O Público de hoje, 14 de agosto, a páginas 10, ostenta um texto de Clara
Viana subordinado ao título “Ensino
profissional perde um terço dos seus alunos mais frágeis”, com destaque
para a informação de que aqueles que sofreram mais retenções no básico
continuam a ter mais insucesso no ensino profissional. E, citando, Joaquim
Azevedo, aponta uma razão: escolas “não
sabem lidar com crianças que tiveram percursos muito conturbados”.
A jornalista cruza informação
factual baseada num novo estudo sobre o ensino profissional, divulgado pela
DGEEC (Direção-Geral
de Estatísticas da Educação e Ciência),
com os juízos de valor recolhidos junto do investigador da UCP-Porto (Centro
Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa).
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É de recordar que a revolução
abrilina – com o intuito de banir a discriminação socioeconómica emergente
entre os alunos que frequentavam o ensino liceal, supostamente com melhores
condições socioeconómicas ou de nascimento e com mais possibilidades de
ascensão ao ensino universitário, e os que frequentavam o ensino técnico (comercial
e industrial), mais
débeis do ponto de vista económico e social, em geral sem grandes hipóteses de
ingresso na Universidade, ficando-se pelo emprego médio ou com acesso aos
institutos (contabilidade e administração, regência agrícola,
técnicos médios de comércio, mecânica e indústria, teatro, dança, conservatórios
de música, etc.) –
criou o chamado ensino unificado. E fê-lo com base na experiência iniciada por
Veiga Simão a partir da Lei n.º 5/73, de 25 julho, unificando o CPES (Ciclo
Preparatório do Ensino Secundário)
e criando os 3.º, 4.º e 5.º anos do ensino básico experimental. Ainda dei aulas
nesses cursos experimentais.
Depois, o Ministro José Augusto
Seabra, no IX Governo Constitucional, criou, pelo Despacho Normativo n.º
194-A/83, de 21 de outubro, os cursos técnico-profissionais e os curros
profissionais a ministrar após o 9.º ano de escolaridade e seguidos de estágio,
estabelecendo as normas de estruturação e funcionamento dos respectivos cursos.
Fê-lo para dar “prioridade à institucionalização
de uma estrutura de ensino profissional no ensino secundário, através de um
plano de emergência para a reorganização do ensino técnico que permita a
satisfação das necessidades do País em mão-de-obra qualificada, bem como a
prossecução de uma política de emprego para os jovens”, como se lê no preâmbulo
do dito diploma legal.
Entretanto, o Dr. Joaquim Azevedo
– ainda durante a governação educativa de Roberto Carneiro, cuja reforma criou,
pelo Decreto-lei n.º 286/89, de 29 de agosto, duas vias de formação no ensino
secundário: CSPOPES (cursos do ensino secundário
predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos) e CSPOVA (cursos
do ensino secundário predominantemente orientados para a vida ativa, que
originaram os cursos tecnológicos)
– instalou, no Porto, o GETAP (Gabinete de Educação Tecnológica,
Artística e Profissional),
de que foi diretor-geral e que deu lugar ao DES-Porto (NEP), Departamento do
Ensino Secundário – Núcleo do Ensino Profissional, de que Azevedo foi diretor e
se tornou Diretor Adjunto do Departamento do Ensino Secundário, cargo em que
lhe sucedeu o engenheiro Francisco Jacinto, quando o antigo titular passou a
Secretário de Estado dos Ensinos Básico e Secundário.
Entretanto, Decreto-lei n.º 26/89,
de 21 de janeiro, foram criadas as escolas profissionais públicas (regendo-se, em matéria das suas relações para com terceiros,
pelas normas de direito privado)
e as escolas profissionais privadas. Foi selecionada como metodologia
pedagógica preferencial a estrutura modular e a consequente avaliação modular.
Por outros termos, com base num complexo de vários módulos de natureza,
extensão e complexidade variáveis, adotava-se ao máximo a flexibilização
curricular e pragmática. Os objetivos primordiais, numa linha de inserção local
e regional, sem excluir outros, eram: facultar aos
jovens contactos com o mundo do trabalho e experiência profissional; prestar serviços diretos à comunidade, numa base de
valorização recíproca;
dotar o País dos recursos humanos de
que necessita, numa perspetiva de desenvolvimento nacional, regional e local; e preparar os jovens com vista à sua integração na vida
ativa ou ao prosseguimento de estudos numa modalidade de qualificação
profissional.
Tal regime foi aperfeiçoado pelo Decreto-lei n.º 70/93, de 10 de
março, que manteve a flexibilidade de
organização e curricular que tem caraterizado o ensino profissional, e
consolidado pelo Decreto-lei n.º 4/98, de 8 de
janeiro, reforçando as articulações, de um lado,
entre a educação escolar e a formação profissional e, do outro, entre as
organizações escolares e as instituições económicas, profissionais,
associativas, sociais e culturais.
***
O tema remete para um artigo de
Maria de Lurdes Rodrigues publicado a 31 de agosto de 2012, no Diário de Notícias. Nele a ex-Ministra
da Educação considera erro a ideia de obrigar os alunos com fracas classificações
à frequência de cursos profissionais. Com efeito, o insucesso escolar “só pode
ser combatido com mais tempo de trabalho e de estudo”, o que exige muito dos
professores, das escolas e dos pais. Obrigar alunos com notas fracas a
frequentar um curso profissional desobriga, segundo a investigadora, “as
escolas, os professores e as famílias do esforço de ensinar a todos os alunos
as matérias básicas necessárias e mínimas para uma cidadania plena”, dando à
escola o errado “sinal de que se pode desistir de alguns jovens” e “de que não
vale a pena o esforço de tentar recuperar o insucesso com mais trabalho”, e aos
alunos o sinal de que “não é obrigatório estudar, podem antes ir de castigo
aprender uma profissão”.
Depois, desvaloriza-se o ensino
profissional e as profissões, com o anátema do castigo. E discorre do alto da
sua cátedra de ex-Ministra, que também tem culpas no cartório:
“No passado,
tivemos um problema com o ensino técnico, conotado como ensino para pobres.
Demorámos muitos anos a recuperar a imagem do ensino vocacional, o que foi
conseguido ao longo de mais de 20 anos com a qualidade do trabalho realizado
pelas escolas profissionais privadas e, ultimamente, com o esforço de
desenvolvimento do ensino profissional em todas as escolas públicas. Em 2005,
apenas 12% dos alunos do ensino secundário frequentavam cursos profissionais.
Hoje são mais de 40%. Este é o melhor sinal da recuperação do prestígio e da
valorização social desta via de ensino, agora em risco com a sua anunciada
transformação em castigo.”.
Por fim, evoca “as boas práticas
internacionais”, frisando que a OCDE e a UE “recomendam, justamente, o
contrário daquilo que o Ministério da Educação pretende fazer” (era
ministro Nuno Crato).
Na verdade, aquelas instâncias internacionais “insistem na necessidade de
garantir a todos os jovens uma escolaridade básica de cidadania pelo menos até
aos 15 anos” e sustentam que “as escolhas vocacionais exigem maturidade que os
alunos não têm antes dessa idade”. Por consequência, vinca a indispensabilidade
de “continuar a diminuir o insucesso e a consolidar a rápida progressão do
ensino profissional nos últimos anos”.
***
Passados 29 anos, o balanço não é
famoso.
Assim, uma das principais
constatações do predito estudo da DGEEC é que os alunos que foram desviados, já
no ensino básico, para outras ofertas educativas, por via da acumulação de
retenções são também aqueles que menos sucesso alcançam nos cursos
profissionais do ensino secundário.
Acompanhando o percurso académico
individual de cada aluno, a DGEEC apurou a situação em 2016/2017 dos alunos
que, três anos antes, seguiram do 9.º ano do ensino básico para o ensino
profissional, já que 3 anos é o prazo normal (sem retenções –
aliás, não há a barreira-ano ou a barreira-turma) para a conclusão do curso. E descobriu que 70% dos
cerca de 30 mil alunos que chegaram ao profissional vindos do ensino básico
regular concluíram o curso em três anos, enquanto só 35,6% dos 7869 estudantes
que vieram de outras vias o conseguiram fazer; e que a percentagem dos que
abandonaram o ensino secundário sem terminar este nível de ensino sobe de 6%,
entre os primeiros, para 30%, no segundo grupo.
Para Joaquim Azevedo, que gerou e
vem acompanhando a realidade do ensino profissional, os dados ora divulgados
confirmam que “as escolas não sabem lidar com as crianças que tiveram percursos
muito conturbados durante o ensino básico” e que se continua a encarar o ensino
profissional como se este servisse “para tudo e para todos”.
No número de estudantes inscritos
no ensino profissional em 2014/2015, contam-se 5652 alunos que concluíram o 9.º
ano nos CEF (Cursos de Educação e Formação) do ensino básico, 1769 que
terminaram o 3.º ciclo nos cursos vocacionais, criados por Nuno Crato, e 448
que frequentaram turmas do ensino básico com PCA (Percursos
Curriculares Alternativos).
Estas ofertas têm em comum destinarem-se a alunos com um historial de
retenções. Com efeito, a média de idades de chegada ao ensino secundário por
parte destes alunos oscila entre 16,9 e 17,3 anos, enquanto a média de idade
dos alunos providos do ensino básico regular é de menos de 16 anos, sendo de
verificar que os primeiros acumularam mais retenções no percurso anterior que
os segundos.
Como observa Azevedo, os cursos
não regulares do ensino básico, “já em si, constituem soluções de segunda e de
terceira”, pelo que os adolescentes, que para ali foram encaminhados, depois de
os terminarem, “deveriam continuar a usufruir de alternativas curriculares
adequadas e não ser ‘remetidos’ para o ensino profissional, como se, por não
ser ‘ensino geral’, servisse para tudo e para todos!”. Na verdade, “o ensino
profissional não é um percurso mais fácil que o do ensino geral, pois requer,
por exemplo, uma clara orientação e ‘vocação’.” Porém, como acrescenta, “uma
boa parte dos alunos oriundos daqueles outros cursos do ensino básico não
reúnem condições básicas para prosseguirem estudos em ambas estas modalidades [geral
e profissional], que
são pouco flexíveis e muito rígidas”. Por isso, continuam a ter o fracasso pela
frente, pelo facto de continuar a existir “uma devoção incompreensível e comum
com o modelo curricular único e igual para todos, que arrasta imenso insucesso escolar
desnecessário”.
Não obstante, no conjunto, a percentagem
de alunos que concluiu o ensino profissional em três anos passou de 53% em 2014/2015
para 60% em 2016/2017. Mas a DGEEC aponta outras diferenças “muito
significativas”. Por exemplo, em 2016/2017, a taxa de conclusão no tempo normal
para um curso profissional na região de Lisboa (46%) ficou 21 pontos abaixo da
atingida na região Norte (67%).
E é tendencialmente maior o sucesso das raparigas, mesmo nos cursos
profissionais: 68% concluíram em três anos, quando entre os rapazes este valor
foi de 55%.
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Mais foi revelado que as classes
mais favorecidas optam pelo ensino secundário profissional apenas quando os
filhos mostram grandes dificuldades nos estudos – uma das conclusões da DGEEC
ao analisar as idades de ingresso no ensino profissional e as taxas de conclusão
em tempo normal entre alunos dos escalões A e B da ASE (Ação
Social Escolar)
comparativamente com as dos estudantes que não têm estes apoios. Assim, ao invés
do que sucede no ensino regular, os indicadores de sucesso no ensino
profissional não atingem os valores mais elevados nos alunos que não beneficiam
da ASE, mas nos que estão no escalão B”, sendo que, nos primeiros, a taxa de
conclusão em três anos é de 56%, enquanto, nos segundos, sobe para 63%. Entre
os alunos dos agregados mais desfavorecidos, do escalão A, este valor é de 52%.
Por outro lado, “a idade média de ingresso no profissional é mais alta para
alunos sem ASE (16,1) que para os do escalão B (16) – o que mostra que os primeiros
“têm mais retenções anteriores”.
Isto, em síntese, quer dizer que
os alunos de estratos elevados têm de evidenciar dificuldades escolares muito
marcadas no ensino básico para os agregados familiares optarem pela matrícula
no ensino profissional, aplicando-se-lhes o que se passa com todos os outros alunos
com um historial de retenções, ou seja, continuam a ter mais insucesso.
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Apesar da propalação da autonomia
da escola e da flexibilização curricular, também o ensino profissional sucumbiu
à tentação da uniformização e ao peso da burocracia, como se vê pela análise duma
ficha de autoavaliação do aluno e dos parâmetros que suportam a classificação
em cada módulo e no final de trimestre. David Justino impôs um currículo único
e programático para a componente de formação sociocultural dos cursos
profissionais, bem como para a componente de formação científica dos cursos em
que ela tem as mesmas disciplinas, talvez ficando imune à uniformização a componente
de formação técnica, artística, tecnológica e profissional. E Maria de Lurdes Rodrigues
quis generalizar o ensino profissional nas escolas secundárias públicas, o que
deu folga, com a obrigatoriedade do ensino de 12 anos de escolaridade, às
consequências da rarefação da população escolar que se avizinhava, e contribuiu
para o financiamento da Educação, aliviando de encargos o ME, que desinvestiu
cada vez mais na área, ficando as escolas com o ónus da parafernália das
fotocópias (contra o manual).
Ora, esta revolução de
massificação e de codificação do ensino profissional, que passou a ser muito
pouco experimental, postulava uma formação adequada de todos os professores e formadores
que se sentiram obrigados ao ingresso no ensino profissional e aos respetivos
coordenadores, o que esteve muito aquém da colmatação deste desiderato; e
implicava o aproveitamento da experiência acumulada que alguns já detinham, muito
dos quais tiveram que se amoldar a novas indicações nada consentâneas com a
índole originária do ensino profissional.
Como a generalidade das escolas secundárias
públicas se organizava por tempos letivos de 90 e 45 minutos, com intervalos
irregulares e o ensino profissional mandava contabilizar horas, as coordenações
tiveram de criar o suplício da transformação dos 45 e 90 minutos de forma que
no fim do ano se perfizesse em cada disciplina a totalidade de horas previstas
no respetivo plano. E as escolas profissionais privadas tiveram de fazer
operação semelhante.
Da filosofia da avaliação modular
acordada entre aluno ou grupo de alunos e professor, vieram os coordenadores a
propor ao Conselho Pedagógico critérios tão bizarros como o seguinte: 50% pela frequência
do módulo e 50% pela prova de avaliação final do módulo (obrigatória).
Aos módulos em atraso passou a
aplica-se a metodologia de exame.
Não admira, pois, que este tipo
de ensino se tenha tornado pesado para as escolas e para as empresas e com
resultados muito aquém do expectável e no contexto de escola sem autoridade.
2018.08.14 – Louro de Carvalho
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