sábado, 7 de outubro de 2017

Se a culpa é das instituições ou se é das pessoas

Joana Petis publica no site do DN hoje, 7 de outubro, o teor duma conversa com Sebastião Lancastre em ambiente de refeição num restaurante da capital. Retomo-a pela pertinência das críticas, ensinamentos, perspetivas e lições de vida que encerra. 
Segundo a colunista, o fundador da Easypay - um empreendedor com ambição - estava prestes a embarcar para Zurique, em viagem de negócios convicto de que esta lhe irá mudar a vida. É caso para registar, desde logo, o poder da convicção e da concomitante da determinação.
Depois, embora inserido no mundo de negócios português em que os cavalheiros não dispensam o fato e a gravata e usam os termos adequados às supostas exigências do negócio e das pretensas relações públicas (conforme os veem assim os tratam), esta personalidade surge “em mangas de camisa, de discurso claro e riso pronto”, de modo que “é difícil olhar para o fundador da Easypay como alguém cujo trabalho está profundamente ligado ao setor financeiro”. O certo é que este homem, despido dos constrangedores formalismos sociais e negociais, não enveredou propriamente pelo negócio em que o dinheiro seja o móbil da ação, mas as tecnologias “postas ao serviço de todos nós para facilitar-nos a vida”, sobretudo no atinente aos pagamentos.
A seguir ao postergar dos formalismos, vem o culto dos talismãs que significam vida, herança, memória, símbolo, ferramenta. Assim, diz a colunista que, depois de “remexer na mochila”, o interlocutor pôs entre os dois comensais “uma pedra com pepitas de ouro, um cartão Visa e uma bitcoin”, que o “vão ajudar a contar” a sua “história”.
A sua história de vida negocial “começa na venda porta-a-porta de impressoras laser” e hoje o protagonista “dirige-se para o cantão suíço de Zug – o chamado Crypto Valley, ecossistema de tecnologias criptográficas e de blockchain”. Adverte Joana Petis que não se trata de “um filme de ficção científica”, mas do “mundo novo que ali está a nascer e onde Sebastião tem um lugar”. Entretanto, surge a analepse ou, como dizem os ingleses, o flash-back:
A família tinha uma mina em Vila Pouca de Aguiar e o pai passou ‘literalmente 12 anos debaixo da terra’ – de onde trouxe a pedra que ali temos à frente. Até que respondeu a um anúncio de jornal e entrou para a equipa que criou a Unicre, em 1974, onde trabalhou até à reforma e chegou a ocupar um lugar no board mundial – razão pela qual Sebastião diz que não nasceu num berço de ouro, mas num de plástico: ‘Toda a vida ouvi falar em cartões’. E como seria mais ou menos inevitável, ele próprio ali passou uma fase da vida.”.
Porém, foi na Xerox que começou a trabalhar e a vender máquinas nas Avenidas Novas, ao mesmo tempo que frequentava o curso de Engenharia de Sistemas. A este propósito, confessa:
Eu queria casar-me, mas estava a começar o curso – a minha namorada era 5 anos mais velha –, por isso tinha de ganhar dinheiro. E tinha imenso sucesso nas vendas, porque a licenciatura dava-me conhecimento tecnológico e a formação que tive na empresa, e que uso até hoje, era completíssima.”.
Não posso deixar de sublinhar a relevância de três coisas na vida, além da simplicidade, convicção e abandono dos formalismos desnecessários, sobretudo, se constrangedores: a capacidade de trabalho; a formação académica; e a formação na empresa. Esta deve ser uma informação preciosa para os Ministérios da Educação e da Ciência e Ensino Superior, que têm de investir muito mais na formação inicial académica e humanista dos alunos, nomeadamente dos professores (dizem as más línguas que só vai para professor quem não sabe fazer mais nada), na formação contínua (e não vale a pena bradar pela formação de professores de português, matemática e ciências só porque as provas de aferição foram uma lástima) e na capacidade de trabalho racional e humano. Mas isto tem de ser entendido por alunos, pais, professores e empresários em todos os escalões da sociedade. É uma vergonha desrespeitar a formação superior, não dando emprego aos formados porque ficam dispendiosos (Estado e empresas), omitir a formação contínua ou não se aplicar ao trabalho porque é cansativo, não é da área para que foram formados os trabalhadores ou porque não se rebaixam.
***
Mas, voltando a Sebastião Lancastre, anote-se que, depois de casado e já com o primeiro filho, viu-se desempregado após “uma má experiência profissional” e “concorreu a um lugar de assessor do diretor de sistemas de informação, que o levaria também à Unicre”. E diz:
Fiz lá projetos giríssimos, trabalhei com consultores da McKinsey com quem aprendi imenso; depois passei pelo marketing, ligado aos cartões de crédito, e nessa altura estava a fervilhar de ideias”.
Revelando que o embrião da Easypay surgira da observação duma falha no sistema, pois “muitas transações não podiam ser feitas com cartão, como o pagamento dos colégios”, acreditava que ter “ali um caminho que o podia levar longe”. Mas porque não via interesse da empresa “em pegar na ideia”, o profissional decidiu “construir o seu projeto”, largando tudo, apesar da oposição dos familiares, sobretudo do pai.
Aqui registo que não é decisiva a opinião da família, mesmo que as coisas não deem resultado, como terá acontecido desta vez; que os êxitos podem resultar de falhas da pessoa ou das engrenagens; e que se tiram lições a partir daquilo que não corre bem, segundo o signo de que se deve aprender com os erros.
***
Agora, entra-se num capítulo em que o empreendedor denuncia as burocracias dos serviços públicosdesnecessárias, caprichosas e algumas decorrentes da ignorância e da falta de visão dos responsáveis. Quem é que não passou por isso? não há governo que as ultrapasse!
Diz Sebastião Lancastre que, “mesmo no ano 2000, ser empresário era tramado”, especificando: O primeiro óbice foi o registo da marca Easypay, dado que, sendo “palavra anglo-saxónica, não era possível registá-la em Portugal”, pelo que teve de ir “ao Mónaco fazê-lo, perdendo assim a oportunidade de a garantir a nível europeu” (UE). Um segundo embate, mais longo e doloroso, foi com o Banco de Portugal (BdP). E explica:
Tinha de me incluir na categoria de banco ou, no mínimo, de empresa de factoring, porque era o que havia no cardápio do regulador, mas não fazia sentido, porque a Easypay não ia conceder crédito, ter depósitos nem nada disso – tal como o PayPal não o tem.”.
Tratava-se de “uma intermediária de pagamentos”. Como não se via solução para desnovelar a questão, o projeto ficou a vegetar durante 7 anos. E Sebastião lembra-se do trunfo pessoal de que dispunha, a herança genética, pois, “se do pai herdara a cabeça para a engenharia e a tecnologia, à mãe fora buscar alguma vocação humanística”. E conta:
“[O pai] é uma pessoa extraordinária, que nos deu uma enorme liberdade de pensamento e sempre teve muito interesse na área educativa. Pouco depois de chegarmos às minas, montou uma escola, e ainda noutro dia o filho de um antigo trabalhador quis visitá-la, pelo impacto que teve na vida dele. E, quando viemos para Lisboa, a minha mãe fazia serviço educativo na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva – e nós íamos lá fazer voluntariado: aprendi a cinzelar, via trabalhar a folha de ouro... Ela sempre teve este bichinho, que mais tarde a levou a criar o Museu das Crianças – hoje no Jardim Zoológico.”.
Partindo, então, do lado criativo, Sebastião “abriu uma agência de marketing direto e relacional”, em que, por exemplo, a campanha Message in a Bottle, para o Dan ‘Up, da Danone, é da sua responsabilidade. Evoluiu para o marketing digital de marcas, tais como a Frize ou a Compal. Por fim, foi desafiado a desenhar e criar “a base de dados do Portugal contemporâneo”. E, a convite de António Barreto e Maria João Valente Rosa, fez nascer, em 2010, a Pordata. Diz ter sido “um projeto extraordinário: perceber as estatísticas, pegar na informação e organizá-la de forma útil e em termos que as pessoas entendessem”.
A par do desenvolvimento da Pordata, surge uma diretiva europeia a ressuscitar as hipóteses de sucesso da Easypay. Segundo esta norma, os bancos centrais dos Estados/Membros “deviam integrar as empresas de pagamentos e estabelecia o final de 2009 como prazo para o fazerem”. E Sebastião contratou Miguel Gomes Leal (então com 50 anos e um refinado espírito de comerciante, que foi determinante para o sucesso) e arrancou com o negócio, embora com medo de retaliações. Lá os “convidaram para entrar no sistema”, mas os óbices não pararam.
Sebastião assume-se como crítico do supervisor os serviços financeiros portugueses. E aponta como principal razão “o que entende como desconhecimento generalizado”, explicitando:
“Quando as pessoas não dominam um assunto, têm medo de o abordar. No século XXI isto é inaceitável. Se não sabem, têm de estudar. Por isto é que a nossa admissão ao Banco de Portugal foi tão tortuosa que começou em 2009 e só se concretizou plenamente em 2014! E ficamos com a nítida sensação de que o regulador não percebe nada disto – o que dá um certo amargo.”.
Destaca a continuação desse desconhecimento ainda atualmente:
“Nós recebemos dinheiro de um lado e mandamos para outro, os processos estão todos automatizados e é tudo absolutamente simples. Mas tratam-nos como se fôssemos um banco e vão ao ponto de embirrar com uma palavra num relatório e, por isso, multar-nos em 25 mil euros.”.
Dá como exemplo o que se passou com o 1.º questionário de autoavaliação da Easypay, no qual não se reconheciam deficiências, mas apresentava-se a disponibilidade para introduzir melhorias – uma inconformidade, para o regulador. Mas o tratamento formal é outro motivo de críticas, o que explica dizendo:
“Se eu quiser alguma coisa, tenho de escrever uma carta em papel! Nesta altura, em que já nem se usa gravata ou tratamentos de senhor doutor. É a este nível que o país precisa de reformas, na mentalidade. Isto afasta as pessoas. O brexit podia ser uma oportunidade para captarmos instituições financeiras que estão a ponderar deixar o Reino Unido, mas as referências que daqui têm não são boas.”.
Embora saiba que o cargo de governador do BdP não é fácil de preencher, fala das diferenças entre inglês e o regulador português, dando o seguinte exemplo:
A Seedrs é uma empresa portuguesa de crowdfunding regulada pelo Banco de Inglaterra; quando se lançou tinha reuniões de acompanhamento mensais. Eu, nestes anos todos, nunca falei com um governador ou um vice-governador e as duas únicas vezes em que estive com equipas do Banco de Portugal foi por minha iniciativa, porque quis conhecer quem ia tomar conta de mim a nível comportamental, prudencial, etc. A primeira pergunta que me fizeram foi: o que é que você faz mesmo?”.
À segunda reunião que pediu ao BdP há um ano, quando apresentou um negócio na Web Summit, não teve resposta, motivo por que está em Zurique e a Abypay vai ser criada em Zug: não quer “repetir o erro de há 17 anos”.
Garante que esta nova vertente, que decorre da abertura a “nova área de mercado, introduzida pela diretiva europeia, revolucionará “a forma como pagamos tal como “os smartphones revolucionaram a forma de consumir conteúdos”. E ele, que “assume ter defendido, durante décadas, que os cartões nunca iam desaparecer”, pensa que, “daqui a 5 anos, a nossa relação com o dinheiro será radicalmente diferente”. E explica o teor da diretiva europeia:
“A diretiva traz duas novidades: pagamentos instantâneos (em 10 segundos será possível passar dinheiro de um banco para outro, em países diferentes da Europa, sem ser preciso sequer uma transferência, faz-se um pagamento, por exemplo através de um QR Code); e o credit score consolidado. Ou seja, vou poder agregar a minha informação creditícia numa plataforma, de terceiros ou minha, à qual posso recorrer sempre que precisar de dar garantias.”.
A grande diferença em relação ao sistema dos EUA é que,
Na Europa essa informação será controlada e não de acesso quase público, podendo o utilizador dar acesso a terceiros quando quer, por exemplo, alugar uma casa, criando uma password válida apenas para aquele sujeito e durante o tempo necessário para o processo andar”.
E explica as vantagens:
Isto vai trazer enorme transformação. Tendo em conta que os europeus preferem o débito ao crédito, nem vamos precisar de usar cartão, qualquer token – através de uma pulseira, de leitura da íris, da impressão digital, etc. – basta.”.
Diz tratar-se de uma visão de futuro com a vantagem de a tecnologia de pagamentos Abypay (que “nada que ver com investimentos”) juntar moedas, “como a libra, o euro, o real, as moedas reguladas, a ouro e bitcoins”. E afiançando “Posso estar aqui hoje e no Brasil amanhã, levo o banco comigo, sem abrir ou fechar contas”, mostra, no telemóvel, a simplicidade com que se gere a carteira multicurrency, vê saldo, transfere dinheiro, paga contas, podendo escolher a moeda de cada transação, incluindo criptográficas. E indica uma outra razão para ter optado pela Suíça: numa Europa em mutação, o empresário queria um país que juntasse independência e capacidade de albergar uma solução para o mundo inteiro.
E, embora o empresário “não seja defensor das moedas criptográficas enquanto investimento, entende e preza o seu valor enquanto moeda regular”. E mais uma vez verbera o BdP:
“Os avisos do Banco de Portugal quanto à bitcoins só servem para assustar – não os consumidores, mas quem trabalha nestas soluções, que ao ver esta atitude se esconde. Nós pedimos que o regulador mudasse de atitude, que explicasse o interesse no blockchain, nas moedas criptográficas... passaram 9 meses e o que vemos é que diretores e subdiretores continuam apenas a falar de riscos. Ficou fora da equação quando vimos o Banco da Suíça a emitir regulação sobre moedas criptográficas e bitcoin – que lá até já podem ser usadas para pagar de impostos a bilhetes de comboio.”.
Desmistificando a obscuridade existente em torno do blockchain (tecnologia/base de dados atribuída a um grupo de pessoas desconhecido), revela ter-se nomeado Satoshi Nakamoto “para tornar os movimentos de dinheiro mais ágeis, simples e baratos do que na banca tradicional”. E disse:
Todas as semanas veem-se por aí notícias de possíveis fraudes, mas eu não conheço nenhuma feita em blockchain ou bitcoin – já na banca... Quando vemos pessoas como os governadores ou CEO da JP Morgan alertar para riscos com tantos telhados de vidro, dá que desconfiar.”.
Segundo o empresário, a questão é simples: o bitcoin não é moeda para fazer stock de dinheiro nem sequer investimentos, porque não há abertura e fecho de praças; é um sistema sempre aberto. Ele explicita:
“Eu posso ir para a cama com a moeda a valer três mil e acordar com ela nos 9 mil ou nos 500, porque se trata de uma moeda deflacionária, ou seja, depende unicamente da oferta e da procura; e, se não houver transações, ela perde valor todos os dias. Além disso, é limitada: não dá para imprimir mais quando há problemas; e tudo o que acontece pode ser auditado ou verificado por qualquer pessoa.”.
Sobre se aquela moeda pode ser usada para fugir ao fisco ou lavar dinheiro, comentou:
“É impossível comprar por exemplo 10 milhões em bitcoins porque não há. Tinha de estar 10 anos a comprar moeda. O que vejo aqui é o que aconteceu com o mp3, quando a indústria discográfica não quis olhar para a avalanche provocada pela internet. É querer parar o vento com as mãos.”.
Quanto a desafios que vê no seu futuro, aponta claramente dois decorrentes do software que idealizou e criou: entrar na área dos pagamentos completamente desmaterializados (com a Abypay); e o desenvolvimento em Portugal da Easypay, onde trabalham 17 pessoas e cujo rendimento vem das comissões cobradas (logo em 2014, chegou a um milhão de euros de lucro).
***
Concluindo, há que dizer que, se as pessoas passam e as instituições permanecem, são mesmo as pessoas que fazem as instituições e lhes dão eficiência e eficácia. Sem pessoas, as instituições não funcionam: estiolam e morrem. Por isso, precisam de líderes com visão, sentido de missão e capacidade de organização e distribuição de pelouros e tarefas – que ouçam todos; saibam decidir atempadamente e antecipar soluções; comuniquem e façam comunicar regularmente dentro da empresa ou serviço; consigam mobilizar a todos para o trabalho consciente, responsável e dedicado e para a participação nas decisões; tenham competência para gerir conflitos e afetos; promovam a boa e atraente imagem da empresa ou serviço; …
Enfim, requer-se democracia e eficácia pela formação, pelo trabalho e pela comunicação!

2017.10.07 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário