sexta-feira, 10 de agosto de 2018

A vida sobrepõe-se a todos os direitos, liberdades e garantias pessoais


O enunciado em epígrafe funcionou como subtexto na medida de polícia assumida pela GNR em relação à evacuação de significativos setores populacionais ameaçados pelas labaredas e pelo fumo causados pelos incêndios florestais e rurais, com destaque para a serra de Monchique.
É natural que as pessoas com recomendação ou mesmo ordem de evacuação ofereçam resistência e as entidades policiais tenham de utilizar a pedagogia adequada e eventualmente a força, desde que proporcionada.
Entretanto, pessoas houve com responsabilidade na formação e direção da opinião pública que instigaram publicamente em nome do direito à resistência consagrado pelo art.º 21.º da CRP (Constituição da República Portuguesa). Por isso, o Primeiro-Ministro veio a público acusar de irresponsabilidade aqueles que aconselharam as pessoas a desobedecer às autoridades – o que foi replicado ultimamente pelo Ministro da Administração Interna, que vê nesse instigamento um crime. A este respeito, António Costa sustentou:
Gostaria de insistir muito que é essencial para a preservação da vida humana, para diminuirmos o risco de acidentes pessoais, que todos sigam as instruções das autoridades. As autoridades, quando apelam à evacuação, não estão a violar a Constituição, nem a lei; estão a assegurar o bem mais precioso que existe, que é a vida.”.
E sublinhou:
É absolutamente irresponsável qualquer tipo de apelo para que as populações não sigam estas indicações”.
Também a Proteção Civil emitiu um apelo às pessoas da zona de entre Silves e São Bartolomeu de Messines e a sul de São Marcos da Serra para que sigam as indicações das autoridades: 
Devido ao fumo intenso que se faz sentir, a Proteção Civil pede às pessoas que mantenham a calma, sigam as indicações das autoridades, fechem janelas e portas e se mantenham em zonas seguras”.
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Direito de resistência é o direito, afirmado de diferentes formas ao longo da história, que tem qualquer pessoa de resistir ou se insurgir contra qualquer fator que ameace a sua sobrevivência ou que represente uma violência a valores éticos ou morais humanistas. O direito de resistência é registado desde a China Antiga e foi usado para justificar várias rebeliões, como a Revolução Americana (guerra de Independência dos Estados Unidos) e a Revolução Francesa.
No nosso caso, o art.º 21.º da CRP estabelece:
Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.
Na atuação da GNR acima referida, não há ofensa “aos direitos, liberdades e garantias” nem se trata de repulsa de uma agressão. Trata-se, antes, de proteger o direito à vida dos cidadãos, que se sobrepõe a todos os demais direitos e liberdades consagrados constitucionalmente – pois vem à cabeça dos demais direitos, liberdades e garantias pessoais, nos seguintes termos: “A vida humana é inviolável” (CRP, art.º 24.º/1). E este implica logo um outro direito, o direito à integridade pessoal, enunciado nos termos seguintes: “a integridade moral e física das pessoas é inviolável” (CRP, art.º 25.º/1).
Mesmo a resistência à identificação pelas autoridades só é legítima no âmbito do art.º 250.º do Código do Processo Penal, como clarifica o Tribunal da Relação de Lisboa, num acórdão de 20 de abril de 2017, que decidiu:
O artigo 250.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e o artigo 1.º da Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro, na redação da Lei n.º 49/98, de 11 de agosto, não permite a identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público, conotado com o tráfico de estupefacientes, sem que sobre ela recaiam ‘fundadas suspeitas da prática de crimes’;
A identificação de pessoas, enquanto medida de polícia, prevista no artigo 28.º, n.º 1 alínea a), da Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto), para além de estar densificada nos seus pressupostos e condições de aplicação no artigo 250.º do Código de Processo Penal, está sujeita, como as demais, ao princípio da necessidade, previsto no artigo 30.º da Lei de Segurança Interna, o qual dimana do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa;
Para se proceder à identificação de uma pessoa não basta que o local público em que a mesma se encontra seja um ‘local sensível’. Este conceito não foi assumido pelo legislador, já que o mesmo se basta com o local ser público, exigindo, contudo, que existam fundadas suspeitas sobre essa pessoa da prática de crimes;
A detenção de uma pessoa para identificação fora do contexto do artigo 250.º do Código de Processo Penal confere à mesma o direito de resistência, consagrado no artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, fora das ações específicas de prevenção criminal em matéria de controlo de armas, a utilização da medida de polícia de identificação apenas pode ser materializada quando “tal se revele necessário” e desde que haja “fundada suspeita da prática de crime”.
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Ora, em caso de risco para a vida das populações, como é o caso dos incêndios, terramotos, inundações e outros cataclismos, as forças da ordem – e aqueles sobre quem impende o dever de cooperação pública – têm um conjunto de obrigações, que são priorizadas do seguinte modo: as vidas humanas, os haveres essenciais e o ambiente.   
Este enunciado decorre da priorização constitucional dos direitos, liberdades e garantias pessoais, como foi dito, e pela leitura do art.º 272.º da CRP, que estabelece: 
1. A polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2. As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário.
3. A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4. A lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.
 Deste articulado importa sublinhar a função de “defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”, obviamente a começar pelos direitos prioritários. Como diz o povo, em tempo de guerra não se limpam armas. E a guerra caprichosa dos incêndios e de outros cataclismos impõe a garantia da vida até ao limite. 
Como refere o n.º 2 do artigo acima transcrito, “as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário”.
Vejamos, pois, o que estabelece, neste âmbito, a Lei de Segurança Interna, aprovada pela Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, cuja última redação lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 49/2017, de 24 de maio. Transcreve-se o seu art.º 28.º (Medidas de polícia):
1. São medidas de polícia:
a) A identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial;
b) A interdição temporária de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea;
c) A evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte.
2. Considera-se também medida de polícia a remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em condições de segurança.
Como é evidente, neste caso, interessa fixar a alínea c) do n.º 1, “a evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte”, bem como o estabelecido no n.º 2, atinente à “remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em condições de segurança”.
Por outro lado, a Lei de Bases da Proteção Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, cuja última redação lhe foi dada pela Lei n.º 80/2015, de 3 de agosto, no seu art.º 6.º estabelece os deveres gerais e especiais nos termos seguintes:
1. Os cidadãos e demais entidades privadas têm o dever de colaborar na prossecução dos fins da proteção civil, observando as disposições preventivas das leis e regulamentos, acatando ordens, instruções e conselhos dos órgãos e agentes responsáveis pela segurança interna e pela proteção civil e satisfazendo prontamente as solicitações que justificadamente lhes sejam feitas pelas entidades competentes. 
2. Os funcionários e agentes do Estado e das pessoas coletivas de direito público, bem como os membros dos órgãos de gestão das empresas públicas, têm o dever especial de colaboração com os organismos de proteção civil. 
3. Os responsáveis pela administração, direção ou chefia de empresas privadas cuja laboração, pela natureza da sua atividade, esteja sujeita a qualquer forma específica de licenciamento têm, igualmente, o dever especial de colaboração com os órgãos e agentes de proteção civil. 
4. A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo. 
5. A violação do dever especial previsto nos n.os 2 e 3 implica, consoante os casos, responsabilidade criminal e disciplinar, nos termos da lei.
Embora distribuída a matéria por cinco números, pode sintetizar-se no seguinte: dever de cooperação dos cidadãos e demais entidades privadas acatando prontamente regulamentos e ordens das autoridades da segurança interna e da proteção civil; o dever de cooperação por parte dos funcionários do Estado e dirigentes das empresas públicas, bem como, na parte que lhes diga respeito e lhes seja possível, o dever de cooperação por parte dos responsáveis pela administração, direção ou chefia de empresas privadas cuja laboração esteja sujeita a qualquer forma específica de licenciamento; a cominação com as penas tipificadas na lei, com agravamento, em caso de desobediência em situação de alerta, contingência ou calamidade, bem como a penalização específica (em resultado da responsabilização criminal e/ou disciplinar) em caso de não cumprimento dos deveres especiais por parte daqueles a quem incumbem.     
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Ora, invocando a CRP e as duas leis acabadas de referir, veio a terreiro um constitucionalista e dois juízes esclarecer o alcance das medidas de polícia e de proteção civil aplicáveis no caso do incêndio de Monchique, sobretudo no atinente à ordem de evacuação de pessoas 
Assim, Paulo Otero (constitucionalista e catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) compreende a “angústia das pessoas” obrigadas pela GNR a sair de casa, deixando para trás bens, animais e tudo o que juntaram. Mas frisa a prevalência do “valor da vida”. Por isso, a intervenção das autoridades ante “um cenário de grave risco tem que estar centrada em salvaguardar vidas em detrimento de bens”, podendo “até usar a força, adequada e proporcional”, caso haja resistência. Admite, assim, que, em situações de emergência, a polícia pode usar a força “apesar de ser sempre uma situação muito difícil”, até porque, “num caso desta natureza as pessoas podem estar e choque, não terem consciência do perigo que correm”.
Por seu turno, escudando-se na CRP (art.º 272.º), na Lei de Bases da Proteção Civil (art.º 6.º) e na lei de Segurança Interna (art.º 28.º), que balizam estas medidas das autoridades, o desembargador Manuel Ramos Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, que concorda com Paulo Otero quanto às autoridades poderem usar a força, frisa:
Na hierarquia de valores consagrados constitucionalmente, o valor vida está sempre primeiro, mais que o direito à habitação ou à propriedade. […] Até porque, a lei de bases da Proteção Civil é muito clara quanto ao dever dos cidadãos em colaborar com as autoridades e obedecer-lhes em situações de risco.”.
E acentua que “admitir que uma pessoa tem direito a ficar em sua casa e, eventualmente, morrer, seria uma forma de eutanásia que nem o BE permite”.
Alinhado com estes, o juiz conselheiro Mário Mendes (presidente da Comissão para a Indemnização das Vítimas de Incêndios e ex-secretário-geral do Sistema de Segurança Interna) sublinha:
A própria Constituição da República Portuguesa diz que as autoridades têm obrigação da proteção pública dos direitos fundamentais (art.º 272.º). Quando as autoridades entendem que há uma situação de risco devem adotar as medidas necessárias para a proteção da integridade física dos cidadãos.”.
Segundo este magistrado, não cabe, neste caso, às pessoas o direito de resistir. Com efeito, o direito à resistência está consagrado na lei para os casos de abuso de autoridade, quando um cidadão entende que a polícia está a atuar violando os seus direitos. Mas não é este o caso. E “quem não acatar as ordens num caso destes incorre simplesmente num crime de desobediência”. E chama a atenção para o facto de, “em situações de calamidade as pessoas” não estarem “ totalmente em condições de avaliar o risco”, tendo de haver “alguém que tome as decisões por elas”.
O desembargador Manuel Ramos Soares, concordando que, “em situações de calamidade as pessoas não estão totalmente em condições de avaliar o risco e tem de haver alguém que tome as decisões por elas”, também entende que “as pessoas não têm o direito de ficar nas suas casas em situações destas” e lembra que “o crime de desobediência terá até pena agravada”, em conformidade com a Lei de Proteção Civil.
No entanto, Paulo Otero, concordando com a penalização em caso de incumprimento do dever de colaboração por parte das entidades indicadas na Lei da Proteção Civil, acha, contudo, “desumano” criminalizar os cidadãos por desobediência numa situação desta natureza, embora concorde igualmente que o “uso da força será admissível”. Assim, para os casos de pessoas que se escondem das autoridades para ficarem nas suas casas crendo que as podem salvar, o constitucionalista diz que “deve haver uma desculpabilidade de conduta”. Na verdade, está em causa a conexão “entre o direito e a humanidade da aplicação do direito”, pelo que vem a talho de foice sublinhar que “o direito existe para o ser humano e não o ser humano para o direito”, em analogia com o que Jesus Cristo dizia do sábado: “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27).
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Em suma, a Constituição e as leis fazem prevalecer o valor da vida, em torno do qual as autoridades devem tomar as medidas adequadas e utilizar os meios proporcionados em situações de alerta, calamidade ou emergência. Cabe aos cidadãos acatar as ordens dadas com o suficiente de humanidade e de firmeza e àqueles que têm a obrigação de colaborar fazê-lo de forma pronta e racional. Punam-se efetivamente os que não colaborarem na justa medida das suas condições, mas não se castiguem (embora sejam forçados a obedecer) os cidadãos que tentem subtrair-se às ordens das autoridades por lamentarem a perda de casa, animais e outros haveres.
Conjugue-se, quanto possível, lei e compreensão. Mas não venha ninguém instigar ao não acatamento das ordens das autoridades!
2018.08.10 – Louro de Carvalho

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