O artigo
37.º da nossa Constituição garante a todos
(e não apenas a alguns) “o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela
palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de
informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem
discriminações” (n.º 1). Mais estabelece que “o exercício destes
direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”
(n.º
2).
Por outro lado, o mesmo artigo
estabelece formas de, a posteriori, se
dirimirem os abusos do exercício destes direitos. Assim, o n.º 3 estipula que “as infrações cometidas no exercício destes
direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do
ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência
dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos
da lei”. E o n.º 4 garante a todas as pessoas, singulares ou coletivas, “em condições de igualdade e eficácia, o direito
de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos
sofridos”.
***
Vem isto a propósito da polémica
que eclodiu entre Manuel Alegre, conhecido poeta e político, e o oficial
piloto-aviador Brandão Ferreira.
Quem ler a poesia e a prosa do predito
político pensará que se trata de um cidadão impoluto, generoso e tolerante e,
sobretudo, amigo das liberdades para si e para outrem. Porém, quem se der ao
cuidado de escrutinar o seu perfil histórico poderá, ao menos malevolamente, concluir
de outra forma, muito embora saibamos que não há cidadãos perfeitos.
De Manuel Alegre, retenho o seu
mérito literário e continuo nesta apreciação positiva. O mesmo não direi do
ponto de vista político e das suas arremetidas linguísticas (o
arrepio do estabelecido rejeita a nova ortografia sem se apoiar em argumentos
sociolinguísticos consistentes – só porque não concorda).
Do ponto de vista político, devo
dizer que cheguei a admirá-lo e até apoiei publicamente a sua primeira candidatura
presidencial, o que não fiz aquando da sua segunda candidatura. Por um lado
soaram rumores, não sei se consistentes, de que se reformara da antiga Emissora
Nacional, depois RDP, onde teria trabalhado uns magros meses; por outro,
exprimiu o seu fel crítico na televisão em socorro de deputados socialistas
professores junto dos quais alguns professores – eu fui um deles – pediram
intercessão no contexto do ataque cerrado da Ministra da Educação do 1.º Governo
de Sócrates. Um dos deputados respondeu-me que os deputados representavam o
país inteiro e não uma profissão – o que eu efetivamente sabia, apenas me
movendo a sua pressuposta compreensão dos problemas e da especificidade da profissão
docente. E eu respondi que sabia desta disposição constitucional e frisei que
também não representam o círculo eleitoral que os elegeu, sem que, por isso, se
inibam de ali fazerem trabalho político. E Alegre veio à liça esclarecer o que
todos sabíamos, mas foi mais longe na sua indignação considerando abusiva e
insultuosa a atitude desses professores. Aí vi que Manuel Alegre terá dificuldade
em entender a liberdade de expressão em outros, embora a tenha defendido
acremente na AR contra Freitas do Amaral, Ministro dos Negócios Estrangeiros de
Sócrates por uma tirada diplomática contra umas publicações que feriam a
sensibilidade dos muçulmanos.
“No total foi deputado 34 anos. Reformou-se após deixar o Parlamento,
auferindo uma reforma de 3219,95€ (para a qual contaram os descontos efetuados
como deputado), uma subvenção vitalícia superior a dois mil euros
mensais. A sua reforma foi motivo de diversos boatos nos meios de
comunicação social, que foram levados a Tribunal, culminando no pagamento a
Manuel Alegre de uma indemnização no valor de quarenta mil euros, como
compensação por danos morais em virtude de notícia publicada em junho de 2006,
no jornal diário Correio da
Manhã, e que lhe imputava o recebimento de uma reforma superior a três mil
euros por escassos meses de trabalho na RDP, esquecendo os mais de 30 anos em
que Manuel Alegre descontou para a Caixa Geral de Aposentações enquanto
deputado na Assembleia da República. Manuel Alegre ganhou os recursos em sede
de tribunal de primeira instância, de novo na relação de Lisboa, e de novo em
sede de Supremo Tribunal de Justiça. Acumula ainda uma subvenção
vitalícia superior a dois mil euros mensais, aplicada a todos os
titulares de cargos públicos com desempenhos superiores a 12 anos.”.
Ora, do
meu ponto de vista, teria sido mais democrático acionar o n.º 4 do art.º 37.º
da CRP e usar do direito de resposta e, caso não fosse satisfeito este direito,
poderia ter incomodado a Alta Autoridade para a Comunicação Social, ora ERC. Porém,
a tolerância do político poeta sentiu-se mais segura no recurso aos tribunais. Ainda
gostaria de saber como, após um hipotético esclarecimento público da situação,
os tribunais baseariam a contabilização dos danos patrimoniais e morais.
***
O predito
militar piloto-aviador, que chegou ao posto de tenente-coronel, é bem conhecido
no âmbito da História militar. Obviamente, na sua investigação, nos seus livros,
nos seus múltiplos artigos de opinião e crónicas em revistas e jornais, revela
um modelo teórico de investigação e de hermenêutica muito sui generis. Naturalmente tem nalguns democratas um objeto especial
e misto de estimação e crítica mordaz, que entendo em contraponto com o juízo democrático
que apelida de fascistas a muitos dos que serviram o anterior regime sem ter em
conta o contexto e a obrigação de as forças armadas se submeterem ao poder político
vigente.
Um dos
visados do militar crítico é precisamente Alegre. Segundo o Correio da Manhã, de 2 de julho, a guerra entre
Brandão e Alegre dura quase há 8 anos. Entre 2010 e 2011, o militar escreveu
artigos muito críticos de Alegre, candidato à presidência da república, no semanário
“O Diabo” e no blogue “O Novo Adamastor”, acusando-o de
incitar “à deserção das tropas portuguesas e ao não cumprimento do dever
militar” durante a guerra colonial, de apoiar e promover “atos de sabotagem
contra o esforço de guerra português” e de, em suma, ter cometido atos de
traição à pátria. E o
DN, de 13 de abril passado, refere
que, a 12 de setembro de 2014, o tenente-coronel aviador (na
reforma) Brandão Ferreira
foi absolvido em 1.ª instância do crime de difamação, mas, após recurso para o TRL
(Tribunal
da Relação de Lisboa),
acabou por ser condenado por difamação e ao pagamento de indemnização ao
histórico dirigente socialista.
O arguido foi julgado por
difamação por artigos publicados em blogues, tendo no julgamento em Juízo
Criminal reiterado a alegação de que Manuel Alegre cometeu, aos microfones da
rádio Voz da Liberdade, em Argel,
traição à pátria, ao incitar os militares portugueses a desertar, ao conviver
com os líderes dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné e ao
ajudá-los na guerrilha contra as tropas portuguesas. Em fevereiro de 2015, o TRL confirmou a sentença de absolvição do
ex-militar da 1.ª instância, à qual o Ministério Público deu visto. Conta
Brandão Ferreira que este acórdão que o absolvia foi anulado, com o argumento
de que Alegre não fora notificado. Este mudou de advogado, tendo ido para o lugar
de Nuno Godinho de Matos o filho de Alegre, Afonso Duarte. Pelos vistos, a
notificação foi parar ao pai, que não a entregou ao filho. Um erro burocrático fez
com que a decisão não transitasse em julgado. O processo foi redistribuído a
dois novos desembargadores que decidiram, em 2016, pela condenação do
tenente-coronel. Tendo o Correio da Manhã
contactado Manuel Alegre, este confirmou o recurso, mas remeteu mais
esclarecimentos para o seu advogado Afonso Duarte.
E, ainda sem a
decisão ter transitado em julgado – Brandão Ferreira dizia então que a decisão
do TRL, que o condenou a pagar 25 mil euros a Alegre, ainda não
transitara em julgado – penhoraram-lhe as contas bancárias. Declarou o arguido
que lhe penhoraram “10 mil euros”, sublinhando que recorreu ao Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem, mas o processo não foi aceite por entrar fora do
prazo.
O Tribunal Constitucional
confirmou o acórdão da Relação de Lisboa que condena Brandão Ferreira,
tenente-coronel, a pagar uma indemnização de 25 mil euros pelo crime de
difamação a Manuel Alegre.
Segundo um comunicado de Alegre,
o caso é
“Paradigmático,
pois, de forma clara, fixa os limites da liberdade de expressão perante o
direito à honra e ao bom nome, à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem, no sentido de que é ilícita toda a imputação de factos
falsos ainda que o visado seja figura pública. […] Ao contrário do que foi afirmado por este saudosista militante do
regime ditatorial do Estado Novo, Manuel Alegre cumpriu as suas obrigações
militares, nomeadamente em Angola, como combatente, na zona de guerra.”.
O comunicado recorda que se
utilizou “a mentira e a difamação para prejudicar a imagem de Manuel Alegre por
altura da sua candidatura à Presidência da República”. E conclui:
“Este tipo de
calúnia lembra as práticas de perseguição e assassinato de caráter utilizadas
pelo regime deposto em 25 de abril de 1974 e demonstra uma total falta de respeito
pelas regras da democracia”.
Entretanto, Manuel
Alegre avançou com novo recurso para o TRL contra Brandão Ferreira. Pede mais
75 mil euros. Veremos como será a decisão do TRL e eventualmente de outras instâncias.
Para já, ao todo, com custas judiciais e multas, Brandão Ferreira terá de pagar
cerca de 30 mil euros. Mas agora arrisca-se a pagar mais 75 mil. De acordo com
Alexandre Lafayette, advogado do ex-militar, o TRL deverá agora mandar o
processo para ser decidido no STJ (Supremo
Tribunal de Justiça). Mas Brandão não se conforma e relembra que foi “absolvido
em primeira instância”, em 2014, e que “estranhamente a Relação produziu dois
acórdãos”.
***
É a História que
decide de que lado se deve fazer a justiça. Penso que os alegados factos imputáveis
a Alegre segundo o arguido, eram puníveis segundo o CJM e o CP do tempo pré-abrilino
(deserção das fileiras, fuga do país e alegada instigação à
desobediência civil e militar), como o seriam se tivessem ocorrido depois. Mas, como nenhum
tribunal o condenou nem sequer o julgou, é de facto extravagante uma acusação
de traição em 2010/2011.
Não obstante,
embora Alegre tenha do seu lado o n.º 3 do art.º da CRP, a sua generosidade democrática
deveria tê-lo feito utilizar o n.º 4 do mesmo artigo com vista à reposição da
verdade. O comunicado a que se alude acima não se enquadra neste âmbito, mas
numa posição de parte litigante justificativa do procedimento judicial e do seu
desfecho. Por outro lado, Alegre, se está atento à Comunicação Social, devia ter
notado que um grupo de amigos do piloto-aviador se quotizou para o achamento de
perto de 30 mil euros que a acusação-condenação lhe custou. Devia saber o
princípio do “summum ius summa iniuria”,
até porque estudou direito. Porém, ainda o pretende onerar com mais 75 mil. Isto
não é tolerância democrática, apesar de ter razão do ponto de vista formal. E,
apesar das reservas em relação ao político (que
não ao poeta), esperava melhor dele. A liberdade de expressão é para
todos, sendo difícil definir a raia da liberdade e do seu abuso. Mas a compreensão
tolerante tem sempre lugar ao sol da democracia, não se devendo dar a ideia de
que se vive à custa dos erros dos outros.
2018.08.20
– Louro de Carvalho
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