segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A liberdade de expressão e de informação é prerrogativa de todos

O artigo 37.º da nossa Constituição garante a todos (e não apenas a alguns)o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações” (n.º 1). Mais estabelece que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura” (n.º 2).
Por outro lado, o mesmo artigo estabelece formas de, a posteriori, se dirimirem os abusos do exercício destes direitos. Assim, o n.º 3 estipula que “as infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”. E o n.º 4 garante a todas as pessoas, singulares ou coletivas, “em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos”.
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Vem isto a propósito da polémica que eclodiu entre Manuel Alegre, conhecido poeta e político, e o oficial piloto-aviador Brandão Ferreira.
Quem ler a poesia e a prosa do predito político pensará que se trata de um cidadão impoluto, generoso e tolerante e, sobretudo, amigo das liberdades para si e para outrem. Porém, quem se der ao cuidado de escrutinar o seu perfil histórico poderá, ao menos malevolamente, concluir de outra forma, muito embora saibamos que não há cidadãos perfeitos.
De Manuel Alegre, retenho o seu mérito literário e continuo nesta apreciação positiva. O mesmo não direi do ponto de vista político e das suas arremetidas linguísticas (o arrepio do estabelecido rejeita a nova ortografia sem se apoiar em argumentos sociolinguísticos consistentes – só porque não concorda).
Do ponto de vista político, devo dizer que cheguei a admirá-lo e até apoiei publicamente a sua primeira candidatura presidencial, o que não fiz aquando da sua segunda candidatura. Por um lado soaram rumores, não sei se consistentes, de que se reformara da antiga Emissora Nacional, depois RDP, onde teria trabalhado uns magros meses; por outro, exprimiu o seu fel crítico na televisão em socorro de deputados socialistas professores junto dos quais alguns professores – eu fui um deles – pediram intercessão no contexto do ataque cerrado da Ministra da Educação do 1.º Governo de Sócrates. Um dos deputados respondeu-me que os deputados representavam o país inteiro e não uma profissão – o que eu efetivamente sabia, apenas me movendo a sua pressuposta compreensão dos problemas e da especificidade da profissão docente. E eu respondi que sabia desta disposição constitucional e frisei que também não representam o círculo eleitoral que os elegeu, sem que, por isso, se inibam de ali fazerem trabalho político. E Alegre veio à liça esclarecer o que todos sabíamos, mas foi mais longe na sua indignação considerando abusiva e insultuosa a atitude desses professores. Aí vi que Manuel Alegre terá dificuldade em entender a liberdade de expressão em outros, embora a tenha defendido acremente na AR contra Freitas do Amaral, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Sócrates por uma tirada diplomática contra umas publicações que feriam a sensibilidade dos muçulmanos.
Sobre o caso da RDP, a Wiquipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Alegre) – esclarece:
No total foi deputado 34 anos. Reformou-se após deixar o Parlamento, auferindo uma reforma de 3219,95€ (para a qual contaram os descontos efetuados como deputado), uma subvenção vitalícia superior a dois mil euros mensais. A sua reforma foi motivo de diversos boatos nos meios de comunicação social, que foram levados a Tribunal, culminando no pagamento a Manuel Alegre de uma indemnização no valor de quarenta mil euros, como compensação por danos morais em virtude de notícia publicada em junho de 2006, no jornal diário Correio da Manhã, e que lhe imputava o recebimento de uma reforma superior a três mil euros por escassos meses de trabalho na RDP, esquecendo os mais de 30 anos em que Manuel Alegre descontou para a Caixa Geral de Aposentações enquanto deputado na Assembleia da República. Manuel Alegre ganhou os recursos em sede de tribunal de primeira instância, de novo na relação de Lisboa, e de novo em sede de Supremo Tribunal de Justiça. Acumula ainda uma subvenção vitalícia superior a dois mil euros mensais, aplicada a todos os titulares de cargos públicos com desempenhos superiores a 12 anos.”.      
Ora, do meu ponto de vista, teria sido mais democrático acionar o n.º 4 do art.º 37.º da CRP e usar do direito de resposta e, caso não fosse satisfeito este direito, poderia ter incomodado a Alta Autoridade para a Comunicação Social, ora ERC. Porém, a tolerância do político poeta sentiu-se mais segura no recurso aos tribunais. Ainda gostaria de saber como, após um hipotético esclarecimento público da situação, os tribunais baseariam a contabilização dos danos patrimoniais e morais.
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O predito militar piloto-aviador, que chegou ao posto de tenente-coronel, é bem conhecido no âmbito da História militar. Obviamente, na sua investigação, nos seus livros, nos seus múltiplos artigos de opinião e crónicas em revistas e jornais, revela um modelo teórico de investigação e de hermenêutica muito sui generis. Naturalmente tem nalguns democratas um objeto especial e misto de estimação e crítica mordaz, que entendo em contraponto com o juízo democrático que apelida de fascistas a muitos dos que serviram o anterior regime sem ter em conta o contexto e a obrigação de as forças armadas se submeterem ao poder político vigente.
Um dos visados do militar crítico é precisamente Alegre. Segundo o Correio da Manhã, de 2 de julho, a guerra entre Brandão e Alegre dura quase há 8 anos. Entre 2010 e 2011, o militar escreveu artigos muito críticos de Alegre, candidato à presidência da república, no semanário “O Diabo” e no blogue “O Novo Adamastor”,  acusando-o de incitar “à deserção das tropas portuguesas e ao não cumprimento do dever militar” durante a guerra colonial, de apoiar e promover “atos de sabotagem contra o esforço de guerra português” e de, em suma, ter cometido atos de traição à pátria. E o DN, de 13 de abril passado, refere que, a 12 de setembro de 2014, o tenente-coronel aviador (na reforma) Brandão Ferreira foi absolvido em 1.ª instância do crime de difamação, mas, após recurso para o TRL (Tribunal da Relação de Lisboa), acabou por ser condenado por difamação e ao pagamento de indemnização ao histórico dirigente socialista.
O arguido foi julgado por difamação por artigos publicados em blogues, tendo no julgamento em Juízo Criminal reiterado a alegação de que Manuel Alegre cometeu, aos microfones da rádio Voz da Liberdade, em Argel, traição à pátria, ao incitar os militares portugueses a desertar, ao conviver com os líderes dos movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné e ao ajudá-los na guerrilha contra as tropas portuguesas. Em fevereiro de 2015, o TRL confirmou a sentença de absolvição do ex-militar da 1.ª instância, à qual o Ministério Público deu visto. Conta Brandão Ferreira que este acórdão que o absolvia foi anulado, com o argumento de que Alegre não fora notificado. Este mudou de advogado, tendo ido para o lugar de Nuno Godinho de Matos o filho de Alegre, Afonso Duarte. Pelos vistos, a notificação foi parar ao pai, que não a entregou ao filho. Um erro burocrático fez com que a decisão não transitasse em julgado. O processo foi redistribuído a dois novos desembargadores que decidiram, em 2016, pela condenação do tenente-coronel. Tendo o Correio da Manhã contactado Manuel Alegre, este confirmou o recurso, mas remeteu mais esclarecimentos para o seu advogado Afonso Duarte.  
E, ainda sem a decisão ter transitado em julgado – Brandão Ferreira dizia então que a decisão do TRL, que o condenou a pagar  25 mil euros a Alegre, ainda não transitara em julgado – penhoraram-lhe as contas bancárias. Declarou o arguido que lhe penhoraram “10 mil euros”, sublinhando que recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas o processo  não foi aceite por entrar fora do prazo.
O Tribunal Constitucional confirmou o acórdão da Relação de Lisboa que condena Brandão Ferreira, tenente-coronel, a pagar uma indemnização de 25 mil euros pelo crime de difamação a Manuel Alegre.
Segundo um comunicado de Alegre, o caso é
Paradigmático, pois, de forma clara, fixa os limites da liberdade de expressão perante o direito à honra e ao bom nome, à luz da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no sentido de que é ilícita toda a imputação de factos falsos ainda que o visado seja figura pública. […] Ao contrário do que foi afirmado por este saudosista militante do regime ditatorial do Estado Novo, Manuel Alegre cumpriu as suas obrigações militares, nomeadamente em Angola, como combatente, na zona de guerra.”.
O comunicado recorda que se utilizou “a mentira e a difamação para prejudicar a imagem de Manuel Alegre por altura da sua candidatura à Presidência da República”. E conclui:
Este tipo de calúnia lembra as práticas de perseguição e assassinato de caráter utilizadas pelo regime deposto em 25 de abril de 1974 e demonstra uma total falta de respeito pelas regras da democracia”.
Entretanto, Manuel Alegre avançou com novo recurso para o TRL contra Brandão Ferreira. Pede mais 75 mil euros. Veremos como será a decisão do TRL e eventualmente de outras instâncias. Para já, ao todo, com custas judiciais e multas, Brandão Ferreira terá de pagar cerca de 30 mil euros. Mas agora arrisca-se a pagar mais 75 mil. De acordo com Alexandre Lafayette, advogado do ex-militar, o TRL deverá agora mandar o processo para ser decidido no STJ (Supremo Tribunal de Justiça). Mas Brandão não se conforma e relembra que foi “absolvido em primeira instância”, em 2014, e que “estranhamente a Relação produziu dois acórdãos”.
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É a História que decide de que lado se deve fazer a justiça. Penso que os alegados factos imputáveis a Alegre segundo o arguido, eram puníveis segundo o CJM e o CP do tempo pré-abrilino (deserção das fileiras, fuga do país e alegada instigação à desobediência civil e militar), como o seriam se tivessem ocorrido depois. Mas, como nenhum tribunal o condenou nem sequer o julgou, é de facto extravagante uma acusação de traição em 2010/2011.
Não obstante, embora Alegre tenha do seu lado o n.º 3 do art.º da CRP, a sua generosidade democrática deveria tê-lo feito utilizar o n.º 4 do mesmo artigo com vista à reposição da verdade. O comunicado a que se alude acima não se enquadra neste âmbito, mas numa posição de parte litigante justificativa do procedimento judicial e do seu desfecho. Por outro lado, Alegre, se está atento à Comunicação Social, devia ter notado que um grupo de amigos do piloto-aviador se quotizou para o achamento de perto de 30 mil euros que a acusação-condenação lhe custou. Devia saber o princípio do “summum ius summa iniuria”, até porque estudou direito. Porém, ainda o pretende onerar com mais 75 mil. Isto não é tolerância democrática, apesar de ter razão do ponto de vista formal. E, apesar das reservas em relação ao político (que não ao poeta), esperava melhor dele. A liberdade de expressão é para todos, sendo difícil definir a raia da liberdade e do seu abuso. Mas a compreensão tolerante tem sempre lugar ao sol da democracia, não se devendo dar a ideia de que se vive à custa dos erros dos outros.
2018.08.20 – Louro de Carvalho 

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