quarta-feira, 8 de agosto de 2018

A serra de Monchique arde há 5 dias e poderá arder por mais tempo


As razões do descontrolo deste incêndio que está a consternar o país parecem ter a ver com problemas a montante e não com a logística do combate. É óbvio que sempre os governos hão de ser objeto de críticas. Se não é a descoordenação no terreno, como sucedeu em 2017, ou a falta/chegada atempada de meios, cortes de estradas e evacuação de populações, agora é o facto de alegadamente o comando nacional tardar em assumir a direção das operações in loco – crítica que surgiria se o comando nacional se antecipasse dando a entender a inépcia dos comandos locais e regionais. E Emídio Vidigal, presidente da Aspaflobal (associação dos produtores florestais do Barlavento Algarvio) diz estar há 7 meses à espera de aprovação de projeto estruturante para a ZIF de Perna Negra, onde o incêndio teve origem – o que nada adiantaria para este ano.
A prevenção é essencial e nunca se terá investido, como desta vez, na prevenção (sensibilização das pessoas, autoproteção das populações, ações de sensibilização, repetidas operações de limpeza) e vigilância. Todavia, apesar de essencial, não é suficiente e apresenta falhas, pois nem todos colaboram, os custos são elevados, não se chega a toda a parte…Mas antes do combate, que tem de se fazer na hora, antes da hora e depois da hora, não hesitando em mobilizar atempadamente todos os meios necessários, ou antes da prevenção e vigilância, que deve ser assumida como tarefa de todos e dispor dos meios e apoios necessários, está o ordenamento ou reordenamento do território, nomeadamente o florestal e o envolvente aos núcleos populacionais. E esta intervenção peca por tardia, já que as populações têm dificuldade a distanciar-se das suas conceções paroquiais e o Estado não consegue fazer valer a sua autoridade ou por não a ter ou por não sabe usar a pedagogia adequada para a incutir. Na verdade, a mediocridade de quem legisla e de quem executa, regulamenta e aplica as leis é crescentemente assustadora, chegando a minar aquele reduto moral em que os cidadãos e empresas deviam confiar, o poder judiciário.     
***
Os especialistas são unânimes a apontar o dedo ao eucalipto e à massa combustível acumulada.
A serra de Monchique arde há 5 dias, o incêndio continua por extinguir e o Primeiro-Ministro alertou para a possibilidade de ele continuar por bastante mais tempo. Há centenas de pessoas retiradas das suas casas e dezenas feridos, um deles com gravidade. Há mais de mil homens operacionais no terreno e pessoal de apoio, dezenas de carros de combate e 17 meios aéreos.
Um ano depois das gravíssimas ocorrências de 2017, é legítimo questionar as razões para este incêndio de tamanha proporção. E os especialistas falam de falhas na prevenção e dizem que é preciso maior investimento do Estado. O professor Xavier Viegas denuncia ainda a falta de faixas de descontinuidade.
A serra de Monchique arde desde o dia 3. O incêndio ameaçou o perímetro dos aglomerados populacionais e induziu a retirada de centenas de pessoas das localidades junto à serra. Já destruiu 16 500 hectares, mas poderá vir a afetar 20 mil, já que ainda há 6 focos “complexos” não dominados.
Até ao dia 7, a condução das operações estava na mão do comando distrital de Faro da Autoridade Nacional da Proteção Civil, mas passou para o comando nacional.
A dimensão do incêndio não surpreende os especialistas. Os que foram ouvidos pelo Diário de Notícias dizem que Monchique era uma zona de risco referenciada. O engenheiro florestal João Branco, da Quercus, é taxativo sobre este incêndio, assegurando que “é inevitável enquanto não existirem medidas de ordenamento do território”, que contrarie a “praga” de eucaliptos que povoam aquele território e outros em Portugal. E Paulo Pimenta Castro, engenheiro silvicultor, presidente da AIF (Associação de Investimento Florestal), prevê que, se “este ano foi em Monchique, nos próximos será em vários outros locais”, admitindo que “não há possibilidade de mudar a curto prazo a epidemia que alastra pelo território”. Também é um crítico da expansão de arvoredo, sobretudo de eucaliptos, sem gestão do Estado.
Por seu turno, o professor Xavier Viegas, coordenador dos estudos sobre os incêndios de 2017, não está surpreendido pela dimensão e efeitos do incêndio, pois, como referiu, iniciou-se “num período muito difícil das condições climatéricas”, em “território muito complicado de continuidade de vegetação e de serra que tem condições difíceis e perigosas de combate”. Depois, “os aglomerados populacionais na zona criam uma complicação acrescida”. E assegura:
Quando não é controlado logo nas primeiras horas, facilmente se torna um grande incêndio”.
Xavier Viegas sublinha que, “nestes grandes incêndios, não é por haver mais meios ou recursos que se conseguem extinguir mais rápido”, havendo muitas vezes que esperar pela ajuda das condições meteorológicas. Em todo o caso, o professor manifesta-se, no entanto, “muito satisfeito com o cuidado que se está a ter na segurança dos operacionais e da população civil”. Mas, apesar de insistir em que esta área está há muito referenciada como de risco e de denunciar a falta de faixas de descontinuidade (caminhos entre o arvoredo) na serra, previstas num plano elaborado em 2006 pelo ICNF, não se confina a falar de Monchique. Recorda que a sua equipa estudou o grande incêndio de Tavira em 2012, tendo concluído que, dos 120 quilómetros que deviam existir destas faixas, apenas existiam 30 quilómetros – o que impediu a colocação de meios humanos logo no primeiro dia em determinadas zonas, os quais poderiam ter mais facilmente debelado aquele incêndio. E deixa uma crítica factual:
“Em 2012, passou para a competência das autarquias a gestão dessas faixas e o ICNF desligou-se do processo, mas tem de haver supervisão. É por isso que digo que o ICNF está completamente fora de jogo e não está focado nos incêndios. É um pilar do sistema de proteção civil e não atua.”.
João Branco, como se viu, atribui este incêndio ao excesso de eucalipto, que “tem projeções brutais” a provocar fogos a dois quilómetros de distância. E afirma:
Estamos numa situação em que o eucaliptal se expandiu de uma maneira completamente descontrolada, até mesmo por causa dos incêndios. As sementes começam a germinar e dominam a paisagem.”.
De modo similar pensa Paulo Pimenta Castro ao considerar a limpeza das matas apenas como uma “medida mediática”, sobretudo atendendo à época em que foi feita, finais de março e junho, pois “já cresceu tudo outra vez”. E conclui: 
“Não podemos ter uma área de eucaliptal sem gestão, o que é muito diferente da monocultura ordenada”.
Sobre as medidas necessárias, Xavier Viegas, assentando em que “não podemos estar descansados”, adverte que “infelizmente no nosso país há condições para arder em todo o lado, independentemente das zonas de risco”. E, embora admita que foram tomadas algumas medidas nas aldeias e junto das casas, o que “ajuda a explicar que agora os danos pessoais sejam muito menores”, garante que “falta fazer muito do resto”.
Da sua parte, o engenheiro florestal da Quercus, João Quadros, reconhece a coragem do Governo ao fazer aprovar a legislação que impede a expansão da área de eucalipto. Porém, frisa que já temos um milhão de hectares – 10% da área total do país – e a capacidade máxima está concentrada no norte, centro/litoral, Algarve e Alentejo Litoral. Por isso, defende uma política ativa de “diminuição da área de eucalipto” e de substituição por outras espécies como carvalhos, cerejeiras, castanheiros e sobreiros, no pressuposto de estas serem “muito importantes para criar as descontinuidades”. E exemplifica com os carvalhos, cujas folhas contêm muita água, que impede, em caso de fogo, a sua progressão. Por outro lado, defende a aposta na silvicultura preventiva, mas avisa:
As contribuições financeiras neste setor são insuficientes. Enquanto o orçamento para a floresta não for cinco vezes superior, não creio que vá ser possível resolver o problema.”.
E Paulo Pimenta Castro sustenta que o Estado tem de ter mais responsabilidade na gestão do território. A este respeito, defende:
É preciso que as pessoas saibam como garantir rendimento e um risco mais baixo. Em Pedrógão Grande não há acompanhamento técnico às pessoas para saberem o que devem plantar.”.
***
A propósito do incêndio da serra de Monchique, Leonídio Paulo Ferreira entrevistou João Pedro Bernardes, arqueólogo e professor da Universidade do Algarve, que também aponta o dedo à “introdução de novas espécies, nomeadamente do eucalipto, nas duas últimas décadas, tendo contribuído “para alterar radicalmente aquele cenário tantas vezes descrito como idílico”.
Salientando que as “madeiras de castanho e de carvalho de Monchique eram muito valorizadas na construção naval dos Descobrimentos”, fala de como “a serra de Monchique era preciosa para os romanos pelas termas e sagrada para os árabes”.
Quanto à importante ocupação humana histórica e pré-histórica da serra de Monchique, diz:
Desde há cerca de 6000 anos, no período do Neolítico, que se regista uma importante ocupação humana na serra de Monchique, atraída pela abundância da água e diversidade de recursos vegetais e animais. Conhecem-se dezenas de túmulos coletivos, alguns megalíticos que expressam um certo regionalismo, estudados sobretudo nos anos 40 do século passado. Os túmulos pré-históricos são também conhecidos nas épocas dos metais, na Idade do cobre e, mais tarde, com as cistas da Idade do Bronze, que tornam a Pré-história da serra de Monchique uma das mais interessantes do sul do país e que revelam um grande dinamismo demográfico antes da chegada dos Romanos.”.
Sobre os vários vestígios da era romana, incluindo uma estatueta da deusa fortuna, explana:
Os romanos ocuparam vários pontos da serra de Monchique, dando início à exploração das suas águas termais, que sacralizaram, nas Caldas de Monchique. Na verdade, são eles, os Romanos, os fundadores de uma das imagens de marca desta serra ao construírem aí as termas que vão sendo sucessivamente reocupadas e renovadas ao longo dos últimos dois mil anos. Eram, certamente, termas frequentadas e bem conhecidas na região, tal como hoje, e cuja excecionalidade do seu manancial justifica a sua sacralização e a presença dessa estatueta da deusa fortuna. Mas, note que a madeira e a exploração de outros recursos da serra eram também, já nessa época, era motivo de grande atração.”.
Admitindo a conquista árabe conferiu um simbolismo mais sagrado à serra, sobretudo ao alto da Foia, discorre:
A serra de Monchique (…) é algo de excecional (…) no contexto do Algarve antigo ou islâmico, pelo que é natural que daí decorra alguma conotação com o sagrado. É, (ou era!...), um verdadeiro oásis, diferente de tudo o resto da região, o que levou alguns a chamarem-na de Sintra do Algarve. Era também uma referência para mareantes e navegadores, mas também um ótimo local de refúgio, pela sua quase intransponibilidade, para movimentos dissidentes ou de guerrilha. Por exemplo, em meados do século IX estabeleceu-se aqui, no Munt-Saquir, ou Monte sagrado, como era conhecida então esta serra, um grupo berbere que combatia o poder estabelecido, da mesma forma que o ‘Remexido’, chefe guerrilheiro que combateu contra os liberais no século XIX, e pôs o Algarve a ferro e fogo, tinha aqui o seu quartel-general.”.
Depois, refere a recomendação das termas de Monchique a Dom João II, em 1495, por parte dos médicos, para o soberano se aliviar das maleitas e acentua o facto de esta estância termal ser bem conhecida na corte de Lisboa, bem como as propriedades das suas águas, muito famosas.
Pelas termas e pela grande valorização das suas madeiras de castanho e de carvalho para a construção naval da expansão marítima, Monchique concitou a atenção de bispos e de outros reis, como Dom Sebastião que pretendeu conceder-lhe o título de vila, por volta de 1573, a que Silves se opôs energicamente. Porém, o Marquês de Pombal mandou construir a grande estrada de ligação de Monchique ao porto de Vila Nova de Portimão, para escoar as valiosas madeiras da serra, vindo a ser separada da cidade de Silves e elevada a vila a 13 de janeiro de 1773.
O entrevistado afasta a ideia da recorrência de incêndios no passado e faz o enfoque num dos grandes problemas que justificam em grande parte os incêndios dramáticos a que assistimos” – “a alteração radical do coberto vegetal”. A este respeito insinua uma viagem pelo passado com base na leitura das muitas descrições da serra de Monchique dos últimos séculos, em que o realce vai para “a abundância das águas correntes, fontes e levadas, da vegetação de carvalhos e até de castanheiros que tornavam a serra de Monchique a sub-região mais fresca e aprazível do Algarve”. Mas lamenta que, em contraste, “a introdução de novas espécies, nomeadamente do eucalipto, nas duas últimas décadas”, tenha contribuído para “alterar radicalmente aquele cenário tantas vezes descrito como idílico”.
No atinente à propalada resistência de Monchique à desertificação do interior, pela via do incremento do turismo e de outras atividades económicas, apresenta “o aspeto mais dramático” decorrente da “tragédia dos incêndios”, que ficará a marcar “a região por muitos anos”. Acentua que “há alguns anos que se assistia na serra de Monchique à implantação duma pequena economia rural assente nos recursos da terra e nas riquezas naturais e paisagísticas que ainda se preservavam, onde o turismo rural se combinava com percursos da natureza, com o património cultural, com a gastronomia e com pequenas produções certificadas como a do medronho, do mel ou dos enchidos”. Ora, segundo o investigador, isto vinha constituindo a afirmação deste rincão territorial como “importante instrumento para manter a serra habitada e economicamente sustentável”, atraindo “algumas comunidades de estrangeiros” encantados “pela calma e paisagens naturais”. Porém, ficando tudo isto agora posto em causa, resta ver como se “pode aproveitar esta oportunidade para restaurar a serra de Monchique com as espécies autóctones, de forma a termos de volta a Sintra do Algarve ou a ‘Nova Cintra’ como lhe chamou o rei Dom Sebastião, no século XVI”.
Por fim, instado pelo entrevistador, o arqueólogo e professor sugere “um livro a quem queira saber mais sobre a história desta parte do Algarve”. Referindo que se tem investigado muito, nos últimos anos, “sobre o Território e a História de Monchique, nomeadamente no âmbito do curso de mestrado em História e Património da Universidade do Algarve”, surge-lhe na memória o “livro que retrata as primeiras explorações arqueológicas na serra de Monchique do século passado desvendando as ocupações humanas” numa altura em que a serra “ainda era bem genuína” – Estudos Arqueológicos nas Caldas de Monchique, de José Formosinho, Octávio da Veiga Ferreira e Abel Viana, editado no Porto, Imprensa Portuguesa por iniciativa do Instituto de Alta Cultura em 1953.
***
Gostei de verificar o esforço que se fez na valorização duma serra de ancestrais antecedentes, que, apesar de vergastada pela fúria do fogo, potenciado pelo vento forte e vário e pelo eventual fenómeno de convecção, faz germinar a esperança da recuperação do potencial monchiquenho, graças à força da lucidez da vontade coletiva – mais valente que a crítica ao poderes. Dos fracos não reza a História! – Lá diz o adágio.
2018.08.08 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário