Esta categórica asserção de Jesus de que é o Pão da Vida ou o Pão Vivo
(expressões equivalentes, sendo que a primeira é um hebraísmo) ocupa de algum modo todo o
capítulo 6.º do Evangelho de São João (Jo 6,1-71); é precedida da afirmação
da sua divindade, como vem desenvolvido no cap. 5.º; e emparelha com as
afirmações de que é a Luz do Mundo (Jo 7,1-10,42) e a Vida do Mundo (Jo
11,1-12,50). João – mais atento, ao
significado do gesto do lava-pés, ao mandamento novo do amor e do
serviço, bem como à preocupação de Cristo com a unidade dos discípulos e a
disponibilidade destes à aceitação da força consoladora do Espírito Santo – não
incluiu no seu relato evangélico da Última Ceia a referência à bênção do pão
durante a Ceia, como o fazem os Evangelho sinóticos (Mt 26,26; Mc
14,22; Lc 22,19). Porém, o
discurso do Pão da Vida retém e expõe as ideias que muito influíram na
afirmação da doutrina da Eucaristia na tradição cristã.
Com efeito,
no contexto cristológico, o uso do título “Pão da Vida” é similar ao de “Luz
do Mundo”. Na verdade Jesus afirma “Eu
sou a luz do mundo; quem me segue, de modo nenhum andará nas trevas, pelo
contrário terá a luz da vida” (Jo 8,12). Estas são afirmações expandem o tema cristológico
iniciado em João 5,26, onde Jesus declara possuir a Vida, dada pelo Pai, e
a capacidade de a dar aos que o seguem.
O capítulo
6.º de João fornece excertos tomados como leitura do Evangelho para a Missa dos
domingos XVII (1-15), XVIII (24-35), XIX (41-51), XX (51-59) e XXI (60-69) do Tempo Comum, neste Ano B.
O Discurso do Pão da Vida é antecedido
pelo episódio da multiplicação dos cinco pais e dos dois peixes depois de
a multidão faminta ter escutado o ensino de Jesus, para o que o Mestre não
prescindiu do pouco de comida que os discípulos tinham consigo e levou a
multidão a sentar-se em conjunto e a compartilhar da comida disponível, que deu
para todos e ainda sobejou. Repare-se que a bênção que ali o Senhor pronunciou
sobre o pão é similar da referida pelos sinóticos aquando da Última Ceia (XVII domingo). Como era de esperar, as multidões ficaram entusiasmadas
e quiseram aclamá-Lo rei. Jesus, porém, percebendo-lhes o intento, afastou-se
sozinho para o monte. Entretanto, os discípulos deram conta de que Jesus
caminhava sobre as águas e tiveram medo. E lá teve o Senhor que os tranquilizar.
No dia
seguinte, as multidões aperceberam-se de que nem Jesus nem os discípulos
estavam no lugar onde era suposto estarem. Meteram-se então em barcos e foram
ter com eles lá para os lados de Cafarnaum. Foi então que Jesus resolveu pôs os
pontos nos is e dar o devido esclarecimento. No deserto, depois da murmuração
junto de Moisés e de Aarão, com saudades balofas da abundância do Egito, mas
sob o signo da opressão e da escravidão, os antepassados comeram o Maná e as
codornizes, como se leu no XVII domingo, na 1.ª leitura. Porém, agora eles
ficaram satisfeitos, não pelos milagres nem pela Palavra, mas porque
supostamente tinham quem lhes desse de comer sem terem de fazer qualquer
esforço. Ora, como no deserto Deus – e não Moisés – lhes acudira em situação de
necessidade, também agora por ação do Pai, Jesus colmatara a necessidade
pontual da multidão, mas clarificou duas coisas: por um lado, cada um e todos
têm de trabalhar para conseguirem o alimento de que necessitam e não esperar
que ele surja de surpresa e sem esforço; por outro lado, é preciso trabalhar
para conseguir o alimento que não pereça e tratar de o manter disponível em
cada dia de passa. Ora este alimento é justamente o Pão da Vida.
E é exatamente,
quando eles pedem a Jesus que lhes dê sempre desse pão, que se abre o núcleo do
discurso do Pão da Vida:
“Eu sou o pão da vida.
Quem vem a mim não mais terá fome e quem crê em mim jamais terá sede. Mas já
vo-lo disse: vós vistes-me e não credes. Todos aqueles que o Pai me dá virão a
mim; e quem vier a mim Eu não o rejeitarei, porque desci do Céu não para fazer
a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade daquele que
me enviou é esta: que Eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas o
ressuscite no último dia. Esta é, pois, a vontade do meu Pai: que todo aquele
que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e Eu o ressuscitarei no último
dia.” (Jo 6,35-40).
(XVIII
domingo)
***
Se no
deserto, o povo murmurava porque não tinha comida, tinha sede e lhe custava a
aguentar as agruras do deserto, agora os judeus murmuram contra Jesus por ter
dito:
‘Eu sou o pão que desceu do Céu’. E
diziam: “Não é Ele Jesus, o filho de
José, de quem nós conhecemos o pai e a mãe? Como se atreve a dizer agora ‘Eu
desci do Céu’?”.
Admite-se
que os judeus não tivessem conhecimento da génese da encarnação do Verbo, mas
censura-se-lhes a supina ignorância sobre o mandato celeste confiado por Deus
aos profetas, bem como o apoio divino à missão profética. Na sua
autossuficiência e na mania de que tudo sabiam acerca daquela personalidade,
fecharam-se ao mistério e até se desdisseram do que professaram anteriormente: “Este é realmente o Profeta que devia vir ao
mundo!” (Jo 6,14).
Mas Jesus,
sabendo que o murmúrio nada resolve e constitui pecha impeditiva da abertura ao
mistério e ao outro, enclausurando-nos nos nossos esquemas e prejudicando os
outros, ordenou: “Não murmureis
entre vós”. E reafirmou com autoridade reforçada o discurso do Pão da
Vida como suporte e resultado da fé:
“Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair;
e Eu hei de ressuscitá-lo no último dia. Está escrito nos profetas: E
todos serão ensinados por Deus. Todo aquele que escutou o ensinamento que
vem do Pai e o entendeu vem a mim. Não é que alguém tenha visto o Pai, a não
ser aquele que tem a sua origem em Deus: esse é que viu o Pai. Em verdade, em
verdade vos digo: aquele que crê tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Os
vossos pais comeram o maná no deserto, mas morreram. Este é o pão que desce do
Céu; se alguém comer dele, não morrerá. Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu:
se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei de dar é a
minha carne, pela vida do mundo.” (Jo
6,44-51).
Jesus
não tenta discussão com quem se escandaliza nem tenta persuadir com argumentos
irrefutáveis, mas apela à fé e a que se interroguem com sinceridade sobre
aquilo de que Deus é capaz de fazer em prol do seu povo, lembrado as
intervenções divinas ao longo da História e apresentando-Se como o garante de
que Deus continuará a dar a Sua graça e agora em plenitude na pessoa do Filho,
que é Ele próprio e que se apresenta como o Pão vivo descido do Céu, penhor de
vida eterna. Para tanto associa a aceitação deste Pão ao ensino que Deus faz.
(XIX domingo)
***
O XX domingo
retoma no Evangelho (Jo 6,51-58) do
discurso do Pão da Vida o segmento “Eu sou o pão
vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o
pão que Eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo” – com que reforça a sua condição de pão vivo não
fabricado pelo homem, mas descido do Céu, e de garantia de vida eterna para
quem dele comer, pois quem dele comer não morrerá como morreram os que se
alimentaram do maná. Mais: este pão é a carne do próprio Cristo. E aqui surge
novo murmúrio:
“Então, os judeus,
exaltados, puseram-se a discutir entre si, dizendo: ‘Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer?’!” (Jo 6,52).
Mas
Jesus não desarma e continua insistindo mais explicitamente:
“Em verdade, em
verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não
beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem realmente come a minha
carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei de ressuscitá-lo no último
dia, porque a minha carne é uma verdadeira comida e o meu sangue, uma
verdadeira bebida. Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a
morar em mim e Eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai,
também quem de verdade me come viverá por mim. Este é o pão que desceu do Céu;
não é como aquele que os antepassados comeram, pois eles morreram; quem come
mesmo deste pão viverá eternamente.” (Jo 6,53-58).
Desde os tempos dos primeiros cristãos se entende que o
discurso do Pão da Vida se refere à Eucaristia, como os sinóticos explicitam no
relato da Última Ceia, ali não de forma polémica como no cap. 6.º de João, mas
na intimidade da refeição pascal, embora Jesus soubesse que seria traído,
negado e abandonado, mas que tudo seria remediado e reforçado por ação do
Espírito Santo, a força do Alto.
Trata-se, pois, de comer realmente o Corpo do Senhor e beber
do Seu Sangue, o Corpo e Sangue do Filho do Homem – título que no 4.º Evangelho
evoca sempre os mistérios indissociáveis da Encarnação e da Páscoa. Come-se e bebe-se
a carne do Cristo Ressuscitado sob os sinais ou sacramento do pão e do vinho consagrados. E daí consegue-se que
Cristo more em nós e nós nele. Mas não consegue tal alimento quem não acreditar
na Palavra de Deus e do Seu Filho e não se deixar alimentar por ela. Mas quem o
fizer terá a vida eterna e será ressuscitado no último dia porque o Senhor é a Ressurreição e a Vida, tal como é aqui e
em toda a parte, agora e para sempre, o
Caminho, a Verdade e a Vida.
***
E o evangelho do XXI domingo (Jo 6,60-69), partindo do murmúrio, não das multidões, mas agora de
muitos dos discípulos, reforça e encerra o discurso do Pão da Vida. De facto, “depois de O
ouvirem, muitos disseram: ‘Que palavras
insuportáveis! Quem pode entender isto?’.
Mas, como era de supor, o murmúrio (provindo da dureza de coração) não passou despercebido a Jesus, pois
sabia que os discípulos murmuravam no seu íntimo a respeito disto, pois os
conhecia por dentro, pelo que os interpela: “Isto escandaliza-vos?”. E, apelando aos valores do espírito e
à inanidade da carne, que atrai a muitos, sabedor de que muitos não acreditam, desafiou:
“E se virdes o Filho
do Homem subir para onde estava antes? É o Espírito quem dá a vida; a carne não
serve de nada: as palavras que vos disse são espírito e são vida. Mas há alguns
de vós que não creem.”.
O evangelista não se esquece de frisar que efetivamente “Jesus
sabia, desde o princípio, quem eram os que não criam e quem era aquele que O
havia de entregar”, como se refere a vv. 70-71:
“Disse-lhes Jesus: ‘Não
vos escolhi Eu a vós, os Doze? Contudo, um de vós é um diabo’. Referia-se a
Judas, filho de Simão Iscariotes, pois esse é que viria a entregá-lo, sendo
embora um dos Doze.”
E, segundo João, era por isso que os advertira: “Eu vos declarei que ninguém pode vir a mim,
se isso não lhe for concedido pelo Pai”.
O autor do
4.º Evangelho sublinha que, a partir dali, muitos dos discípulos voltaram para trás e já
não andavam com Ele. Então, desafiou os Doze: “Também vós quereis ir embora?”. Mas, de pronto, Simão Pedro adiantou-se e confessou: “A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras
de vida eterna! Por isso, nós cremos e sabemos que Tu é que és o Santo de Deus”.
***
O discurso
do Pão da Vida foi longo e perturbado pela murmuração e pelo abandono de
discípulos. Mas foi pedagógico, progressivo, insistente e claro, tendo a
resposta (inspirado do Alto) plasmada na fé de Pedro, como sinal de adesão ao
quadro messiânico que emoldura a figura e a missão do Senhor. De facto, Jesus é
a Palavra de Deus feita carne.
Aceitamos
nós de verdade este discurso do Pão da Vida? Deixamo-nos alimentar e agarrar na
vida toda pela Eucaristia-banquete, Eucaristia-sacrifício-memorial,
Eucaristia-sinal da parusia?
2018.08.12 – Louro
de Carvalho
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