O enunciado em epígrafe funcionou como subtexto
na medida de polícia assumida pela GNR em relação à evacuação de significativos
setores populacionais ameaçados pelas labaredas e pelo fumo causados pelos incêndios
florestais e rurais, com destaque para a serra de Monchique.
É natural que as pessoas com recomendação ou
mesmo ordem de evacuação ofereçam resistência e as entidades policiais tenham
de utilizar a pedagogia adequada e eventualmente a força, desde que
proporcionada.
Entretanto, pessoas houve com responsabilidade na
formação e direção da opinião pública que instigaram publicamente em nome do
direito à resistência consagrado pelo art.º 21.º da CRP (Constituição da República Portuguesa).
Por isso, o Primeiro-Ministro veio a público acusar de irresponsabilidade
aqueles que aconselharam as pessoas a desobedecer às autoridades – o que foi
replicado ultimamente pelo Ministro da Administração Interna, que vê nesse
instigamento um crime. A este respeito, António Costa sustentou:
“Gostaria de insistir muito que é essencial para a preservação da vida
humana, para diminuirmos o risco de acidentes pessoais, que todos sigam as
instruções das autoridades. As autoridades, quando apelam à evacuação, não
estão a violar a Constituição, nem a lei; estão a assegurar o bem mais precioso
que existe, que é a vida.”.
E sublinhou:
“É absolutamente irresponsável qualquer tipo de apelo para que as
populações não sigam estas indicações”.
Também a
Proteção Civil emitiu um apelo às pessoas da zona de entre Silves e São
Bartolomeu de Messines e a sul de São Marcos da Serra para que sigam as
indicações das autoridades:
“Devido
ao fumo intenso que se faz sentir, a Proteção Civil pede às pessoas que
mantenham a calma, sigam as indicações das autoridades, fechem janelas e portas
e se mantenham em zonas seguras”.
***
O Direito de
resistência é o direito, afirmado de diferentes formas ao longo da
história, que tem qualquer pessoa de resistir ou se insurgir contra qualquer
fator que ameace a sua sobrevivência ou que represente uma violência a valores
éticos ou morais humanistas. O direito de resistência é registado desde
a China Antiga e foi usado para justificar várias rebeliões, como a
Revolução Americana (guerra de Independência
dos Estados Unidos) e a Revolução Francesa.
No nosso caso, o art.º 21.º da CRP estabelece:
“Todos têm o direito de resistir a qualquer
ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela
força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.
Na atuação da GNR acima referida, não há ofensa
“aos direitos, liberdades e garantias” nem se trata de repulsa de uma agressão.
Trata-se, antes, de proteger o direito à vida dos cidadãos, que se sobrepõe a
todos os demais direitos e liberdades consagrados constitucionalmente – pois
vem à cabeça dos demais direitos, liberdades e garantias pessoais, nos
seguintes termos: “A vida humana é inviolável” (CRP, art.º 24.º/1). E este implica logo
um outro direito, o direito à integridade pessoal, enunciado nos termos
seguintes: “a integridade
moral e física das pessoas é inviolável” (CRP, art.º 25.º/1).
Mesmo a resistência à identificação pelas
autoridades só é legítima no âmbito do art.º 250.º do Código do Processo Penal,
como clarifica o Tribunal da Relação de Lisboa, num acórdão de 20 de abril de
2017, que decidiu:
“O
artigo 250.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e o artigo 1.º da Lei n.º
5/95, de 21 de fevereiro, na redação da Lei n.º 49/98, de 11 de agosto, não
permite a identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público,
conotado com o tráfico de estupefacientes, sem que sobre ela recaiam ‘fundadas
suspeitas da prática de crimes’;
A identificação
de pessoas, enquanto medida de polícia, prevista no artigo 28.º, n.º 1 alínea
a), da Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto), para além
de estar densificada nos seus pressupostos e condições de aplicação no artigo
250.º do Código de Processo Penal, está sujeita, como as demais, ao princípio
da necessidade, previsto no artigo 30.º da Lei de Segurança Interna, o qual
dimana do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa;
Para se
proceder à identificação de uma pessoa não basta que o local público em que a
mesma se encontra seja um ‘local sensível’. Este conceito não foi assumido pelo
legislador, já que o mesmo se basta com o local ser público, exigindo, contudo,
que existam fundadas suspeitas sobre essa pessoa da prática de crimes;
A detenção de
uma pessoa para identificação fora do contexto do artigo 250.º do Código de
Processo Penal confere à mesma o direito de resistência, consagrado no artigo
21.º da Constituição da República Portuguesa.”
Por isso, fora das ações específicas de prevenção
criminal em matéria de controlo de armas, a utilização da medida de polícia de
identificação apenas pode ser materializada quando “tal se revele necessário”
e desde que haja “fundada suspeita da prática de crime”.
***
Ora, em caso de risco para a vida das populações,
como é o caso dos incêndios, terramotos, inundações e outros cataclismos, as
forças da ordem – e aqueles sobre quem impende o dever de cooperação pública –
têm um conjunto de obrigações, que são priorizadas do seguinte modo: as vidas
humanas, os haveres essenciais e o ambiente.
Este enunciado decorre da priorização
constitucional dos direitos, liberdades e garantias pessoais, como foi dito, e
pela leitura do art.º 272.º da CRP, que estabelece:
1. A
polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a
segurança interna e os direitos dos cidadãos.
2. As
medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para
além do estritamente necessário.
3. A
prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só
pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito
pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
4. A
lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma
delas única para todo o território nacional.
Deste articulado importa sublinhar a função de
“defender a legalidade democrática e
garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”, obviamente a
começar pelos direitos prioritários. Como diz o povo, em tempo de guerra não se
limpam armas. E a guerra caprichosa dos incêndios e de outros cataclismos impõe
a garantia da vida até ao limite.
Como refere o n.º 2 do artigo acima transcrito, “as medidas de
polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do
estritamente necessário”.
Vejamos,
pois, o que estabelece, neste âmbito, a Lei
de Segurança Interna, aprovada pela Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, cuja
última redação lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 49/2017, de 24 de maio.
Transcreve-se o seu art.º 28.º (Medidas
de polícia):
1. São medidas de polícia:
a) A identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial;
b) A interdição temporária de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea;
c) A evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte.
2. Considera-se também medida de polícia a remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em condições de segurança.
a) A identificação de pessoas suspeitas que se encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial;
b) A interdição temporária de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea;
c) A evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte.
2. Considera-se também medida de polícia a remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em condições de segurança.
Como é evidente, neste caso, interessa fixar a
alínea c) do n.º 1, “a
evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte”, bem como o estabelecido no n.º
2, atinente à “remoção de objetos,
veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que
impeçam ou condicionem a passagem para garantir a liberdade de circulação em
condições de segurança”.
Por
outro lado, a Lei de Bases da Proteção
Civil, aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, cuja última redação
lhe foi dada pela Lei n.º 80/2015, de 3 de agosto, no seu art.º 6.º estabelece
os deveres gerais e especiais nos
termos seguintes:
1. Os cidadãos
e demais entidades privadas têm o dever de colaborar na prossecução dos fins da
proteção civil, observando as disposições preventivas das leis e regulamentos,
acatando ordens, instruções e conselhos dos órgãos e agentes responsáveis pela
segurança interna e pela proteção civil e satisfazendo prontamente as solicitações
que justificadamente lhes sejam feitas pelas entidades competentes.
2. Os
funcionários e agentes do Estado e das pessoas coletivas de direito público,
bem como os membros dos órgãos de gestão das empresas públicas, têm o dever
especial de colaboração com os organismos de proteção civil.
3. Os
responsáveis pela administração, direção ou chefia de empresas privadas cuja
laboração, pela natureza da sua atividade, esteja sujeita a qualquer forma
específica de licenciamento têm, igualmente, o dever especial de colaboração
com os órgãos e agentes de proteção civil.
4. A
desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes,
quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são
sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas
em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.
5. A
violação do dever especial previsto nos n.os 2 e 3 implica,
consoante os casos, responsabilidade criminal e disciplinar, nos termos da lei.
Embora
distribuída a matéria por cinco números, pode sintetizar-se no seguinte: dever
de cooperação dos cidadãos e demais entidades privadas acatando prontamente
regulamentos e ordens das autoridades da segurança interna e da proteção civil;
o dever de cooperação por parte dos funcionários do Estado e dirigentes das
empresas públicas, bem como, na parte que lhes diga respeito e lhes seja
possível, o dever de cooperação por parte dos responsáveis pela administração, direção ou chefia de empresas privadas
cuja laboração esteja sujeita a qualquer forma específica de licenciamento; a cominação com as penas
tipificadas na lei, com agravamento, em caso de desobediência em situação de alerta, contingência ou calamidade, bem
como a penalização específica (em resultado da responsabilização criminal e/ou
disciplinar) em caso de
não cumprimento dos deveres especiais por parte daqueles a quem incumbem.
***
Ora,
invocando a CRP e as duas leis acabadas de referir, veio a terreiro um
constitucionalista e dois juízes esclarecer o alcance das medidas de polícia e
de proteção civil aplicáveis no caso do incêndio de Monchique, sobretudo no
atinente à ordem de evacuação de pessoas
Assim, Paulo
Otero (constitucionalista
e catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) compreende a “angústia das pessoas” obrigadas pela
GNR a sair de casa, deixando para trás bens, animais e tudo o que juntaram. Mas
frisa a prevalência do “valor da vida”. Por isso, a intervenção das autoridades
ante “um cenário de grave risco tem que estar centrada em salvaguardar vidas em
detrimento de bens”, podendo “até usar
a força, adequada e proporcional”, caso haja resistência. Admite, assim,
que, em situações de emergência, a polícia pode usar a força “apesar de ser
sempre uma situação muito difícil”, até porque, “num caso desta natureza as
pessoas podem estar e choque, não terem consciência do perigo que correm”.
Por seu turno,
escudando-se na CRP (art.º 272.º), na Lei de
Bases da Proteção Civil (art.º 6.º) e na lei
de Segurança Interna (art.º 28.º), que
balizam estas medidas das autoridades, o desembargador Manuel Ramos Soares,
presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, que concorda com
Paulo Otero quanto às autoridades poderem usar a força, frisa:
“Na hierarquia de valores consagrados constitucionalmente, o valor vida
está sempre primeiro, mais que o direito à habitação ou à propriedade. […] Até
porque, a lei de bases da Proteção Civil é muito clara quanto ao dever dos
cidadãos em colaborar com as autoridades e obedecer-lhes em situações de risco.”.
E acentua que “admitir que uma pessoa tem direito a ficar em sua casa e,
eventualmente, morrer, seria uma forma de eutanásia que nem o BE permite”.
Alinhado com
estes, o juiz conselheiro Mário Mendes (presidente da Comissão para a
Indemnização das Vítimas de Incêndios e ex-secretário-geral do Sistema de
Segurança Interna) sublinha:
“A própria Constituição da República Portuguesa diz que as autoridades
têm obrigação da proteção pública dos direitos fundamentais (art.º 272.º).
Quando as autoridades entendem que há uma situação de risco devem adotar as
medidas necessárias para a proteção da integridade física dos cidadãos.”.
Segundo este
magistrado, não cabe, neste caso, às pessoas o direito de resistir. Com efeito, o direito à
resistência está consagrado na lei para os casos de abuso de autoridade,
quando um cidadão entende que a polícia está a atuar violando os seus direitos.
Mas não é este o caso. E “quem não acatar as ordens num caso destes incorre
simplesmente num crime de desobediência”. E chama a atenção para o facto de, “em situações de calamidade as pessoas” não
estarem “ totalmente em condições de avaliar o risco”, tendo de haver “alguém
que tome as decisões por elas”.
O
desembargador Manuel Ramos Soares, concordando que, “em situações de calamidade
as pessoas não estão totalmente em condições de avaliar o risco e tem de haver
alguém que tome as decisões por elas”, também entende que “as pessoas não têm o
direito de ficar nas suas casas em situações destas” e lembra que “o crime de
desobediência terá até pena agravada”, em conformidade com a Lei de Proteção
Civil.
No entanto, Paulo Otero, concordando com a penalização em caso de
incumprimento do dever de colaboração por parte das entidades indicadas na Lei
da Proteção Civil, acha, contudo, “desumano” criminalizar os cidadãos por
desobediência numa situação desta natureza, embora concorde
igualmente que o “uso da força será admissível”. Assim, para os casos de
pessoas que se escondem das autoridades para ficarem nas suas casas crendo que
as podem salvar, o constitucionalista diz que “deve haver uma desculpabilidade de conduta”. Na verdade, está em
causa a conexão “entre o direito e a humanidade da aplicação do direito”, pelo
que vem a talho de foice sublinhar que “o direito existe para o ser humano e não
o ser humano para o direito”, em analogia com o que Jesus Cristo dizia do sábado:
“o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado”
(Mc 2,27).
***
Em suma,
a Constituição e as leis fazem prevalecer o valor da vida, em torno do qual as
autoridades devem tomar as medidas adequadas e utilizar os meios proporcionados
em situações de alerta, calamidade ou emergência. Cabe aos cidadãos acatar as
ordens dadas com o suficiente de humanidade e de firmeza e àqueles que têm a
obrigação de colaborar fazê-lo de forma pronta e racional. Punam-se
efetivamente os que não colaborarem na justa medida das suas condições, mas não
se castiguem (embora sejam forçados a obedecer) os cidadãos que tentem
subtrair-se às ordens das autoridades por lamentarem a perda de casa, animais e
outros haveres.
Conjugue-se,
quanto possível, lei e compreensão. Mas não venha ninguém instigar ao não
acatamento das ordens das autoridades!
2018.08.10 –
Louro de Carvalho
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