sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Em prol da redução da pegada ecológica


Já se sabia que a vaca nos dá a carne e o leite, para alimentação, e a urina e as fezes para, em contacto com as ervas, palhas, arbustos e folhas de árvore, fertilizarem as terras. Além disso, os antigos segadores de feno utilizavam o chifre para manter humedecida a pedra adequada para afiar a ceifadora (gadanha nalgumas regiões). Era, porém, inimaginável pensar que a urina e as fezes do bovídeo pudessem era utilizadas para alguma indumentária, sobretudo se devidamente bafejada pelo preço. 
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Entretanto, Joana Nabais Ferreira, em artigo hoje, dia 3, publicado no ECO, diz-nos que Jalila Essaïdi, uma holandesa, criou uma espécie de “estrume de alta costura”, ou seja, trouxe o estrume à discussão e projeta aplicá-lo na indústria da moda. Isto quer dizer que está cada vez mais presente o reaproveitamento de materiais que, à partida, seriam desperdício.
Este propósito vem alinhado com a existência cada vez mais recorrente de startups a lançar o negócio num quadro ecológico e sustentável. Isto passa pela revolução alimentar (fazer comida com grilos ou pratos comestíveis através de desperdício alimentar) e pela transformação da indústria da moda (converter os resíduos alimentares numa fibra natural a tecer em roupas ou, como neste caso, através das fezes das vacas). De facto, Jalila Essaïdi, especialista em artes biológicas, em diálogo com alguns agricultores, quer transformar os dejetos das vacas em materiais úteis para o fabrico de tecidos e, sobretudo, “transformar o estrume na futura escolha dos fabricantes na hora de fazer os tecidos para peças de alta costura” – num momento em que os países se preocupam cada vez mais com as questões ambientais e Governos e empresas optam pela eliminação de hábitos não amigos do ambiente, sobressaindo o uso de plásticos e descartáveis ou hidrocarbonetos. Assim,  o estrume ressalta como novo material aplicável na velha prática da tecelagem.
Esta nova tecnologia é um processo “químico e mecânico” como explicou Essaïdi ao The Guardian (acesso pago) em que se combinam, para o estrume, as fezes e a urina da vaca (80% desta é água). Disse Essaïdi:
Separamos a fração húmida da seca. A fração húmida é fermentada e extraímos os solventes para transformar a celulose, que não é nada mais do que a erva e o milho que as vacas comem.”.
Este processo, segundo a mentora, tem duas vantagens sobre o método da indústria têxtil tradicional: não precisa de alta pressão, visto que o estômago da vaca é o primeiro passo para tornar a fibra mais macia; e é “mais eficiente”. Além disso, Essaïdi, porfiando que a reciclagem das fezes das vacas está muito associada a um futuro sustentável, assegurou:
Nós vemos o estrume como um material residual, algo repugnante e fedorento. No entanto, o óleo [usado para fazer a fibra] não é limpo nem bonito no começo. É preciso mostrar às pessoas a beleza escondida se transformarmos esta celulose.”.
Por sua vez, Kim Roetert, porta-voz da ZLTO, a associação holandesa de agricultores, partilha desta intenção, encarando “o estrume como um problema real resultante da criação de animais”, mas crê também que “serve para muito mais do que apenas tornar o solo fértil”, pois, como disse, vê-lo apenas como um resíduo mostra uma visão limitada.
Ora, em conformidade com dados do The Guardian, estima-se que, na Nova Zelândia, 60% dos cursos de água não sejam seguros devido ao escoamento dos resíduos derivados da criação de vacas, cheios de nitratos, fosfatos e bactérias que promovem as algas. E, para reduzir a poluição da água, a UE impôs limites à quantidade de estrume utilizada como fertilizante. Não obstante, a Holanda, por exemplo, mostra regularmente relatos da violação desses limites. Assim, a agência ambiental do Governo holandês calcula que entre 30% a 40% da quantidade anual de estrume no país esteja, para evitar multas por superprodução, no mercado negro de lixo ilegal, comercializado secretamente ou espalhado discretamente pela terra à noite.
Nestes termos, enquanto se diversifica a produção da indumentária, melhora-se a política ambiental e reduz-se a pegada ecológica. Mas isto implica um esforço de adaptação em que a transparência entendida em absoluto pode não ser, para já, a melhor conselheira.
Com efeito, a ideia de Essaïdi é reconhecida entre os profissionais: a Chivas Venture atribuiu um prémio de 200 mil dólares e a H&M Foundation o prémio Global Change.  A loja de roupa internacional, criadora da H&M Foundationacolhe a dinâmica de adaptação a novos materiais, originais e incomuns. E Malin Björne, gerente de comunicações da fundação, advertiu:
Fashionista ou não, todos nós vamos ter de nos acostumar a materiais às vezes não convencionais. Já não podemos confiar no algodão, por exemplo.”.
No entanto, alguns fabricantes confessaram à especialista em artes biológicas estarem a considerar o processo, mas não tencionam declará-lo explicitamente nas etiquetas da roupa.
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Mas há mais formas inovadoras de redução da pegada ecológica. Há uma startup portuguesa, em Santarém, a Solitud que quer pôr-nos a comer tudo, inclusive o prato – o que implica substituir as loiças de plástico e as de papel por loiças biodegradáveis e comestíveis, incentivando-nos a mudar hábitos, nomeadamente a ter consciência da pegada ecológica e do uso excessivo de plásticos e a minorar a poluição dos oceanos.
A startup quer captar três milhões de euros de investimento para começar a produzir os pratos em Portugal e introduzir-lhes inovação tecnológica.
A ideia de produzir pratos a partir de farelo de trigo é polaca e foi trazida para Portugal por Pedro Cadete e Luís Simões, que começaram a comercializá-los mesmo antes de constituírem a empresa. E comer pratos ou vestir cascas de banana são modos de reinventar a alimentação e a indumentária. Os meios são diferentes: desde loiça biodegradável e comestível, passando por fibras têxteis feitas com restos alimentares, até à farinha de grilo.
Os dois colegas de curso de marketing decidiram abandonar uma carreira de 16 anos a vender ideias inovadoras para se aplicarem à produção e comercialização das suas, introduzindo-lhes inovação tecnológica.
Pedro Cadete, um dos responsáveis da Solitud, explicou ao ECO:
O nosso prato é 100% farelo de trigo. É composto pela parte do trigo que só se aproveitaria para a ração animal. Assim, a pessoa pode optar por comer o prato ou, se preferir, dá-lo ao seu cão, por exemplo.[…] Outra hipótese é colocar a loiça num compostor, juntamente com os restos de comida.”.
Os pratos de farelo de trigo (subproduto do processamento de grãos de trigo) são fabricados com vista ao desperdício mínimo e têm pegada ecológica praticamente negativa, pois utiliza-se muito menos água para produzir esta loiça “do que a indústria do plástico e mesmo do bioplástico”. Ademais, por ser biodegradável ou compostável, não tem custos associados à lavagem (nem de água nem de eletricidade), nem à produção de resíduos. Por ser usado uma única vez, “continua a ser um produto descartável, mas consciente”.
Os pratos podem ser depositados num compostor em conjunto com os restos de comida, ao invés, por exemplo, dos de papel, que “não podem ser reciclados depois de sujos”.
E Pedro Cadete referiu ainda:
Em Portugal também temos farelo de trigo, que é utilizado como ração ou adubo, sem qualquer outro aproveitamento, mas existem outros recursos, como a casca de arroz, em que existe produção excessiva, que são desperdiçados e podemos dar-lhes outro aproveitamento”.
A startup quer “adaptar a Portugal tecnologias desenvolvidas no estrangeiro” e está a investir 50 mil euros no desenvolvimento de palhetas de mexer o café, produzidas com base em fibras vegetais, que deverão fazer chegar ao mercado no próximo outono.
Na sua página oficial, a ONU lembra que 80% da poluição dos oceanos é proveniente das pessoas e que 8 milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos em cada ano, prejudicando a vida selvagem, a pesca e o turismo. Os seus números estimam também que a poluição por plásticos custa a vida a um milhão de aves marinhas e a 100 mil mamíferos em cada ano. E é também, em cada ano, que o plástico causa oito mil milhões de dólares (6,8 mil milhões de euros) de danos nos ecossistemas marinhos.
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Também já há empresas portuguesas a criar larvas de insetos que transformam em farinhas para incorporar em bolacha, pão, paté, barra proteica, enriquecendo em proteína animal alimentos que apenas aguardam autorização europeia para entrarem no mercado da alimentação humana.
José Gonçalves, fundador da Nutrix, empresa de Leiria produtora de framboesas biológicas e com a produção de larvas de grilo para alimentação humana em fase experimental, disse à Lusa:
Há muitos anos que os humanos comem insetos. No mundo ocidental deixámos de comer em certa altura da história e o que está em jogo neste momento é voltarmos a comer.”.
Recentemente, a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), tendo em conta os brutais impactos das fontes atualmente utilizadas (sobretudo carnes de vaca, porco e frango) veio alertar para a necessidade de se encontrarem alternativas sustentáveis para a produção de proteína animal, o que significa um considerável impulso a esta área. Neste sentido, frisou:
Do ponto de vista nutricional, os insetos são riquíssimos e, sendo, simultaneamente, sustentáveis do ponto de vista ambiental, é ‘um dois em um’ que raramente se consegue com outros alimentos”.
Guilherme Pereira, um dos fundadores da Portugal Bugs, empresa de Matosinhos que cria larvas de besouro pretos (bicho da farinha ou tenébrio) para alimentação humana e animal, encareceu as vantagens, afirmando:
Há insetos que conseguem ter a quantidade máxima de aminoácidos essenciais de que precisamos e não conseguimos sintetizar. O ser humano precisa de proteína para conseguir sobreviver. Uns vão buscar à carne e outros aos vegetais, mas essas fontes proteicas são insustentáveis se pensarmos nos recursos hídricos que gastamos, no espaço que precisamos, nos gases com efeito de estufa que se libertam.”.
Por seu turno, Daniel Murta, um dos fundadores da EntoGreen, empresa de Santarém que desenvolve um projeto com investigadores da EZN (Estação Zootécnica Nacional), polo de Santarém do INIAV (Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária), que envolve um entreposto agrícola e produtores de rações animais, referiu que a utilização de insetos permite “fechar um ciclo” por constituir um “selo de sustentabilidade e de economia circular”. E vincou:
Estamos a produzir animais que vão converter subprodutos alimentares. Estamos a utilizar o que não é utilizado nas cadeias de distribuição, a focar 100% em produtos vegetais que são gerados nas fábricas de produção alimentar e que estão completamente em condições de ser utilizados na alimentação animal (...), mas que acabam em aterro ou compostagem.”.
A EntoGreen aproveita tais nutrientes, que de outro modo seriam desperdiçados, reintegra-os na cadeia de valor, transforma-os em fertilizantes agrícolas lançando mão de insetos (neste caso, a larva da mosca soldado negra), e produz “duas fontes nutricionais alternativas: a proteína de inseto e o óleo de inseto, altamente valorizadas, comparadas com farinha de peixe e que começam a ser bastante apetecíveis, por exemplo na indústria de produção de aquacultura”. E Daniel Murta encarece o apoio do INIAV às empresas na vertente de investigação e desenvolvimento e na possibilidade de submissão de candidaturas a fundos comunitários.
Segundo Murta, os resultados preliminares deste projeto EntoValor “foram bastante animadores”, por terem demonstrado a possibilidade de “substituir totalmente a soja por farinha de insetos e produzir de forma eficiente os animais”, bem como por terem mostrado a utilidade, no solo, dos fertilizantes gerados, na produção de milho, batata ou tomate, estando já a ser testados laboratorialmente em alfaces. A expectativa é que, neste ano e no próximo, se possa construir, segundo adiantou, “uma unidade de escala total e entrar no mercado”.
Enquanto decorrem os processos de aprovação para alimentação humana, a Portugal Bugs está já a produzir as larvas e o produto final (incluindo barras proteicas, recentemente premiadas, e pães, massas, bases para pizas), para, quando puder entrar no mercado, o fazer sem dependência de terceiros, sendo “mais competitivos” e garantindo a forma como os insetos são produzidos.
Também a Nutrix está “em fase experimental”, a “arrancar com a unidade piloto de produção de insetos” que vai incorporar, tal como a Portugal Bugs, em forma de farinha, em alimentos já conhecidos, como, por exemplo, para enriquecer uma bolacha, uma barra proteica, um pão, um paté”, visto que acredita que “o consumo de insetos no mundo ocidental vai entrar por essa via” e não pelo consumo do animal inteiro, como sucede noutros pontos do mundo.
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Os nossos antepassados sabiam muito bem aproveitar as fezes e dejetos dos animais para, em combinação com as palhas, folhas, ramas, ervas e arbustos, produzirem adubos orgânicos – que eles, não conhecendo o termo “compostagem”, designavam por “curtimento” (hoje “curte-se” de outra maneira) – o estrume ou esterco, que fertilizava os campos. O predomínio dos adubos químicos veio eclipsar quase totalmente os adubos orgânicos. É quase milagre fazer agricultura genuinamente biológica. E vieram técnicos que pretenderam ensinar até aos mais velhos as velhas técnicas em miniatura, a que dão a designação de compostagem, que se faz em compositores.
Porém, ninguém imaginaria que daqui viesse a resultar indumentária da moda. Estejamos, pois, atentos à origem dos/as novos/as modelos!
E não critiquemos tanto indianos e chineses por comerem não sei o quê, pois, segundo parece, vamos lá por vias mais sofisticadas.
Em todo o caso, tudo o que venha reduzir a pegada ecológica, prevenir o uso excessivo de plásticos e combater a poluição de rios, lagos, solos, minas e oceanos, é bem-vindo, mesmo que tenhamos de comer larvas, insetos, papéis e plásticos!  
2018.08.03 – Louro de Carvalho

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