quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O panorama do ensino profissional não é famoso


O Público de hoje, 14 de agosto, a páginas 10, ostenta um texto de Clara Viana subordinado ao título “Ensino profissional perde um terço dos seus alunos mais frágeis”, com destaque para a informação de que aqueles que sofreram mais retenções no básico continuam a ter mais insucesso no ensino profissional. E, citando, Joaquim Azevedo, aponta uma razão: escolas “não sabem lidar com crianças que tiveram percursos muito conturbados”.
A jornalista cruza informação factual baseada num novo estudo sobre o ensino profissional, divulgado pela DGEEC (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), com os juízos de valor recolhidos junto do investigador da UCP-Porto (Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa).
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É de recordar que a revolução abrilina – com o intuito de banir a discriminação socioeconómica emergente entre os alunos que frequentavam o ensino liceal, supostamente com melhores condições socioeconómicas ou de nascimento e com mais possibilidades de ascensão ao ensino universitário, e os que frequentavam o ensino técnico (comercial e industrial), mais débeis do ponto de vista económico e social, em geral sem grandes hipóteses de ingresso na Universidade, ficando-se pelo emprego médio ou com acesso aos institutos (contabilidade e administração, regência agrícola, técnicos médios de comércio, mecânica e indústria, teatro, dança, conservatórios de música, etc.) – criou o chamado ensino unificado. E fê-lo com base na experiência iniciada por Veiga Simão a partir da Lei n.º 5/73, de 25 julho, unificando o CPES (Ciclo Preparatório do Ensino Secundário) e criando os 3.º, 4.º e 5.º anos do ensino básico experimental. Ainda dei aulas nesses cursos experimentais.    
Depois, o Ministro José Augusto Seabra, no IX Governo Constitucional, criou, pelo Despacho Normativo n.º 194-A/83, de 21 de outubro, os cursos técnico-profissionais e os curros profissionais a ministrar após o 9.º ano de escolaridade e seguidos de estágio, estabelecendo as normas de estruturação e funcionamento dos respectivos cursos. Fê-lo para dar “prioridade à institucionalização de uma estrutura de ensino profissional no ensino secundário, através de um plano de emergência para a reorganização do ensino técnico que permita a satisfação das necessidades do País em mão-de-obra qualificada, bem como a prossecução de uma política de emprego para os jovens”, como se lê no preâmbulo do dito diploma legal. 
Entretanto, o Dr. Joaquim Azevedo – ainda durante a governação educativa de Roberto Carneiro, cuja reforma criou, pelo Decreto-lei n.º 286/89, de 29 de agosto, duas vias de formação no ensino secundário: CSPOPES (cursos do ensino secundário predominantemente orientados para o prosseguimento de estudos) e CSPOVA (cursos do ensino secundário predominantemente orientados para a vida ativa, que originaram os cursos tecnológicos) – instalou, no Porto, o GETAP (Gabinete de Educação Tecnológica, Artística e Profissional), de que foi diretor-geral e que deu lugar ao DES-Porto (NEP), Departamento do Ensino Secundário – Núcleo do Ensino Profissional, de que Azevedo foi diretor e se tornou Diretor Adjunto do Departamento do Ensino Secundário, cargo em que lhe sucedeu o engenheiro Francisco Jacinto, quando o antigo titular passou a Secretário de Estado dos Ensinos Básico e Secundário.
Entretanto, Decreto-lei n.º 26/89, de 21 de janeiro, foram criadas as escolas profissionais públicas (regendo-se, em matéria das suas relações para com terceiros, pelas normas de direito privado) e as escolas profissionais privadas. Foi selecionada como metodologia pedagógica preferencial a estrutura modular e a consequente avaliação modular. Por outros termos, com base num complexo de vários módulos de natureza, extensão e complexidade variáveis, adotava-se ao máximo a flexibilização curricular e pragmática. Os objetivos primordiais, numa linha de inserção local e regional, sem excluir outros, eram: facultar aos jovens contactos com o mundo do trabalho e experiência profissional; prestar serviços diretos à comunidade, numa base de valorização recíproca; dotar o País dos recursos humanos de que necessita, numa perspetiva de desenvolvimento nacional, regional e local; e preparar os jovens com vista à sua integração na vida ativa ou ao prosseguimento de estudos numa modalidade de qualificação profissional.
Tal regime foi aperfeiçoado pelo Decreto-lei n.º 70/93, de 10 de março, que manteve a flexibilidade de organização e curricular que tem caraterizado o ensino profissional, e consolidado pelo Decreto-lei n.º 4/98, de 8 de janeiro, reforçando as articulações, de um lado, entre a educação escolar e a formação profissional e, do outro, entre as organizações escolares e as instituições económicas, profissionais, associativas, sociais e culturais.
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O tema remete para um artigo de Maria de Lurdes Rodrigues publicado a 31 de agosto de 2012, no Diário de Notícias. Nele a ex-Ministra da Educação considera erro a ideia de obrigar os alunos com fracas classificações à frequência de cursos profissionais. Com efeito, o insucesso escolar “só pode ser combatido com mais tempo de trabalho e de estudo”, o que exige muito dos professores, das escolas e dos pais. Obrigar alunos com notas fracas a frequentar um curso profissional desobriga, segundo a investigadora, “as escolas, os professores e as famílias do esforço de ensinar a todos os alunos as matérias básicas necessárias e mínimas para uma cidadania plena”, dando à escola o errado “sinal de que se pode desistir de alguns jovens” e “de que não vale a pena o esforço de tentar recuperar o insucesso com mais trabalho”, e aos alunos o sinal de que “não é obrigatório estudar, podem antes ir de castigo aprender uma profissão”.
Depois, desvaloriza-se o ensino profissional e as profissões, com o anátema do castigo. E discorre do alto da sua cátedra de ex-Ministra, que também tem culpas no cartório:
No passado, tivemos um problema com o ensino técnico, conotado como ensino para pobres. Demorámos muitos anos a recuperar a imagem do ensino vocacional, o que foi conseguido ao longo de mais de 20 anos com a qualidade do trabalho realizado pelas escolas profissionais privadas e, ultimamente, com o esforço de desenvolvimento do ensino profissional em todas as escolas públicas. Em 2005, apenas 12% dos alunos do ensino secundário frequentavam cursos profissionais. Hoje são mais de 40%. Este é o melhor sinal da recuperação do prestígio e da valorização social desta via de ensino, agora em risco com a sua anunciada transformação em castigo.”.
Por fim, evoca “as boas práticas internacionais”, frisando que a OCDE e a UE “recomendam, justamente, o contrário daquilo que o Ministério da Educação pretende fazer” (era ministro Nuno Crato). Na verdade, aquelas instâncias internacionais “insistem na necessidade de garantir a todos os jovens uma escolaridade básica de cidadania pelo menos até aos 15 anos” e sustentam que “as escolhas vocacionais exigem maturidade que os alunos não têm antes dessa idade”. Por consequência, vinca a indispensabilidade de “continuar a diminuir o insucesso e a consolidar a rápida progressão do ensino profissional nos últimos anos”.
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Passados 29 anos, o balanço não é famoso.
Assim, uma das principais constatações do predito estudo da DGEEC é que os alunos que foram desviados, já no ensino básico, para outras ofertas educativas, por via da acumulação de retenções são também aqueles que menos sucesso alcançam nos cursos profissionais do ensino secundário.
Acompanhando o percurso académico individual de cada aluno, a DGEEC apurou a situação em 2016/2017 dos alunos que, três anos antes, seguiram do 9.º ano do ensino básico para o ensino profissional, já que 3 anos é o prazo normal (sem retenções – aliás, não há a barreira-ano ou a barreira-turma) para a conclusão do curso. E descobriu que 70% dos cerca de 30 mil alunos que chegaram ao profissional vindos do ensino básico regular concluíram o curso em três anos, enquanto só 35,6% dos 7869 estudantes que vieram de outras vias o conseguiram fazer; e que a percentagem dos que abandonaram o ensino secundário sem terminar este nível de ensino sobe de 6%, entre os primeiros, para 30%, no segundo grupo.
Para Joaquim Azevedo, que gerou e vem acompanhando a realidade do ensino profissional, os dados ora divulgados confirmam que “as escolas não sabem lidar com as crianças que tiveram percursos muito conturbados durante o ensino básico” e que se continua a encarar o ensino profissional como se este servisse “para tudo e para todos”.
No número de estudantes inscritos no ensino profissional em 2014/2015, contam-se 5652 alunos que concluíram o 9.º ano nos CEF (Cursos de Educação e Formação) do ensino básico, 1769 que terminaram o 3.º ciclo nos cursos vocacionais, criados por Nuno Crato, e 448 que frequentaram turmas do ensino básico com PCA (Percursos Curriculares Alternativos). Estas ofertas têm em comum destinarem-se a alunos com um historial de retenções. Com efeito, a média de idades de chegada ao ensino secundário por parte destes alunos oscila entre 16,9 e 17,3 anos, enquanto a média de idade dos alunos providos do ensino básico regular é de menos de 16 anos, sendo de verificar que os primeiros acumularam mais retenções no percurso anterior que os segundos.
Como observa Azevedo, os cursos não regulares do ensino básico, “já em si, constituem soluções de segunda e de terceira”, pelo que os adolescentes, que para ali foram encaminhados, depois de os terminarem, “deveriam continuar a usufruir de alternativas curriculares adequadas e não ser ‘remetidos’ para o ensino profissional, como se, por não ser ‘ensino geral’, servisse para tudo e para todos!”. Na verdade, “o ensino profissional não é um percurso mais fácil que o do ensino geral, pois requer, por exemplo, uma clara orientação e ‘vocação’.” Porém, como acrescenta, “uma boa parte dos alunos oriundos daqueles outros cursos do ensino básico não reúnem condições básicas para prosseguirem estudos em ambas estas modalidades [geral e profissional], que são pouco flexíveis e muito rígidas”. Por isso, continuam a ter o fracasso pela frente, pelo facto de continuar a existir “uma devoção incompreensível e comum com o modelo curricular único e igual para todos, que arrasta imenso insucesso escolar desnecessário”.
Não obstante, no conjunto, a percentagem de alunos que concluiu o ensino profissional em três anos passou de 53% em 2014/2015 para 60% em 2016/2017. Mas a DGEEC aponta outras diferenças “muito significativas”. Por exemplo, em 2016/2017, a taxa de conclusão no tempo normal para um curso profissional na região de Lisboa (46%) ficou 21 pontos abaixo da atingida na região Norte (67%). E é tendencialmente maior o sucesso das raparigas, mesmo nos cursos profissionais: 68% concluíram em três anos, quando entre os rapazes este valor foi de 55%.
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Mais foi revelado que as classes mais favorecidas optam pelo ensino secundário profissional apenas quando os filhos mostram grandes dificuldades nos estudos – uma das conclusões da DGEEC ao analisar as idades de ingresso no ensino profissional e as taxas de conclusão em tempo normal entre alunos dos escalões A e B da ASE (Ação Social Escolar) comparativamente com as dos estudantes que não têm estes apoios. Assim, ao invés do que sucede no ensino regular, os indicadores de sucesso no ensino profissional não atingem os valores mais elevados nos alunos que não beneficiam da ASE, mas nos que estão no escalão B”, sendo que, nos primeiros, a taxa de conclusão em três anos é de 56%, enquanto, nos segundos, sobe para 63%. Entre os alunos dos agregados mais desfavorecidos, do escalão A, este valor é de 52%. Por outro lado, “a idade média de ingresso no profissional é mais alta para alunos sem ASE (16,1) que para os do escalão B (16) – o que mostra que os primeiros “têm mais retenções anteriores”.
Isto, em síntese, quer dizer que os alunos de estratos elevados têm de evidenciar dificuldades escolares muito marcadas no ensino básico para os agregados familiares optarem pela matrícula no ensino profissional, aplicando-se-lhes o que se passa com todos os outros alunos com um historial de retenções, ou seja, continuam a ter mais insucesso.
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Apesar da propalação da autonomia da escola e da flexibilização curricular, também o ensino profissional sucumbiu à tentação da uniformização e ao peso da burocracia, como se vê pela análise duma ficha de autoavaliação do aluno e dos parâmetros que suportam a classificação em cada módulo e no final de trimestre. David Justino impôs um currículo único e programático para a componente de formação sociocultural dos cursos profissionais, bem como para a componente de formação científica dos cursos em que ela tem as mesmas disciplinas, talvez ficando imune à uniformização a componente de formação técnica, artística, tecnológica e profissional. E Maria de Lurdes Rodrigues quis generalizar o ensino profissional nas escolas secundárias públicas, o que deu folga, com a obrigatoriedade do ensino de 12 anos de escolaridade, às consequências da rarefação da população escolar que se avizinhava, e contribuiu para o financiamento da Educação, aliviando de encargos o ME, que desinvestiu cada vez mais na área, ficando as escolas com o ónus da parafernália das fotocópias (contra o manual).
Ora, esta revolução de massificação e de codificação do ensino profissional, que passou a ser muito pouco experimental, postulava uma formação adequada de todos os professores e formadores que se sentiram obrigados ao ingresso no ensino profissional e aos respetivos coordenadores, o que esteve muito aquém da colmatação deste desiderato; e implicava o aproveitamento da experiência acumulada que alguns já detinham, muito dos quais tiveram que se amoldar a novas indicações nada consentâneas com a índole originária do ensino profissional.
Como a generalidade das escolas secundárias públicas se organizava por tempos letivos de 90 e 45 minutos, com intervalos irregulares e o ensino profissional mandava contabilizar horas, as coordenações tiveram de criar o suplício da transformação dos 45 e 90 minutos de forma que no fim do ano se perfizesse em cada disciplina a totalidade de horas previstas no respetivo plano. E as escolas profissionais privadas tiveram de fazer operação semelhante.  
Da filosofia da avaliação modular acordada entre aluno ou grupo de alunos e professor, vieram os coordenadores a propor ao Conselho Pedagógico critérios tão bizarros como o seguinte: 50% pela frequência do módulo e 50% pela prova de avaliação final do módulo (obrigatória).
Aos módulos em atraso passou a aplica-se a metodologia de exame.   
Não admira, pois, que este tipo de ensino se tenha tornado pesado para as escolas e para as empresas e com resultados muito aquém do expectável e no contexto de escola sem autoridade.
2018.08.14 – Louro de Carvalho

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