Já se sabia que a vaca nos dá a carne e o leite,
para alimentação, e a urina e as fezes para, em contacto com as ervas, palhas,
arbustos e folhas de árvore, fertilizarem as terras. Além disso, os antigos
segadores de feno utilizavam o chifre para manter humedecida a pedra adequada
para afiar a ceifadora (gadanha nalgumas regiões). Era, porém, inimaginável
pensar que a urina e as fezes do bovídeo pudessem era utilizadas para alguma
indumentária, sobretudo se devidamente bafejada pelo preço.
***
Entretanto, Joana Nabais Ferreira, em artigo hoje, dia 3, publicado no ECO, diz-nos que Jalila Essaïdi, uma holandesa, criou
uma espécie de “estrume de alta costura”, ou seja, trouxe o estrume à discussão e projeta
aplicá-lo na indústria da moda.
Isto quer dizer que está cada
vez mais presente o
reaproveitamento de materiais que, à partida, seriam desperdício.
Este propósito vem alinhado com a existência cada vez mais recorrente de startups a lançar o negócio num quadro
ecológico e sustentável. Isto passa pela revolução alimentar (fazer comida
com grilos ou pratos comestíveis através de desperdício alimentar) e pela transformação da indústria da
moda (converter os resíduos alimentares numa fibra natural a tecer em roupas ou,
como neste caso, através das fezes das vacas). De facto, Jalila Essaïdi, especialista em artes biológicas, em diálogo com alguns agricultores, quer transformar os dejetos
das vacas em materiais úteis para o fabrico de tecidos e, sobretudo, “transformar
o estrume na futura escolha dos fabricantes na hora de fazer os tecidos para
peças de alta costura” – num momento em que os países se preocupam cada vez
mais com as questões ambientais e Governos e empresas optam pela eliminação de
hábitos não amigos do ambiente, sobressaindo o uso de plásticos e descartáveis
ou hidrocarbonetos. Assim, o estrume ressalta como novo
material aplicável na velha prática da tecelagem.
Esta nova tecnologia é um processo “químico e mecânico” como explicou
Essaïdi ao The Guardian (acesso pago) em que se combinam, para o estrume, as fezes e a
urina da vaca (80% desta é água). Disse Essaïdi:
“Separamos a fração húmida da seca. A fração
húmida é fermentada e extraímos os solventes para transformar a celulose, que
não é nada mais do que a erva e o milho que as vacas comem.”.
Este processo, segundo a mentora, tem duas vantagens sobre o método
da indústria têxtil tradicional: não precisa de alta pressão, visto que
o estômago da vaca é o primeiro passo para tornar a fibra mais macia; e é “mais
eficiente”. Além disso, Essaïdi, porfiando que a reciclagem das fezes das vacas
está muito associada a um futuro sustentável, assegurou:
“Nós vemos o estrume como um material
residual, algo repugnante e fedorento. No entanto, o óleo [usado para fazer a
fibra] não é limpo nem bonito no começo. É preciso mostrar às pessoas a beleza
escondida se transformarmos esta celulose.”.
Por sua vez, Kim Roetert, porta-voz da ZLTO, a associação holandesa de
agricultores, partilha desta intenção, encarando “o estrume como um problema real resultante da criação de animais”,
mas crê também que “serve para muito mais do que apenas tornar o solo fértil”,
pois, como disse, “vê-lo
apenas como um resíduo mostra uma visão limitada”.
Ora, em
conformidade com dados do The Guardian, estima-se que, na Nova
Zelândia, 60% dos cursos de água não sejam seguros devido ao escoamento dos
resíduos derivados da criação de vacas, cheios de nitratos, fosfatos e
bactérias que promovem as algas. E, para reduzir a poluição da água, a UE impôs
limites à quantidade de estrume utilizada como fertilizante. Não obstante, a
Holanda, por exemplo, mostra regularmente relatos da violação desses
limites. Assim, a agência ambiental do Governo holandês calcula que entre
30% a 40% da quantidade anual de estrume no país esteja, para evitar
multas por superprodução, no mercado negro de lixo ilegal,
comercializado secretamente ou espalhado discretamente pela terra à noite.
Nestes termos, enquanto se diversifica a produção
da indumentária, melhora-se a política ambiental e reduz-se a pegada ecológica.
Mas isto implica um esforço de adaptação em que a transparência entendida em
absoluto pode não ser, para já, a melhor conselheira.
Com efeito, a ideia de Essaïdi
é reconhecida entre os profissionais: a Chivas
Venture atribuiu um prémio de 200 mil dólares e a H&M Foundation o prémio Global
Change. A loja de roupa internacional, criadora da H&M Foundation, acolhe a dinâmica de adaptação a novos materiais, originais e
incomuns. E Malin Björne, gerente de comunicações da fundação, advertiu:
“Fashionista ou não, todos nós vamos ter de
nos acostumar a materiais às vezes não convencionais. Já não podemos confiar no
algodão, por exemplo.”.
No entanto, alguns fabricantes confessaram à especialista em artes
biológicas estarem a considerar o processo, mas não tencionam declará-lo
explicitamente nas etiquetas da roupa.
***
Mas há mais formas inovadoras de redução da pegada ecológica. Há uma startup portuguesa, em Santarém, a Solitud que quer pôr-nos a comer tudo, inclusive o prato – o que
implica substituir as loiças de
plástico e as de papel por loiças biodegradáveis e comestíveis,
incentivando-nos a mudar hábitos, nomeadamente a ter consciência da pegada ecológica e do uso
excessivo de plásticos e a minorar a poluição dos oceanos.
A startup quer captar três milhões de euros
de investimento para começar a produzir os pratos em Portugal e introduzir-lhes
inovação tecnológica.
A ideia de produzir pratos a partir de farelo de trigo é polaca e foi
trazida para Portugal por Pedro Cadete e Luís Simões, que começaram a
comercializá-los mesmo antes de constituírem a empresa. E comer
pratos ou vestir cascas de banana são modos de reinventar a alimentação e
a indumentária. Os
meios são diferentes: desde loiça biodegradável e comestível, passando por
fibras têxteis feitas com restos alimentares, até à farinha de grilo.
Os dois colegas de curso de marketing
decidiram abandonar uma carreira de 16 anos a vender ideias inovadoras para se
aplicarem à produção e comercialização das suas, introduzindo-lhes inovação
tecnológica.
Pedro Cadete, um dos responsáveis
da Solitud, explicou ao ECO:
“O nosso prato é 100% farelo de trigo. É
composto pela parte do trigo que só se aproveitaria para a ração animal. Assim,
a pessoa pode optar por comer o prato ou, se preferir, dá-lo ao seu cão, por
exemplo.[…] Outra hipótese é colocar a loiça num compostor, juntamente com os
restos de comida.”.
Os pratos de
farelo de trigo (subproduto do processamento
de grãos de trigo)
são fabricados com vista ao desperdício mínimo e têm pegada ecológica praticamente
negativa, pois utiliza-se muito menos água para produzir esta loiça “do que a
indústria do plástico e mesmo do bioplástico”. Ademais, por ser biodegradável
ou compostável, não tem
custos associados à lavagem (nem de água nem
de eletricidade),
nem à produção de resíduos. Por ser usado uma única vez, “continua a ser um
produto descartável, mas consciente”.
Os pratos podem ser depositados num compostor em conjunto com os restos de
comida, ao invés, por exemplo, dos de papel, que “não podem ser reciclados depois
de sujos”.
E Pedro Cadete referiu ainda:
“Em Portugal também temos farelo de trigo,
que é utilizado como ração ou adubo, sem qualquer outro aproveitamento, mas
existem outros recursos, como a casca de arroz, em que existe produção
excessiva, que são desperdiçados e podemos dar-lhes outro aproveitamento”.
A startup quer “adaptar a Portugal tecnologias desenvolvidas no
estrangeiro” e está a investir 50 mil euros no
desenvolvimento de palhetas de mexer o café, produzidas com base em fibras
vegetais, que deverão fazer chegar ao mercado no próximo outono.
Na sua página oficial, a ONU lembra que 80% da poluição dos oceanos é proveniente
das pessoas e que 8 milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos em cada
ano, prejudicando a vida selvagem, a pesca e o turismo. Os seus números estimam
também que a poluição por plásticos custa a vida a um milhão de aves marinhas e
a 100 mil mamíferos em cada ano. E é também, em cada ano, que o plástico causa
oito mil milhões de dólares (6,8 mil milhões de euros) de danos nos ecossistemas marinhos.
***
Também já há empresas portuguesas a criar larvas de insetos que
transformam em farinhas para incorporar em bolacha, pão, paté, barra proteica,
enriquecendo em proteína animal alimentos que apenas aguardam autorização
europeia para entrarem no mercado da alimentação humana.
José
Gonçalves, fundador da Nutrix, empresa de Leiria produtora de framboesas
biológicas e com a produção de larvas de grilo para alimentação humana em fase
experimental, disse à Lusa:
“Há
muitos anos que os humanos comem insetos. No mundo ocidental deixámos de comer
em certa altura da história e o que está em jogo neste momento é voltarmos a comer.”.
Recentemente,
a FAO (Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), tendo em conta os brutais impactos das fontes atualmente
utilizadas (sobretudo
carnes de vaca, porco e frango) veio alertar para a necessidade de se encontrarem alternativas
sustentáveis para a produção de proteína animal, o que significa um considerável
impulso a esta área. Neste sentido, frisou:
“Do
ponto de vista nutricional, os insetos são riquíssimos e, sendo,
simultaneamente, sustentáveis do ponto de vista ambiental, é ‘um dois em um’
que raramente se consegue com outros alimentos”.
Guilherme
Pereira, um dos fundadores da Portugal
Bugs, empresa de Matosinhos que cria larvas de besouro pretos (bicho da farinha ou tenébrio) para alimentação humana e animal,
encareceu as vantagens, afirmando:
“Há
insetos que conseguem ter a quantidade máxima de aminoácidos essenciais de que
precisamos e não conseguimos sintetizar. O ser humano precisa de proteína para
conseguir sobreviver. Uns vão buscar à carne e outros aos vegetais, mas essas
fontes proteicas são insustentáveis se pensarmos nos recursos hídricos que
gastamos, no espaço que precisamos, nos gases com efeito de estufa que se
libertam.”.
Por
seu turno, Daniel Murta, um dos fundadores da EntoGreen, empresa de Santarém que desenvolve um projeto com
investigadores da EZN (Estação
Zootécnica Nacional),
polo de Santarém do INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária), que envolve um entreposto agrícola
e produtores de rações animais, referiu que a utilização de insetos permite
“fechar um ciclo” por constituir um “selo de sustentabilidade e de economia
circular”. E vincou:
“Estamos
a produzir animais que vão converter subprodutos alimentares. Estamos a
utilizar o que não é utilizado nas cadeias de distribuição, a focar 100% em
produtos vegetais que são gerados nas fábricas de produção alimentar e que
estão completamente em condições de ser utilizados na alimentação animal (...),
mas que acabam em aterro ou compostagem.”.
A EntoGreen aproveita tais
nutrientes, que de outro modo seriam desperdiçados, reintegra-os na cadeia de
valor, transforma-os em fertilizantes agrícolas lançando mão de insetos (neste caso, a larva da mosca soldado
negra), e produz “duas fontes nutricionais alternativas: a
proteína de inseto e o óleo de inseto, altamente valorizadas, comparadas com
farinha de peixe e que começam a ser bastante apetecíveis, por exemplo na indústria
de produção de aquacultura”. E Daniel Murta encarece o apoio do INIAV às
empresas na vertente de investigação e desenvolvimento e na possibilidade de
submissão de candidaturas a fundos comunitários.
Segundo
Murta, os resultados preliminares deste projeto EntoValor “foram bastante animadores”, por terem demonstrado a
possibilidade de “substituir totalmente a soja por farinha de insetos e produzir
de forma eficiente os animais”, bem como por terem mostrado a utilidade, no
solo, dos fertilizantes gerados, na produção de milho, batata ou tomate,
estando já a ser testados laboratorialmente em alfaces. A expectativa é que, neste
ano e no próximo, se possa construir, segundo adiantou, “uma unidade de escala
total e entrar no mercado”.
Enquanto
decorrem os processos de aprovação para alimentação humana, a Portugal Bugs está já a produzir as
larvas e o produto final (incluindo
barras proteicas, recentemente premiadas, e pães, massas, bases para pizas), para, quando puder entrar no
mercado, o fazer sem dependência de terceiros, sendo “mais competitivos” e
garantindo a forma como os insetos são produzidos.
Também
a Nutrix está “em fase experimental”,
a “arrancar com a unidade piloto de produção de insetos” que vai incorporar,
tal como a Portugal Bugs, em forma de farinha, em alimentos já conhecidos,
como, por exemplo, para enriquecer uma bolacha, uma barra proteica, um pão, um
paté”, visto que acredita que “o consumo de insetos no mundo ocidental vai
entrar por essa via” e não pelo consumo do animal inteiro, como sucede noutros
pontos do mundo.
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Os
nossos antepassados sabiam muito bem aproveitar as fezes e dejetos dos animais
para, em combinação com as palhas, folhas, ramas, ervas e arbustos, produzirem
adubos orgânicos – que eles, não conhecendo o termo “compostagem”, designavam
por “curtimento” (hoje
“curte-se” de outra maneira) – o estrume ou esterco, que fertilizava os campos. O predomínio dos
adubos químicos veio eclipsar quase totalmente os adubos orgânicos. É quase milagre
fazer agricultura genuinamente biológica. E vieram técnicos que pretenderam
ensinar até aos mais velhos as velhas técnicas em miniatura, a que dão a
designação de compostagem, que se faz
em compositores.
Porém,
ninguém imaginaria que daqui viesse a resultar indumentária da moda. Estejamos,
pois, atentos à origem dos/as novos/as modelos!
E não critiquemos
tanto indianos e chineses por comerem não sei o quê, pois, segundo parece,
vamos lá por vias mais sofisticadas.
Em todo
o caso, tudo o que venha reduzir a pegada ecológica, prevenir o uso excessivo
de plásticos e combater a poluição de rios, lagos, solos, minas e oceanos, é
bem-vindo, mesmo que tenhamos de comer larvas, insetos, papéis e plásticos!
2018.08.03 –
Louro de Carvalho
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