Como se
pode ler no Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, “o Sumo Pontífice Francisco, na Audiência
concedida, em 11 de maio 2018, ao Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, aprovou a nova redação do n.º 2267 do Catecismo da Igreja Católica (CIC),
dispondo que seja traduzida nas diversas línguas e inserida em todas as edições
do sobredito Catecismo”.
Nestes
termos, o sobredito número 2267 do CIC
passa a ter a seguinte redação.
“Durante
muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade
legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade
de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem
comum.
Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade
da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além
disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte
do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que
garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar
definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.
Por isso, a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que “a pena de morte é
inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”[1],
e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”.
[1] Francisco, Discurso aos participantes no
encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova
Evangelização, 11 de outubro de 2017: L'Osservatore
Romano, 13 de outubro de 2017, 5 (ed. port. 19 de outubro de 2017,
13).
***
Como se verifica pela nota ao novo texto, a
decisão papal vem na sequência do teor de várias intervenções de Francisco
sobre a matéria, em que sobressai o seu discurso aos
participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção
da Nova Evangelização, a 11 de setembro de 2017, para assinalar o 25.º aniversário da Constituição apostólica “Fidei
depositum”, pela qual João Paulo II promulgou e mandou publicar o CIC.
Desse
discurso releva, para esta matéria, a carta que o Pontífice enviou ao Presidente da
Comissão Internacional contra a Pena de Morte a 20 de março de 2015.
O
Papa faz constar na nova redação do sobredito do CIC: o sentido da compreensão pela atitude da Igreja ao longo dos
séculos sobre a licitação da pena capital como último recurso, tendo em conta a
gravidade de alguns delitos, e após um processo judicial regular; a evidência
da cada vez mais viva consciência
de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo após a perpetração de crimes
gravíssimos; a nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do
Estado”; e o desenvolvimento de “sistemas de detenção mais eficazes, que
garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar
definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir”.
No aludido discurso, Francisco afirmou que “a condenação à pena de morte é uma medida
desumana que, independentemente do modo como for realizada, humilha a dignidade
pessoal”.
Já, em fevereiro de 2016, tinha apelado à “abolição”
da pena de morte em todo o mundo, enquadrando este apelo na celebração do ano
santo extraordinário, o Jubileu da Misericórdia [dezembro de 2015-novembro de 2016], em defesa duma cultura de “respeito da vida”. E
exortou:
“Apelo à consciência dos governantes, para
que se chegue a um consenso internacional pela abolição da pena de morte e
proponho aos que entre eles são católicos que cumpram um gesto corajoso e
exemplar: que nenhuma condenação seja executada neste Ano Santo da Misericórdia”.
Por outro lado, a comunicação da nova redação,
apresentada pela Sala de Imprensa da Santa Sé, é acompanhada por uma Carta
aso Bispos, da Congregação para a Doutrina da Fé (de 13 de
junho, aprovada e mandada publicar pelo Papa a 28 do mesmo mês), que frisa:
“A nova formulação do n.º 2267 do Catecismo
da Igreja Católica quer impulsionar um firme compromisso, também através de um
diálogo respeitoso com as autoridades políticas, a fim de que seja fomentada
uma mentalidade que reconheça a dignidade de toda vida humana e sejam criadas
as condições que permitam eliminar hoje o instituto jurídico da pena de morte,
onde ainda está em vigor”.
***
Entre as
considerações que Francisco tece sobre o CIC
no discurso sobre a “Fidei depositum”,
ressalta que o Catecismo se apresenta, “à luz do amor, como uma experiência de
conhecimento, de confiança e de abandono ao mistério” e que, “ao delinear os
pontos estruturais da sua composição”, o CIC
“retoma um texto do Catecismo Romano”, que assume, “propondo-o como chave de leitura e concretização”.
Assim se lê no seu n.º 25:
“A finalidade da doutrina e do ensino deve
fixar-se toda no amor, que não acaba. Podemos expor muito bem o que se deve
crer, esperar ou fazer; mas, sobretudo, devemos pôr sempre em evidência o amor
de nosso Senhor, de modo que cada qual compreenda que qualquer ato de virtude
perfeitamente cristão não tem outra origem nem outro fim senão o amor.” – Catechismus
Romanus, Praefatio 10: ed. P. Rodriguez (Città del Vaticano
– Pamplona 1989) p. 10.
Ora,
considerando que o CIC deve ficar
totalmente adequado e coerente com as finalidades agora expressas, o Pontífice
discorre em concreto sobre a pena de morte – problemática que “não
pode ficar reduzida a mera recordação histórica da doutrina, sem se fazer sobressair,
por um lado, o progresso na doutrina operado pelos últimos Pontífices e, por
outro, a renovada consciência do povo cristão, que recusa uma postura de
anuência quanto a uma pena que lesa gravemente a dignidade humana”.
Deve, pois, segundo o entendimento papal, “afirmar-se energicamente que a
condenação à pena de morte é uma medida desumana que, independentemente do modo
como for realizada, humilha a dignidade pessoal”; que é, em si mesma, contrária
ao Evangelho, porque voluntariamente se decide suprimir uma vida humana que é
sempre sagrada aos olhos do Criador e cujo verdadeiro juiz e garante, em última
análise, é apenas Deus”; e que “nunca homem algum, ‘nem sequer o homicida,
perde a sua dignidade pessoal’.”.
Por outro lado, é preciso ter sempre em conta que “Deus é um Pai que sempre
espera o regresso do filho, o qual, sabendo que errou, pede perdão e começa uma
vida nova”. Assim, “a ninguém se pode tirar não só a vida, mas até a própria
possibilidade de um resgate moral e existencial que redunda em proveito para a
comunidade”.
Apesar de
compreender que os séculos passados, ante a pobreza dos instrumentos de defesa
e a falta de maturidade social, tenham alojado como legítimo o recurso à pena
de morte “como consequência lógica da aplicação da justiça”, aponta o dedo ao
próprio Estado Pontifício, que recorreu “a este remédio extremo e desumano,
descurando o primado da misericórdia sobre a justiça”. Mais refere que
“a
preocupação por conservar íntegros os poderes e as riquezas materiais levara a
sobrestimar o valor da lei, impedindo que se chegasse a uma maior profundidade
na compreensão do Evangelho”.
Nestes
termos, o Papa declara que “assumimos as responsabilidades do passado,
reconhecendo que aqueles meios eram ditados por uma mentalidade mais legalista
que cristã”. Porém, julga que uma neutralidade atual face às “novas exigências
de reafirmação da dignidade pessoal, tornar-nos-ia mais culpáveis”. E, não estando ante qualquer contradição com a
doutrina passada, pois a defesa da dignidade da vida humana “desde o primeiro
instante da conceção até à morte natural sempre encontrou, no ensinamento da
Igreja”, uma “voz coerente e autorizada”, declara:
“É necessário reiterar que, por muito grave
que possa ter sido o delito cometido, a pena de morte é inadmissível, porque
atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”.
Referindo-se
ao Concílio Vaticano II e, em especial, à Dei
Verbum (DV), o Papa refere:
“No Concílio, os Padres não podiam encontrar
afirmação sintética mais feliz para expressar a natureza e missão da Igreja.
Não só na ‘doutrina’, mas também na ‘vida’ e no ‘culto’, é oferecida aos
crentes a capacidade de ser Povo de Deus. Com uma sequência evolutiva de
verbos, a Constituição dogmática sobre a Divina Revelação exprime a dinâmica
resultante do processo: ‘esta Tradição progride (…), cresce (…), tende
continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se
realizem as palavras de Deus’.”.
Depois, diz que “a Tradição é uma realidade viva; e somente
uma visão parcial pode conceber o ‘depósito da fé’ como algo de estático”.
Assim, “a Palavra de Deus não pode ser conservada em naftalina, como se se
tratasse de uma velha coberta que é preciso proteger da traça!”. É, antes, “uma realidade dinâmica, sempre viva, que
progride e cresce, porque tende para uma perfeição que os homens não podem
deter” – segundo a lei do progresso na fórmula de São Vicente de Lérins: ‘annis
consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate’ (fortalece-se com o decorrer dos anos,
cresce com o andar dos tempos, desenvolve-se através das idades).
Ademais,
segundo o Pontífice, “não se pode conservar a doutrina sem a fazer
progredir, nem se pode prendê-la a uma leitura rígida e imutável, sem humilhar
a ação do Espírito Santo”, pois “Deus que, ‘muitas vezes e de muitos
modos, falou aos nossos pais, nos tempos antigos’ (Heb 1, 1), ‘dialoga
sem interrupção com a esposa do seu amado Filho’ (DV,8).”.
***
Por seu
turno, a mencionada Carta aos Bispos da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), vem desenvolver os principais pontos dos ensinamentos de
Francisco sobre esta matéria fazendo o enquadramento mais pormenorizado sobre a
evolução da Igreja nesta área, pinçando algumas declarações de Pontífices
anteriores e explicitando a relevância da nova redação do CIC.
Assim, duma
posição de aceitação da pena capital como “instrumento aceitável para a
proteção do bem comum”, passa-se à sua rejeição em absoluto em nome da
dignidade da pessoa, que “não se perde nem mesmo depois de ter cometido crimes
gravíssimos”, até porque se aprofundou o “sentido das sanções penais aplicadas
pelo Estado e o desenvolvimento dos sistemas de detenção mais eficazes que
garantem a indispensável defesa dos cidadãos”.
Depois, vem a
referência à Carta encíclica Evangelium vitae, de João Paulo II (publicada em 1995, já depôs do CIC), em que o Pontífice polaco “incluiu
entre os sinais de esperança de uma nova civilização da vida ‘a aversão cada
vez mais difusa na opinião pública à pena de morte, mesmo vista só como
instrumento de legítima defesa” social, tendo em consideração as possibilidades
que uma sociedade moderna dispõe para reprimir eficazmente o crime, de forma
que, enquanto torna inofensivo quem o cometeu, “não lhe tira definitivamente a
possibilidade de se redimir”. E interveio em outras ocasiões contra a pena
de morte, apelando seja em relação ao respeito à dignidade da pessoa seja quanto
aos meios que a sociedade possui hoje para se defender do criminoso. Assim,
na Mensagem natalícia de 1998, ele esperava “no mundo o consenso
quanto a medidas urgentes e adequadas … para acabar com a pena de morte”. E,
no mês seguinte, nos Estados Unidos, reiterou:
“Um
sinal de esperança é constituído pelo crescente reconhecimento de que a
dignidade da vida humana nunca deve ser negada, nem sequer a quem praticou o
mal. A sociedade moderna possui os instrumentos para se proteger, sem negar de
modo definitivo aos criminosos a possibilidade de se redimirem. Renovo o apelo
lançado no Natal, a fim de que se decida abolir a pena de morte, que é cruel e
inútil.”.
O esforço de
compromisso com a abolição da pena de morte continuou. Bento XVI chamou “a
atenção dos responsáveis da sociedade para a necessidade de fazerem todo o
possível a fim de se chegar à eliminação da pena capital” (Exort. Apost. Pós-Sinodal Africae
múnus -19 de novembro de 2011, n. 83). E sucessivamente desejou a um grupo de fiéis
que a “suas deliberações possam encorajar as iniciativas políticas e
legislativas, promovidas em um número crescente de países, a eliminar a pena de
morte e continuar os progressos substanciais realizados para adequar a lei
penal tanto às exigências da dignidade humana dos prisioneiros quanto à efetiva
manutenção da ordem pública” (Audiência geral – 30 de novembro de
2011).
Agora,
Francisco reitera que “hoje a pena de morte é inadmissível, por mais grave que
seja o delito do condenado”, pois independentemente das modalidades da sua
execução, “implica um tratamento cruel, desumano e degradante”. Refere
que deve ser ainda recusada “por causa da seletividade defeituosa do sistema
penal e da possibilidade de erro judicial”. É neste horizonte que o Papa pediu
uma revisão da formulação do CIC no atinente à pena de morte, de modo que se afirme, como foi
referido, que “por muito grave que possa ter sido o delito cometido, a pena de
morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da
pessoa”.
Assim, a nova
redação do n.º 2267 do CIC,
aprovada por Francisco, situa-se em continuidade com o Magistério anterior,
levando por diante um desenvolvimento coerente da doutrina católica. Por
outro lado, visto que a sociedade de hoje possui sistemas de detenção mais
eficazes, a pena de morte é desnecessária como proteção da vida de pessoas
inocentes. Todavia, é de ter em conta que “permanece o dever do poder público de
defender a vida dos cidadãos, como sempre foi ensinado pelo Magistério e
confirmado pelo CIC nos
números 2265 e 2266.
Tudo isso
mostra que a nova formulação do n.º 2267 do Catecismo, segundo a CDF, “expressa
um autêntico desenvolvimento da doutrina, que não está em contradição com os
ensinamentos anteriores do Magistério”, pois tais ensinamentos são explicáveis “à
luz da responsabilidade primária do poder público em tutelar o bem comum, num
contexto social em que as sanções penais eram compreendidas diversamente e se
davam num ambiente em que era mais difícil garantir que o criminoso não pudesse
repetir o seu crime”.
A nova
redação acrescenta que a conscientização sobre a inadmissibilidade da pena de
morte cresceu “à luz do Evangelho”. Com efeito, “o Evangelho ajuda a
compreender melhor a ordem da criação que o Filho de Deus assumiu, purificou e
levou à plenitude” e convida-nos “à misericórdia e à paciência do Senhor, que a
todos oferece tempo para se converterem”.
Por fim, a
Carta diz que “a nova formulação do n.º 2267 do CIC quer
impulsionar um firme compromisso, também através de um diálogo respeitoso com
as autoridades políticas, a fim que seja fomentada uma mentalidade que
reconheça a dignidade de toda vida humana e sejam criadas as condições que
permitam eliminar hoje o instituto jurídico da pena de morte onde ainda está em
vigor”.
***
Vamos lá
saudando a Igreja Católica por esta medida e lutemos contra o crime e pela
defesa da vida humana!
2018.08.02 –
Louro de Carvalho
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