As
razões do descontrolo deste incêndio que está a consternar o país parecem ter a
ver com problemas a montante e não com a logística do combate. É óbvio que sempre
os governos hão de ser objeto de críticas. Se não é a descoordenação no
terreno, como sucedeu em 2017, ou a falta/chegada atempada de meios, cortes de
estradas e evacuação de populações, agora é o facto de alegadamente o comando
nacional tardar em assumir a direção das operações in loco – crítica que surgiria se o comando nacional se antecipasse
dando a entender a inépcia dos comandos locais e regionais. E Emídio Vidigal, presidente
da Aspaflobal (associação dos produtores florestais do Barlavento
Algarvio) diz estar
há 7 meses à espera de aprovação de projeto estruturante para a ZIF de Perna
Negra, onde o incêndio teve origem – o que nada adiantaria para este ano.
A
prevenção é essencial e nunca se terá investido, como desta vez, na prevenção (sensibilização
das pessoas, autoproteção das populações, ações de sensibilização, repetidas
operações de limpeza)
e vigilância. Todavia, apesar de essencial, não é suficiente e apresenta
falhas, pois nem todos colaboram, os custos são elevados, não se chega a toda a
parte…Mas antes do combate, que tem de se fazer na hora, antes da hora e depois
da hora, não hesitando em mobilizar atempadamente todos os meios necessários,
ou antes da prevenção e vigilância, que deve ser assumida como tarefa de todos
e dispor dos meios e apoios necessários, está o ordenamento ou reordenamento do
território, nomeadamente o florestal e o envolvente aos núcleos populacionais.
E esta intervenção peca por tardia, já que as populações têm dificuldade a
distanciar-se das suas conceções paroquiais e o Estado não consegue fazer valer
a sua autoridade ou por não a ter ou por não sabe usar a pedagogia adequada
para a incutir. Na verdade, a mediocridade de quem legisla e de quem executa,
regulamenta e aplica as leis é crescentemente assustadora, chegando a minar
aquele reduto moral em que os cidadãos e empresas deviam confiar, o poder
judiciário.
***
Os especialistas
são unânimes a apontar o dedo ao eucalipto e à massa combustível acumulada.
A serra
de Monchique arde há 5 dias, o incêndio continua por extinguir e o
Primeiro-Ministro alertou para a possibilidade de ele continuar por bastante
mais tempo. Há centenas de pessoas retiradas das suas casas e dezenas feridos,
um deles com gravidade. Há mais de mil homens operacionais no terreno e pessoal
de apoio, dezenas de carros de combate e 17 meios aéreos.
Um ano
depois das gravíssimas ocorrências de 2017, é legítimo questionar as razões
para este incêndio de tamanha proporção. E os especialistas falam de falhas na
prevenção e dizem que é preciso maior investimento do Estado. O professor
Xavier Viegas denuncia ainda a falta de faixas de descontinuidade.
A serra
de Monchique arde desde o dia 3. O incêndio ameaçou o perímetro dos aglomerados
populacionais e induziu a retirada de centenas de pessoas das localidades junto
à serra. Já destruiu 16 500 hectares, mas poderá vir a afetar 20 mil, já que ainda
há 6 focos “complexos” não dominados.
Até ao
dia 7, a condução das operações estava na mão do comando distrital de Faro da
Autoridade Nacional da Proteção Civil, mas passou para o comando nacional.
A dimensão do incêndio não surpreende os
especialistas. Os
que foram ouvidos pelo Diário de Notícias
dizem que Monchique era uma zona de risco referenciada. O
engenheiro florestal João Branco, da Quercus, é taxativo sobre este
incêndio, assegurando que “é inevitável enquanto não existirem
medidas de ordenamento do território”, que contrarie a “praga” de eucaliptos que povoam aquele
território e outros em Portugal. E Paulo Pimenta Castro, engenheiro
silvicultor, presidente da AIF (Associação de Investimento
Florestal), prevê
que, se “este ano foi em Monchique, nos próximos será em vários outros locais”,
admitindo que “não há possibilidade de mudar a curto prazo a epidemia que
alastra pelo território”. Também é um crítico da expansão de arvoredo,
sobretudo de eucaliptos, sem gestão do Estado.
Por seu
turno, o professor Xavier Viegas, coordenador dos estudos
sobre os incêndios de 2017, não está surpreendido pela dimensão e efeitos do
incêndio, pois, como referiu, iniciou-se “num período muito difícil das
condições climatéricas”, em “território muito complicado de continuidade de
vegetação e de serra que tem condições difíceis e perigosas de combate”.
Depois, “os aglomerados populacionais na zona criam uma complicação acrescida”.
E assegura:
“Quando não é
controlado logo nas primeiras horas, facilmente se torna um grande incêndio”.
Xavier
Viegas sublinha que, “nestes grandes incêndios, não é por haver mais meios ou
recursos que se conseguem extinguir mais rápido”, havendo muitas vezes que esperar
pela ajuda das condições meteorológicas. Em todo o caso, o professor
manifesta-se, no entanto, “muito satisfeito com o cuidado que se está a ter na
segurança dos operacionais e da população civil”. Mas,
apesar de insistir em que esta área está há muito referenciada como de risco e de
denunciar a falta de faixas de descontinuidade (caminhos entre o
arvoredo) na serra,
previstas num plano elaborado em 2006 pelo ICNF, não se confina a falar de
Monchique. Recorda que a sua equipa estudou o grande incêndio de Tavira em
2012, tendo concluído que, dos 120 quilómetros que deviam existir destas faixas,
apenas existiam 30 quilómetros – o que impediu a colocação de meios humanos
logo no primeiro dia em determinadas zonas, os quais poderiam ter mais
facilmente debelado aquele incêndio. E deixa uma crítica factual:
“Em 2012, passou para a competência das autarquias a
gestão dessas faixas e o ICNF desligou-se do processo, mas tem de haver
supervisão. É por isso que digo que o ICNF está completamente fora de jogo e
não está focado nos incêndios. É um pilar do sistema de proteção civil e não
atua.”.
João
Branco, como se viu, atribui este incêndio ao excesso de eucalipto, que “tem
projeções brutais” a provocar fogos a dois quilómetros de distância. E afirma:
“Estamos numa situação em que o eucaliptal se expandiu de uma maneira completamente
descontrolada, até mesmo por causa dos incêndios. As sementes começam a
germinar e dominam a paisagem.”.
De modo
similar pensa Paulo Pimenta Castro ao considerar a limpeza das matas apenas
como uma “medida mediática”, sobretudo atendendo à época em que foi feita,
finais de março e junho, pois “já cresceu tudo outra vez”. E conclui:
“Não podemos ter uma área de eucaliptal sem gestão, o
que é muito diferente da monocultura ordenada”.
Sobre as medidas necessárias, Xavier Viegas, assentando em que
“não podemos estar descansados”, adverte que “infelizmente no nosso país há
condições para arder em todo o lado, independentemente das zonas de risco”. E,
embora admita que foram tomadas algumas medidas nas aldeias e junto das casas,
o que “ajuda a explicar que agora os danos pessoais sejam muito menores”,
garante que “falta fazer muito do resto”.
Da sua
parte, o engenheiro florestal da Quercus, João Quadros, reconhece a coragem do Governo
ao fazer aprovar a legislação que impede a expansão da área de eucalipto.
Porém, frisa que já temos um milhão de hectares – 10% da área total do país – e
a capacidade máxima está concentrada no norte, centro/litoral, Algarve e
Alentejo Litoral. Por isso, defende uma política ativa de “diminuição da área
de eucalipto” e de substituição por outras espécies como carvalhos, cerejeiras,
castanheiros e sobreiros, no pressuposto de estas serem “muito importantes para
criar as descontinuidades”. E exemplifica com os carvalhos, cujas folhas contêm
muita água, que impede, em caso de fogo, a sua progressão. Por outro lado,
defende a aposta na silvicultura preventiva, mas avisa:
“As contribuições financeiras neste setor
são insuficientes. Enquanto o orçamento para a floresta não
for cinco vezes superior, não creio que vá ser possível resolver o problema.”.
E Paulo
Pimenta Castro sustenta que o Estado tem de ter mais responsabilidade na gestão
do território. A este respeito, defende:
“É preciso que as pessoas saibam como garantir rendimento e um risco
mais baixo. Em Pedrógão Grande não há acompanhamento técnico às pessoas para
saberem o que devem plantar.”.
***
A propósito do incêndio da serra de Monchique, Leonídio
Paulo Ferreira entrevistou João Pedro
Bernardes, arqueólogo e professor da Universidade do Algarve, que também aponta
o dedo à “introdução de novas espécies, nomeadamente do eucalipto, nas duas
últimas décadas, tendo contribuído “para alterar radicalmente aquele cenário
tantas vezes descrito como idílico”.
Salientando
que as “madeiras
de castanho e de carvalho de Monchique eram muito valorizadas na construção
naval dos Descobrimentos”, fala de como “a serra de Monchique era
preciosa para os romanos pelas termas e sagrada para os árabes”.
Quanto à importante ocupação humana histórica e pré-histórica da serra de
Monchique, diz:
“Desde há cerca de 6000 anos, no período do Neolítico, que se regista
uma importante ocupação humana na serra de Monchique, atraída pela abundância
da água e diversidade de recursos vegetais e animais. Conhecem-se dezenas de túmulos
coletivos, alguns megalíticos que expressam um certo regionalismo, estudados
sobretudo nos anos 40 do século passado. Os túmulos pré-históricos são também
conhecidos nas épocas dos metais, na Idade do cobre e, mais tarde, com as
cistas da Idade do Bronze, que tornam a Pré-história da serra de Monchique uma
das mais interessantes do sul do país e que revelam um grande dinamismo
demográfico antes da chegada dos Romanos.”.
Sobre os vários vestígios da era romana, incluindo uma estatueta da deusa
fortuna, explana:
“Os romanos ocuparam vários pontos da serra de Monchique, dando início à
exploração das suas águas termais, que sacralizaram, nas Caldas de Monchique.
Na verdade, são eles, os Romanos, os fundadores de uma das imagens de marca
desta serra ao construírem aí as termas que vão sendo sucessivamente reocupadas
e renovadas ao longo dos últimos dois mil anos. Eram, certamente, termas
frequentadas e bem conhecidas na região, tal como hoje, e cuja excecionalidade
do seu manancial justifica a sua sacralização e a presença dessa estatueta da
deusa fortuna. Mas, note que a madeira e a exploração de outros recursos da
serra eram também, já nessa época, era motivo de grande atração.”.
Admitindo a conquista árabe conferiu um simbolismo mais sagrado à serra,
sobretudo ao alto da Foia, discorre:
“A serra de Monchique (…) é algo de excecional (…) no contexto do
Algarve antigo ou islâmico, pelo que é natural que daí decorra alguma conotação
com o sagrado. É, (ou era!...), um verdadeiro oásis, diferente de tudo o resto
da região, o que levou alguns a chamarem-na de Sintra do Algarve. Era também
uma referência para mareantes e navegadores, mas também um ótimo local de
refúgio, pela sua quase intransponibilidade, para movimentos dissidentes ou de
guerrilha. Por exemplo, em meados do século IX estabeleceu-se aqui, no Munt-Saquir,
ou Monte sagrado, como era conhecida então esta serra, um grupo berbere que
combatia o poder estabelecido, da mesma forma que o ‘Remexido’, chefe
guerrilheiro que combateu contra os liberais no século XIX, e pôs o Algarve a
ferro e fogo, tinha aqui o seu quartel-general.”.
Depois, refere a recomendação das termas de Monchique a Dom João II, em 1495, por parte dos médicos, para o soberano se aliviar das maleitas e
acentua o facto de esta estância termal ser bem conhecida na corte de Lisboa,
bem como as propriedades das suas águas, muito famosas.
Pelas termas
e pela grande valorização das suas madeiras de castanho e de carvalho para a construção
naval da expansão marítima, Monchique concitou a atenção de bispos e de outros
reis, como Dom Sebastião que pretendeu conceder-lhe o título de vila, por volta
de 1573, a que Silves se opôs energicamente. Porém, o Marquês de Pombal mandou
construir a grande estrada de ligação de Monchique ao porto de Vila Nova de
Portimão, para escoar as valiosas madeiras da serra, vindo a ser separada da
cidade de Silves e elevada a vila a 13 de janeiro de 1773.
O entrevistado afasta a ideia da recorrência de incêndios no passado e
faz o enfoque num dos “grandes problemas que justificam em grande parte os
incêndios dramáticos a que assistimos” – “a alteração radical do coberto
vegetal”. A este respeito insinua uma viagem pelo passado com base na leitura das
muitas descrições da serra de Monchique dos últimos séculos, em que o realce
vai para “a abundância das águas correntes, fontes e levadas, da vegetação de
carvalhos e até de castanheiros que tornavam a serra de Monchique a sub-região
mais fresca e aprazível do Algarve”. Mas lamenta que, em contraste, “a
introdução de novas espécies, nomeadamente do eucalipto, nas duas últimas
décadas”, tenha contribuído para “alterar radicalmente aquele cenário tantas
vezes descrito como idílico”.
No atinente à propalada resistência de Monchique à desertificação do
interior, pela via do incremento do turismo e de outras atividades económicas,
apresenta “o aspeto
mais dramático” decorrente
da “tragédia dos incêndios”, que
ficará a marcar “a região por muitos anos”. Acentua que “há alguns anos que se
assistia na serra de Monchique à implantação duma pequena economia rural assente
nos recursos da terra e nas riquezas naturais e paisagísticas que ainda se
preservavam, onde o turismo rural se combinava com percursos da natureza, com o
património cultural, com a gastronomia e com pequenas produções certificadas
como a do medronho, do mel ou dos enchidos”. Ora, segundo o investigador, isto
vinha constituindo a afirmação deste rincão territorial como “importante
instrumento para manter a serra habitada e economicamente sustentável”,
atraindo “algumas comunidades de estrangeiros” encantados “pela calma e
paisagens naturais”. Porém, ficando tudo isto agora posto em causa, resta ver
como se “pode aproveitar esta oportunidade para restaurar a serra de Monchique
com as espécies autóctones, de forma a termos de volta a Sintra do Algarve ou a
‘Nova Cintra’ como lhe chamou o rei Dom Sebastião, no século XVI”.
Por fim, instado pelo entrevistador, o arqueólogo e professor sugere “um
livro a quem queira saber mais sobre a história desta parte do Algarve”. Referindo
que se tem investigado muito, nos últimos anos, “sobre o Território e a
História de Monchique, nomeadamente no âmbito do curso de mestrado em História
e Património da Universidade do Algarve”, surge-lhe na memória o “livro que
retrata as primeiras explorações arqueológicas na serra de Monchique do século
passado desvendando as ocupações humanas” numa altura em que a serra “ainda era
bem genuína” – Estudos Arqueológicos nas Caldas de Monchique, de José
Formosinho, Octávio da Veiga Ferreira e Abel Viana, editado no Porto, Imprensa
Portuguesa por iniciativa do Instituto de Alta Cultura em 1953.
***
Gostei de
verificar o esforço que se fez na valorização duma serra de ancestrais antecedentes,
que, apesar de vergastada pela fúria do fogo, potenciado pelo vento forte e
vário e pelo eventual fenómeno de convecção, faz germinar a esperança da
recuperação do potencial monchiquenho, graças à força da lucidez da vontade
coletiva – mais valente que a crítica ao poderes. Dos fracos não reza a História! – Lá diz o adágio.
2018.08.08 – Louro de Carvalho
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