Joana Petis publica no site do DN hoje, 7 de outubro, o teor duma
conversa com Sebastião Lancastre em ambiente de refeição num restaurante da
capital. Retomo-a pela pertinência das críticas, ensinamentos, perspetivas e
lições de vida que encerra.
Segundo a colunista, o fundador da Easypay - um empreendedor com ambição - estava prestes a embarcar para Zurique, em viagem de negócios convicto de que esta
lhe irá mudar a vida. É caso para registar, desde logo, o poder da convicção e da concomitante
da determinação.
Depois, embora inserido no mundo de negócios português em que os
cavalheiros não dispensam o fato e a gravata e usam os termos adequados às
supostas exigências do negócio e das pretensas relações públicas (conforme os veem assim os tratam), esta personalidade surge “em mangas de camisa, de discurso claro e riso
pronto”, de modo que “é difícil olhar para o fundador da Easypay como alguém cujo trabalho está profundamente ligado ao
setor financeiro”. O certo é que este homem, despido dos constrangedores
formalismos sociais e negociais, não enveredou propriamente pelo negócio em que
o dinheiro seja o móbil da ação, mas as tecnologias “postas ao serviço de todos nós para facilitar-nos a vida”,
sobretudo no atinente aos pagamentos.
A seguir ao postergar dos formalismos, vem o culto dos talismãs que
significam vida, herança, memória, símbolo, ferramenta. Assim, diz a
colunista que, depois de “remexer na mochila”, o interlocutor pôs entre os dois
comensais “uma pedra com pepitas de ouro, um cartão Visa e uma bitcoin”, que o “vão ajudar a contar” a
sua “história”.
A sua história de vida negocial “começa na venda porta-a-porta de
impressoras laser” e hoje o protagonista “dirige-se para o cantão suíço de Zug –
o chamado Crypto Valley, ecossistema
de tecnologias criptográficas e de blockchain”.
Adverte Joana Petis que não se trata de “um filme de ficção científica”, mas do
“mundo novo que ali está a nascer e onde Sebastião tem um lugar”. Entretanto,
surge a analepse ou, como dizem os ingleses, o flash-back:
“A família
tinha uma mina em Vila Pouca de Aguiar e o pai passou ‘literalmente 12 anos
debaixo da terra’ – de onde trouxe a pedra que ali temos à frente. Até que
respondeu a um anúncio de jornal e entrou para a equipa que criou a Unicre, em
1974, onde trabalhou até à reforma e chegou a ocupar um lugar no board mundial – razão pela qual
Sebastião diz que não nasceu num berço de ouro, mas num de plástico: ‘Toda a
vida ouvi falar em cartões’. E como seria mais ou menos inevitável, ele próprio
ali passou uma fase da vida.”.
Porém, foi na Xerox que começou a trabalhar e a vender máquinas nas
Avenidas Novas, ao mesmo tempo que frequentava o curso de Engenharia de
Sistemas. A este propósito, confessa:
“Eu queria
casar-me, mas estava a começar o curso – a minha namorada era 5 anos mais velha
–, por isso tinha de ganhar dinheiro. E tinha imenso sucesso nas vendas, porque
a licenciatura dava-me conhecimento tecnológico e a formação que tive na
empresa, e que uso até hoje, era completíssima.”.
Não posso deixar de sublinhar a relevância de três coisas na vida, além da
simplicidade, convicção e abandono dos formalismos desnecessários, sobretudo,
se constrangedores: a capacidade de trabalho; a formação
académica; e a formação na empresa. Esta deve ser
uma informação preciosa para os Ministérios da Educação e da Ciência e Ensino
Superior, que têm de investir muito mais na formação inicial académica e
humanista dos alunos, nomeadamente dos professores (dizem as más línguas que só vai para professor quem não sabe fazer mais nada), na formação contínua (e não vale a pena bradar pela formação de professores de português,
matemática e ciências só porque as provas de aferição foram uma lástima) e na capacidade de trabalho racional e
humano. Mas isto tem de ser entendido por alunos, pais, professores e
empresários em todos os escalões da sociedade. É uma vergonha desrespeitar a
formação superior, não dando emprego aos formados porque ficam dispendiosos (Estado e empresas), omitir a formação contínua ou não se aplicar ao trabalho porque é
cansativo, não é da área para que foram formados os trabalhadores ou porque não
se rebaixam.
***
Mas, voltando a Sebastião Lancastre, anote-se que, depois de casado e já
com o primeiro filho, viu-se desempregado após “uma má experiência profissional”
e “concorreu a um lugar de assessor do diretor de sistemas de informação, que o
levaria também à Unicre”. E diz:
“Fiz lá
projetos giríssimos, trabalhei com consultores da McKinsey com quem aprendi imenso; depois passei pelo marketing, ligado aos cartões de
crédito, e nessa altura estava a fervilhar de ideias”.
Revelando que o embrião da Easypay
surgira da observação duma falha no sistema, pois “muitas transações não podiam
ser feitas com cartão, como o pagamento dos colégios”, acreditava que ter “ali
um caminho que o podia levar longe”. Mas porque não via interesse da empresa “em
pegar na ideia”, o profissional decidiu “construir o seu projeto”, largando
tudo, apesar da oposição dos familiares, sobretudo do pai.
Aqui registo que não é decisiva a opinião da família, mesmo que as coisas
não deem resultado, como terá acontecido desta vez; que os êxitos podem
resultar de falhas da pessoa ou das engrenagens; e que se tiram lições a partir
daquilo que não corre bem, segundo o signo de que se deve aprender com os
erros.
***
Agora, entra-se num capítulo em que o empreendedor denuncia as burocracias
dos serviços públicos – desnecessárias,
caprichosas e algumas decorrentes da ignorância e da falta de visão dos
responsáveis. Quem é que não passou por isso? não há governo que as
ultrapasse!
Diz Sebastião Lancastre que, “mesmo no ano 2000, ser empresário era
tramado”, especificando: O primeiro óbice foi o registo da marca Easypay, dado que, sendo “palavra
anglo-saxónica, não era possível registá-la em Portugal”, pelo que teve de ir “ao
Mónaco fazê-lo, perdendo assim a oportunidade de a garantir a nível europeu” (UE). Um segundo embate,
mais longo e doloroso, foi com o Banco de Portugal (BdP). E explica:
“Tinha de me
incluir na categoria de banco ou, no mínimo, de empresa de factoring, porque era o que havia no cardápio do regulador, mas não
fazia sentido, porque a Easypay não
ia conceder crédito, ter depósitos nem nada disso – tal como o PayPal não o
tem.”.
Tratava-se de “uma intermediária de pagamentos”. Como não se via solução
para desnovelar a questão, o projeto ficou a vegetar durante 7 anos. E Sebastião
lembra-se do trunfo pessoal de que dispunha, a herança genética, pois, “se do pai herdara a cabeça para a engenharia
e a tecnologia, à mãe fora buscar alguma vocação humanística”. E conta:
“[O pai] é uma pessoa extraordinária, que nos deu uma enorme
liberdade de pensamento e sempre teve muito interesse na área educativa. Pouco
depois de chegarmos às minas, montou uma escola, e ainda noutro dia o filho de
um antigo trabalhador quis visitá-la, pelo impacto que teve na vida dele. E,
quando viemos para Lisboa, a minha mãe fazia serviço educativo na Fundação
Ricardo Espírito Santo Silva – e nós íamos lá fazer voluntariado: aprendi a
cinzelar, via trabalhar a folha de ouro... Ela sempre teve este bichinho, que
mais tarde a levou a criar o Museu das Crianças – hoje no Jardim Zoológico.”.
Partindo, então, do lado criativo, Sebastião “abriu uma agência de
marketing direto e relacional”, em que, por exemplo, a campanha Message in a Bottle, para o Dan ‘Up, da Danone, é da sua responsabilidade. Evoluiu para o marketing digital de marcas, tais como a
Frize ou a Compal. Por fim, foi desafiado a desenhar e criar “a base de dados
do Portugal contemporâneo”. E, a convite de António Barreto e Maria João
Valente Rosa, fez nascer, em 2010, a Pordata.
Diz ter sido “um projeto extraordinário:
perceber as estatísticas, pegar na informação e organizá-la de forma útil e em
termos que as pessoas entendessem”.
A par do desenvolvimento da Pordata,
surge uma diretiva europeia a ressuscitar as hipóteses de sucesso da Easypay. Segundo esta norma, os bancos
centrais dos Estados/Membros “deviam integrar as empresas de pagamentos e
estabelecia o final de 2009 como prazo para o fazerem”. E Sebastião contratou
Miguel Gomes Leal (então com 50 anos e um refinado espírito
de comerciante, que foi determinante para o sucesso) e arrancou com o negócio, embora com
medo de retaliações. Lá os “convidaram para entrar no sistema”, mas os óbices
não pararam.
Sebastião assume-se como crítico do supervisor os serviços
financeiros portugueses. E aponta como principal razão “o que
entende como desconhecimento generalizado”, explicitando:
“Quando as pessoas não dominam um assunto, têm medo de
o abordar. No século XXI isto é inaceitável. Se não sabem, têm de estudar. Por
isto é que a nossa admissão ao Banco de Portugal foi tão tortuosa que começou
em 2009 e só se concretizou plenamente em 2014! E ficamos com a nítida sensação
de que o regulador não percebe nada disto – o que dá um certo amargo.”.
Destaca a continuação desse desconhecimento ainda atualmente:
“Nós recebemos dinheiro de um lado e mandamos para
outro, os processos estão todos automatizados e é tudo absolutamente simples.
Mas tratam-nos como se fôssemos um banco e vão ao ponto de embirrar com uma
palavra num relatório e, por isso, multar-nos em 25 mil euros.”.
Dá como exemplo o que se passou com o 1.º questionário de autoavaliação da Easypay, no qual não se reconheciam
deficiências, mas apresentava-se a disponibilidade para introduzir melhorias –
uma inconformidade, para o regulador. Mas o tratamento formal é outro motivo de
críticas, o que explica dizendo:
“Se eu quiser alguma coisa, tenho de escrever uma
carta em papel! Nesta altura, em que já nem se usa gravata ou tratamentos de
senhor doutor. É a este nível que o país precisa de reformas, na mentalidade.
Isto afasta as pessoas. O brexit
podia ser uma oportunidade para captarmos instituições financeiras que estão a
ponderar deixar o Reino Unido, mas as referências que daqui têm não são boas.”.
Embora saiba que o cargo de governador do BdP não é fácil de preencher,
fala das diferenças entre inglês e o regulador português, dando o seguinte
exemplo:
“A Seedrs é
uma empresa portuguesa de crowdfunding
regulada pelo Banco de Inglaterra; quando se lançou tinha reuniões de
acompanhamento mensais. Eu, nestes anos todos, nunca falei com um governador ou
um vice-governador e as duas únicas vezes em que estive com equipas do Banco de
Portugal foi por minha iniciativa, porque quis conhecer quem ia tomar conta de
mim a nível comportamental, prudencial, etc. A primeira pergunta que me fizeram
foi: o que é que você faz mesmo?”.
À segunda reunião que pediu ao BdP há um ano, quando apresentou um negócio
na Web Summit, não teve resposta,
motivo por que está em Zurique e a Abypay
vai ser criada em Zug: não quer “repetir o erro de há 17 anos”.
Garante que esta nova vertente, que decorre da abertura a “nova área de
mercado, introduzida pela diretiva europeia, revolucionará “a forma como
pagamos tal como “os smartphones
revolucionaram a forma de consumir conteúdos”. E ele, que “assume ter defendido,
durante décadas, que os cartões nunca iam desaparecer”, pensa que, “daqui a 5
anos, a nossa relação com o dinheiro será radicalmente diferente”. E explica o
teor da diretiva europeia:
“A diretiva traz duas novidades: pagamentos instantâneos
(em 10 segundos será possível passar dinheiro de um banco para outro, em países
diferentes da Europa, sem ser preciso sequer uma transferência, faz-se um
pagamento, por exemplo através de um QR
Code); e o credit score consolidado. Ou seja, vou poder agregar a minha
informação creditícia numa plataforma, de terceiros ou minha, à qual posso
recorrer sempre que precisar de dar garantias.”.
A grande diferença em relação ao sistema dos EUA é que,
“Na Europa essa informação será controlada e
não de acesso quase público, podendo o utilizador dar acesso a terceiros quando
quer, por exemplo, alugar uma casa, criando uma password válida apenas para
aquele sujeito e durante o tempo necessário para o processo andar”.
E explica as vantagens:
“Isto vai
trazer enorme transformação. Tendo em conta que os europeus preferem o débito
ao crédito, nem vamos precisar de usar cartão, qualquer token – através de uma pulseira, de leitura da íris, da impressão
digital, etc. – basta.”.
Diz tratar-se de uma visão de futuro com a vantagem de a tecnologia de
pagamentos Abypay (que “nada que ver com investimentos”) juntar moedas, “como a libra, o euro, o real, as moedas reguladas, a ouro
e bitcoins”. E afiançando “Posso estar aqui hoje e no Brasil amanhã,
levo o banco comigo, sem abrir ou fechar contas”, mostra, no telemóvel, a
simplicidade com que se gere a carteira multicurrency,
vê saldo, transfere dinheiro, paga contas, podendo escolher a moeda de cada
transação, incluindo criptográficas. E indica uma outra razão para ter optado
pela Suíça: numa Europa em mutação, o empresário queria um país que juntasse
independência e capacidade de albergar uma solução para o mundo inteiro.
E, embora o empresário “não seja defensor das moedas criptográficas
enquanto investimento, entende e preza o seu valor enquanto moeda regular”. E
mais uma vez verbera o BdP:
“Os avisos do Banco de Portugal quanto à bitcoins só servem para assustar – não
os consumidores, mas quem trabalha nestas soluções, que ao ver esta atitude se
esconde. Nós pedimos que o regulador mudasse de atitude, que explicasse o
interesse no blockchain, nas moedas
criptográficas... passaram 9 meses e o que vemos é que diretores e subdiretores
continuam apenas a falar de riscos. Ficou fora da equação quando vimos o Banco
da Suíça a emitir regulação sobre moedas criptográficas e bitcoin – que lá até já podem ser usadas para pagar de impostos a
bilhetes de comboio.”.
Desmistificando a obscuridade existente em torno do blockchain (tecnologia/base de dados atribuída a um
grupo de pessoas desconhecido), revela ter-se nomeado Satoshi Nakamoto “para tornar os movimentos de
dinheiro mais ágeis, simples e baratos do que na banca tradicional”. E disse:
“Todas as
semanas veem-se por aí notícias de possíveis fraudes, mas eu não conheço
nenhuma feita em blockchain ou bitcoin – já na banca... Quando vemos
pessoas como os governadores ou CEO da JP Morgan alertar para riscos com tantos
telhados de vidro, dá que desconfiar.”.
Segundo o empresário, a questão é simples: o bitcoin não é moeda para fazer stock
de dinheiro nem sequer investimentos, porque não há abertura e fecho de praças;
é um sistema sempre aberto. Ele explicita:
“Eu posso ir para a cama com a moeda a valer três mil
e acordar com ela nos 9 mil ou nos 500, porque se trata de uma moeda
deflacionária, ou seja, depende unicamente da oferta e da procura; e, se não
houver transações, ela perde valor todos os dias. Além disso, é limitada: não
dá para imprimir mais quando há problemas; e tudo o que acontece pode ser
auditado ou verificado por qualquer pessoa.”.
Sobre se aquela moeda pode ser usada para fugir ao fisco ou lavar dinheiro,
comentou:
“É impossível comprar por exemplo 10 milhões em bitcoins porque não há. Tinha de estar
10 anos a comprar moeda. O que vejo aqui é o que aconteceu com o mp3, quando a
indústria discográfica não quis olhar para a avalanche provocada pela internet.
É querer parar o vento com as mãos.”.
Quanto a desafios que vê no seu futuro, aponta claramente dois decorrentes
do software que idealizou e criou:
entrar na área dos pagamentos completamente desmaterializados (com a Abypay); e o desenvolvimento em Portugal da Easypay, onde trabalham 17 pessoas e
cujo rendimento vem das comissões cobradas (logo em 2014, chegou a
um milhão de euros de lucro).
***
Concluindo, há que dizer que, se as pessoas passam e as instituições
permanecem, são mesmo as pessoas que fazem as instituições e lhes dão eficiência
e eficácia. Sem pessoas, as instituições não funcionam: estiolam e morrem. Por isso,
precisam de líderes com visão, sentido de missão e capacidade de organização e
distribuição de pelouros e tarefas – que ouçam todos; saibam decidir
atempadamente e antecipar soluções; comuniquem e façam comunicar regularmente dentro
da empresa ou serviço; consigam mobilizar a todos para o trabalho consciente, responsável
e dedicado e para a participação nas decisões; tenham competência para gerir conflitos
e afetos; promovam a boa e atraente imagem da empresa ou serviço; …
Enfim, requer-se democracia e eficácia pela formação, pelo trabalho e pela
comunicação!
2017.10.07 – Louro de Carvalho
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