superfície;
“solarização” (nome feminino, do inglês solarization),
a significar ato ou efeito de solarizar; e, por conseguinte, o verbo “solarizar”,
no sentido de reduzir a transparência (de um vidro) por efeito da luz solar ou de
radiações ultravioletas (do inglês solarize).
Também
se refere a “solar” no sentido, acima referido, de moradia nobre, importante ou
de grandes dimensões, geralmente de arquitetura requintada, como trata do
adjetivo “solarengo”, no sentido acima referenciado. E menciona o verbo “solar”
(vd
significados de solo)
no sentido de deitar solas, bem como o nome feminino “solaria” no sentido de
quantidade de cabedal para calçado ou conjunto de solas para calçado – derivado
de sola (peça
geralmente de couro ou borracha, que forma a parte inferior, mais dura e
resistente, do calçado; couro preparado par afazer calçado; planta do pé; e,
como regionalismo, bucho do boi),
do latim vulgar “sola” por “solea” sandália (de solum, i).
E
poderia mencionar “solar” no sentido de um solista
cantar a solo, do latim solus, sola, solum – só, um só, sozinho –
por via italiana. Mas o tempo não lhe deu para tudo.
***
Falta
uma referência, ainda que sucinta, às palavras “ensolarado” e “soalheiro”.
“Ensolarado”
é um adjetivo biforme derivado de “solar” (de sol) por parassíntese, derivação
simultaneamente por prefixação e sufixação. E significa obviamente: soalheiro,
que está ao sol, que apanha muito sol.
Por seu
turno, “soalheiro” (de soalhar + eiro), é um adjetivo biforme que significa
exposto ao sol, quente; e um nome masculino que significa lugar onde dá o sol;
e, num sentido popular, reunião de pessoas ociosas, geralmente sentadas ao sol,
para falarem da vida alheia; má-língua. E contrapõe-se ao nome feminino “soalheira”
(hora
de maior calor; ardor do sol, calor; exposição ao sol). Também se usa, no sentido de “soalheiro”
e em termos populares, o nome masculino “soalhal”.
Ora,
qual será a proveniência latina de soalheira, soalheiro e soalho? Se nos ativermos
a solum, i (solo,
chão ou algo que fica em contacto com o chão ou que faz de chão), teremos que pensar no
diminutivo latino de “solum, i”, o “solaculum, i”, que evoluiu foneticamente
para soalho por apócope do m (solaculu), síncope do u (solaclu), síncope do l (soaclu) e palatalização de cl (soalhu/o). Estaríamos a aplicar a realidades
vocabulares conexas com sol vocábulos
conexos com solo – por via da contaminação,
a que se aludiu acima. Neste sentido, “soalhar” (verbo transitivo direto) – no sentido de pôr soalho em
ou sobradar seria próximo de “soalhar” no sentido figurado de divulgar, expor à
luz do sol. Porém, não seria conexo com “soalhar” no sentido de fazer retinir
as soalhas de pandeiro. “Soalha” é a designação que se dá a cada rodela
metálica do pandeiro ou a cada peça móvel da balestilha. E provém do verbo
latino “sonare” (sono,
as are, ui, itum ou avi,
atum), que
significa soar, produzir som, fazer barulho, tocar, cantar, retumbar. Proviria da
forma neutra do plural “sonacula” (do adjetivo diminutivo sonaculus,
a, um – de sonax, acis – que produz som),
cuja evolução fonética para “soalha” é similar da de “solaculum”: síncope do u (sonacla), síncope do n (soacla) e palatalização de cl (soalha)
Mas há
outra hipótese que é soalho, soalheira e soalheiro provirem de “solaculum, i”,
diminutivo popular de “sol, is” e com evolução fonética igual à do homónimo.
Quantas vezes não dizem ainda hoje que está um solzinho de queimar ou um
solzinho bem tímido!
***
Seja como
for, a etimologia muitas vezes constrói-se no campo das hipóteses, até porque, regra
geral, a maior parte dos vocábulos que provieram do latim, provieram da
variante popular (sobretudo até aos séculos XVI e XVII –
em que se operou um enriquecimento da língua com base em muitas palavras do latim
erudito), que em
parte se esconde na nebulosidade do tempo. Por isso, as certezas nestas coisas
são muito poucas! Faz-se o que se pode.
2018.08.23 – Louro
de Carvalho
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