sábado, 18 de agosto de 2018

Terminar ou não o regime compulsório da aposentação por limite de idade


Com os votos do CDS, do PSD e do PS, a Assembleia da República aprovou, quase nos alvores desta legislatura, uma resolução a recomendar ao Governo o termo do regime da aposentação/ reforma compulsória por limite de idade, regra que, de há quase um século, obriga os trabalhadores da administração pública a sair do ativo ao perfazerem 70 anos de idade. E, pelos vistos, o Governo estará a preparar legislação nesse sentido, sendo que o gabinete de Mário Centeno, o governante com responsabilidade na matéria, mantém o enigmático silêncio.
Na verdade, a ideia não é consensual. Assim, enquanto o CDS puxa pelos louros da iniciativa e especialistas como Eugénio Rosa e António Bagão Félix aplaudem a medida, os sindicatos, o BE e o PCP, que a classificou como um “retrocesso social”, criticam duramente a medida.
Por seu turno, os dados do Boletim Estatístico do Emprego da DGAEP (Direção-Geral da Administração e do Emprego Público), relativos a 2017, mostram que, em quase 67 mil trabalhadores da função pública, os maiores de 65 anos são uma pequena percentagem: 1,88%, ou seja, 12.571. E muitas profissões públicas apresentam casos nesta faixa etária entre os 0% e os 1,2%.
Mais: em 2017, só 387 funcionários públicos esperaram pelos 70 anos para se aposentarem – apenas 3,1% de todas as novas pensões concedidas nesse ano pela CGA (Caixa Geral de Aposentações) e um número muito mais baixo que o registado, por exemplo em 2012, ano em que foram 952 os trabalhadores da administração pública a prolongar as funções até ao limite previsto na lei.
Os comunistas consideram um autêntico “retrocesso social” a possibilidade de prolongar o trabalho na administração pública para lá dos 70 anos. E contrapõem se devia estar a estudar o restabelecimento do princípio geral do direito à reforma sem penalizações aos 65 anos, assim como a “garantia do acesso a reforma sem penalizações para os trabalhadores com pelo menos 40 anos de descontos”. Em comunicado, o PCP realça que prolongar “artificialmente” a idade de trabalho será, antes, um fator de “não renovação e de não rejuvenescimento dos efetivos” da administração pública. Porém, o partido admite exceções à regra da idade-limite, por exemplo, por razões de “formação, capacitação ou experiência” que “recomendem ou justifiquem o aproveitamento” dalguns trabalhadores. Mas esses casos, que devem ser objeto de “avaliação específica”, não podem servir de “pretexto” para que qualquer entidade pública prolongue a carreira profissional dos trabalhadores. O PCP frisa que os “avanços e progressos tecnológicos e produtivos” devem traduzir-se em “benefícios” para os trabalhadores “após uma vida de trabalho”, mas não é isso o que o Governo quer ao alterar o regime que obriga os funcionários públicos a reformarem-se quando perfazem 70 anos.
Por seu lado, pela voz do deputado José Soeiro, o Bloco de Esquerda diz estar “inteiramente concentrado na discussão não de medidas de aumento ou adiamento da idade da reforma, mas antes em acabar com os cortes das reformas antecipadas de quem já tem uma longa carreira contributiva”. E essa valorização do trabalho e das longas carreiras é tão válida para o setor privado como para o público. Vinca o deputado do BE que “o nosso empenho e foco é para permitir que os trabalhadores se possam reformar mais cedo e não mais tarde”. E lembra que atualmente “já existem mecanismos que permitem que trabalhadores mais qualificados ou mais necessários devido aos conhecimentos que acumularam possam continuar a colaborar” – o que “acontece, por exemplo, em universidades”. E, embora reconheça que se deve aproveitar esse potencial, isso não deve ser regra porque é preciso contrariar o “grande défice de renovação”.
Ao invés, o deputado do CDS-PP Filipe Anacoreta Correia puxou para o partido os louros pela proposta, porque, em outubro de 2016, os deputados do PSD e do PS aprovaram um projeto de resolução dos centristas que recomenda ao Governo que estenda ao setor público o regime do setor privado, em que é permitido, a quem pretender, continuar a trabalhar depois dos 70 anos. BE, PCP e PEV votaram contra, o PAN absteve-se. A ideia já vinha incluída no programa eleitoral da coligação PSD-CDS Portugal à Frente. Assim, disse o deputado centrista:
O Governo, passados dois anos, vem reconhecer que está a ponderar aquilo que o CDS propôs. Vem tarde, mas, apesar de tudo, é um passo importante no debate político e no reconhecimento de que há propostas que são de considerar.”.
Anacoreta Correia defendeu não ser “justo” nem “razoável” que alguém a quem a sua “equipa e a sua hierarquia reconhecem que tem um contributo importante” seja impedido de ali continuar, porque tem 70 anos, pois “ter 70 anos hoje não é a mesma coisa que ter 70 anos há 20, 30 ou 40 anos. A qualidade de vida que as pessoas têm e a força que sentem é muito diferente. E, vincando que “é preciso implementar medidas para o envelhecimento ativo”, acrescentando que a proposta “contraria” o estigma sobre os mais velhos.
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Helena Rodrigues, do SQTE (Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado e de Entidades com Fins Públicos), lembra que, por autorizações específicas, o Governo pode permitir que os funcionários continuem a exercer funções depois dos 70 anos. Só que o Governo não quererá assumir esse ónus. As queixas que chegam ao sindicato refletem o oposto: “Pessoas que se querem aposentar e não conseguem porque a penalização é altíssima”.
O SQTE defende que “a renovação na administração pública é bem-vinda”, é preciso que entrem “jovens qualificados com outras abordagens e outras soluções”, o que não quer dizer que as pessoas com mais de 70 anos não tenham essa capacidade, mas se gostam de trabalhar, podem continuar a fazê-lo pro bono. Se seguirmos outra via, não daremos hipótese aos jovens.
Para José Abraão, do Sintap (Sindicato dos Trabalhadores da Administração Pública), a diminuição do número de funcionários que espera pelos 70 para se reformar está ligada ao facto de, no período da troika, muita gente ter preferido sair mais cedo do mercado de trabalho, mesmo com as penalizações. Afirma este dirigente sindical:
A política de baixos salários, com os cortes e reduções cada vez maiores nas pensões, leva a que as pessoas não queiram estar mais tempo a trabalhar”.
Por outro lado, José Abraão vê numa medida destas, tomada de forma “avulsa”, a possibilidade de contribuir para a alteração da idade da reforma/aposentação.
Não se estranha que esteja nas categorias de remunerações mais elevadas a maior fatia de funcionários públicos no ativo com mais de 65 anos: diplomatas, médicos, investigadores científicos, professores universitários, dirigentes superiores ou representantes do poder legislativo. São, no geral, pessoas que chefiam equipa, são assessorados por um staff específico ou têm funções mais simbólicas que efetivas. Sobretudo, não aturam público e público agressivo. A diplomacia (com muito menos funcionários que outros setores) é a categoria onde se encontra a percentagem mais alta de trabalhadores desta faixa etária: 8,86%. Vêm a seguir os dirigentes superiores (7,44%), os representantes do poder legislativo (7,21%), os professores universitários (5,22%), que têm os seus assistentes, ou os médicos (4,56%), que nestas idades já não prestam determinados serviços.
Maria do Rosário Gama, presidente da Apre (Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados), nos últimos anos quase desaparecida em combate, comenta:
Quem quer prolongar [o tempo de trabalho] e quem está em cargos mais bem remunerados — não acredito que quem ganhe o salário mínimo esteja interessado…”.
Esta dirigente associativa sustenta a sua concordância com o plano do Governo. Mas adverte que apenas será positivo se não for imposto “e se as pessoas tiverem capacidade e vontade para” continuarem a trabalhar. Escuda-se para tanto na indicação da ONU, que na sua resolução n.º, 46 de 1991, declara que “as pessoas de idade devem poder participar na decisão sobre quando e em que medida deixarão de desempenhar atividades laborais”. Mas teme que a alteração venha a constituir “o primeiro passo” para o aumento a idade da reforma “a uma velocidade superior à que está a aumentar” neste momento. Para Rosário Gama, a medida tem de ser acompanhada pela salvaguarda da possibilidade “de os jovens acederem aos cargos” da função pública. E diz que funcionará, “se as pessoas [com mais de 70 anos] continuarem a trabalhar no apoio aos mais novos, sem cativar o lugar”, pois “os cargos não devem ser vitalícios”.
Também para José Abraão, essa seria uma consequência natural desta medida, pois, ao invés, criará “condições para que certos cargos se tornem vitalícios, impedindo o acesso de gente mais jovem”. E lembra:
Temos uma administração pública envelhecida, com uma média de trabalhadores com cerca de 50 anos”.
O que o dirigente sindical deseja é que o Governo reponha “o sistema de reforma antecipada” e regulamente “a pré-reforma dos trabalhadores da administração pública” como acontece na Segurança Social, o que é mais prioritário do que a questão que está na mesa do debate.
Por mim, embora concorde com José Abraão, duvido que haja muitas pessoas com mais de 70 anos que tenham capacidade e paciência para ensinar pessoas mais novas ou que estas estejam disponíveis para as ouvirem. Aliás com o sistema de concorrência avaliativa do desempenho, o diálogo intergeracional torna-se cada vez mais difícil. As pessoas excecionais não precisam de se manter no ativo para serem úteis à administração pública. Podem muito bem dinamizar sessões de informação, esclarecimento e formação no regime de conferência, simpósio e receber a côngrua remuneração, acumulável com a pensão, nunca podendo somar por esta via mais que um terço do respetivo salário na situação de ativo. Por isso, mais urgente que abolir o limite de idade será revogar a penosa lei que proíbe pensionistas (reformados e aposentados) de prestar qualquer tipo de colaboração, mesmo gratuita, com qualquer entidade pública.    
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Como era expectável, a ideia de superação do limite dos 70 anos na função pública foi recebida com desconfiança pelos sindicatos, que preferem mudar o cerne do debate para o acesso à reforma antecipada sem penalização (fator de sustentabilidade que corta 14,5% da pensão, além das penalizações de 0,5% por cada mês de antecipação). Com efeito, após a 1.ª fase que abrangeu quem tem pelo menos 60 anos e 48 anos de carreira contributiva ou que tenha começado a trabalhar com 14 anos (ou antes) e reúna 46 anos de contribuições (alargada a casos com idade igual ou inferior a 16 anos e que tenham, pelo menos, 46 anos de serviço), os sindicatos reclamam o alargamento a duas outras fases (já negociado com o Governo). A 2.ª inclui pensionistas com 63 (ou mais) e que, aos 60 anos de idade reúnam, pelo menos, 40 de carreira. E a 3.ª, pensionistas com 60 a 62 anos que, aos 60, tenham pelo menos 40 de contribuições. Serão casos residuais e de pensões, em regra, baixas.
Porém, os especialistas formadores de opinião sustentam que “a idade não deve ser o fator de afastamento”. É isto que pensa Eugénio Rosa, vogal da ADSE com mais de 70 anos e para quem a medida deve ser opcional e a discutir entre a entidade empregadora e o funcionário. Sugere que “uma das formas mais corretas seria a pessoa ir reduzindo gradualmente o tempo [de trabalho], procurando passar a sua experiência aos que entrassem”. Neste sentido, comenta:
O que está a acontecer na função pública é dramático. As pessoas foram empurradas para aposentação prematura e os que entram, mais jovens, nem tiveram tempo para aprender com os mais experientes.”.
É lirismo, pois o funcionário tem de trabalhar em torno do seu conteúdo funcional.
António Bagão Félix, antigo Ministro da Segurança Social e do Trabalho e antigo Ministro das Finanças, é pelo fim da reforma obrigatória aos 70 anos, dizendo que “ninguém deve ser obrigado a reformar-se”, no pressuposto de que “a reforma é um direito, não é um dever”. Por isso, entende poder-se continuar a trabalhar a partir de determinada idade, sendo que o limite não deve ser estabelecido por lei, mas por “acordo com a parte empregadora”. Para este especialista, a intenção de acabar com o limite dos 70 anos na função pública “é mais uma medida de convergência entre o regime de Segurança Social e o regime de aposentação” (que são regimes diferentes, pelo que inconvergentes). Depois, os 70 anos foram estabelecidos há um século – e os 70 anos de hoje não são os de há 100 anos. Com efeito, “todas as variáveis relacionadas com o sistema de aposentação ou de reforma estão a ser modificadas a partir da esperança média de vida, como a idade de reforma”. O mais importante é a qualidade da administração do Estado, do Estado que “está muito descapitalizado em termos humanos”, denotando “uma rarefacção, sobretudo a nível hierárquico, de diretores-gerais e em atividades que exigem recursos científicos, técnicos, tais como médicos ou juízes em que a idade é um fator positivo”.
Para Bagão Félix, trata-se de “convidar o Estado a fazer uma redistribuição de conhecimentos entre gerações e qualquer organização só beneficia disso” – o que é muito difícil, diga-se.
Quanto à questão de, ao abrir esta porta, se fecha outra aos precários, discorre:
A minha perceção é que a maioria das pessoas aos 70 anos quer sair. Essa questão poder-se-á colocar, mas o problema fundamental é a insuficiência ou degenerescência dos sistemas de avaliação na administração do Estado. A meritocracia não se resolve quando toda a gente é boa. Na maioria dos casos, não se trata de tirar o lugar a ninguém, mas de haver um compromisso de redistribuição de conhecimentos e sabedorias em que todos beneficiam. É o que já temos na Segurança Social, em que há uma idade a partir da qual a pessoa tem o direito de se reformar, mas não há uma idade em que tem obrigação de se retirar: em tese, pode descontar até aos 90 anos e não é por isso que a ascensão nas carreiras é posta em causa.
É acintoso para quem sabe do que se passa na Segurança Social vê-la dada como exemplo.
Por outro lado, custa-lhe a perceber a posição dos sindicatos, acusando-os de funcionarem “na lógica da pura simetria aritmética no Estado: retendo mais uma pessoa no Estado, é menos uma pessoa que entra. As coisas não são assim”. E diz:
Os sindicatos deviam aplaudir o que andam a apregoar, que é o envelhecimento ativo e as situações em que isso pode beneficiar todos. Imagine um investigador que aos 70 anos tem que ir para casa: aos 72, 74 pode estar a ensinar muito a jovens aspirantes...”.
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Félix deve saber que o envelhecimento ativo não tem de passar pelo trabalho público; e, se se quer competente, a administração não se pode compadecer com a assunção duradoura das debilidades pessoais. Além disso, argumentar que a reforma/aposentação é um direito e não um dever é falacioso. Até o Papa diz que preciso saber retirar-se. Também as férias são um direito intransmissível e irrenunciável, não um dever. Mas não são negociáveis por dinheiro nem o Estado as belisca. Mais de 70 anos hoje não é a pera doce que alguns pensam. A manutenção de forma em muitas pessoas é mais aparente que real e é suportada pelos diversos apoios à vida.
2018.08.18 – Louro de Carvalho

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