Está longe de
terminar a polémica em torno da decisão do TRP sobre violência doméstica versus adultério. São várias as posições
de figuras públicas e entidades que zelam o interesse público, quase todas
convergentes na indignação contra este acórdão e ouros de teor similar,
protagonizados pelo juiz desembargador Neto de Moura.
***
Secretário da CEP (Conferência Episcopal Portuguesa) recorda dimensão de “perdão e misericórdia” do Evangelho.
De facto, o Padre
Manuel Barbosa lamentou o recurso à Bíblia na fundamentação de acórdão do TRP (Tribunal da Relação do Porto) sobre violência doméstica, divulgado, no passado dia 22 pelo JN. Realça o secretário da CEP, em
declarações à agência Ecclesia:
“Neste
caso em que há uso incorreto ou incompleto [da Bíblia], pois no episódio do
encontro de Jesus com a mulher adúltera, ele pede àqueles que não têm pecados
para atirarem a primeira pedra. Eles acabam por se afastar, simplesmente.”.
Em causa, segundo o mencionado porta-voz da CEP, está
a necessidade de – sem que isso signifique “aceitar o adultério” – “respeitar a
dignidade da mulher e de se colocar numa perspetiva de perdão e misericórdia”,
como vem acentuando o Papa Francisco. E declarou:
“Não
se pode atenuar ou justificar qualquer tipo de violência, no caso a violência
doméstica, mesmo em caso de adultério”.
O acórdão do TRP justifica a manutenção da pena
suspensa para um homem que agrediu a sua mulher, considerando que a conduta
desta, ao manter uma relação extraconjugal, representaria uma atenuante vista
com “alguma compreensão” pela
sociedade. A argumentação do acórdão aduz que, “na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a
morte”. O texto não refere especificamente qualquer passagem bíblica; o
capítulo 20 do Levítico (terceiro livro do Antigo Testamento) determina, em orientações ao povo
judaico, que “o homem adúltero e a mulher adúltera” sejam punidos com a morte.
Porém, como referia há dias, a punição prescrita pelo Levítico é equânime –
abrange homem e mulher e não apenas a mulher.
Em fevereiro deste ano, num encontro para a recitação
da oração do Angelus, o Papa afirmou
que Jesus Cristo dá um novo “cumprimento” à lei matrimonial, que deixa de ser
vista à luz do “direito de propriedade do
homem sobre a mulher”, como sucedia no Antigo Testamento. E, na sua
mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2017, Francisco denunciava a “violência
doméstica” e os “abusos sobre mulheres e crianças”, em particular dentro das
famílias.
Também o Sínodo dos Bispos sobre a família, que o Papa
encerrou em outubro de 2015, deixou uma mensagem de solidariedade às vítimas de
violência doméstica e de maus-tratos, apelando a “uma colaboração estreita com a justiça para agir contra os responsáveis
e proteger adequadamente as vítimas”. E, meses antes, Francisco tinha
admitido no Vaticano que a separação pode ser “inevitável” para defender as
vítimas, em casos de violência doméstica, pois, como declarou, na Praça de São
Pedro:
“Há
casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se mesmo
moralmente necessária, quando se trata precisamente de poupar o cônjuge mais
fraco ou os filhos pequenos às feridas mais graves causadas pela prepotência e
a violência.”.
Por
mim, gosto desta apreciação, que nem recomenda nem recusa a citação da Bíblia,
mas a sua utilização distorcida para legitimar a prática de crime, condenando
enviesadamente o pecado de uns e não o de outros.
***
Para Teresa Martinho Toldy, “não é suposto juiz fundamentar
decisões com base na Bíblia”.
A doutora na área da Teologia
Feminista entende que a discussão nem devia ter lugar “ao nível do Estado”, visto
que o Estado é laico como a Constituição da República Portuguesa (CRP).
Segundo
a especialista, o juiz cita o Livro
dos Provérbios (caps. 5-7), esquecendo o texto do Novo
Testamento, no Evangelho de João, no qual Jesus perdoa a mulher adúltera (Jo 8,1-11), e obliterando qualquer contexto
histórico e cultural às referências bíblicas.
Assente que é caso para
dizer que os juízes invocam os textos bíblicos em vão e até que nem os deviam invocar, já que Portugal
é um país laico, ao nível governamental e das instâncias de poder. Temos uma
CRP que defende a liberdade religiosa, mas isso é uma coisa diferente de haver
pessoas do aparelho do Estado que invocam motivos religiosos para decisões
desse ou de outro tipo qualquer. Não é suposto um juiz que tem um código penal,
aquele pelo qual se deve orientar, vir fundamentar ou corroborar decisões com
base na Bíblia ou qualquer outro texto sagrado. Se esta interpretação desviante
da Bíblia (ou de outro
livro sagrado), vertendo para sentença um
texto sem enquadramento e contexto, tivesse acontecido no Irão, não
ficaria surpreendida. E, não sabendo qual a ligação religiosa que esses nossos
juízes têm, admite que “pode ser uma ligação religiosa em que o que está antes
de Jesus Cristo é referência – e não aquilo que é o cristianismo”. Ora, se a sua
referência pessoal é o cristianismo, é completamente desadequado porque Jesus
veio acabar com esse tipo de raciocínio. Todavia, considera:
“Esta discussão nem se abre porque os juízes não podem invocar motivos
religiosos para legitimar ou sustentar as suas sentenças. Nem faz sentido uma
leitura com enquadramento cultural do texto bíblico para este efeito nos tempos
atuais, porque a Bíblia […] sobretudo evoca aquilo que eram os códigos
do direito da família, que eram códigos sobretudo punitivos das mulheres, com a
ideia de que o adultério é culpa sempre da mulher. Gostava de saber o que é que
esses juízes teriam a dizer ou a criticar à aplicação aos tribunais da Sharia
nos países que são islâmicos. Provavelmente considerariam que estaria mal mas
estão a fazer igual.”.
É tentador utilizar a Bíblia
como um livro com citações para todos os gostos. A isto diz:
“Mas todo esse tipo de questões nem sequer se coloca no contexto em que
estamos a falar. Nós podemos discutir estes temas em termos de se está ainda
muito presente na moral das pessoas, ou se está muito presente nas convicções
religiosas das pessoas. Ou seja, ao nível cultural e ao nível individual
podemos discutir. Ao nível do Estado nem sequer tem lugar, nem sequer é
possível discuti-lo a esse nível precisamente por Portugal ser um Estado laico
e com uma Constituição laica e que defende a liberdade religiosa.”.
A especialista deixa-se
embarcar, a meu ver, no politicamente correto: “o melhor é deixar à justiça o que é da justiça e à Bíblia o que é da
Bíblia”.
Sobre
uma eventual intervenção da Igreja nesta matéria em que um juiz invoca este tipo
de coisas, para justificar comportamentos condenáveis, Teresa Martinho
sustenta:
“Eu acho que a Igreja deveria, mas o problema é que há uma outra questão
por detrás dessa: se formos a ver o que o juiz faz é legitimar a ideia
patriarcal de que o adultério é alguma coisa ligada à mulher, que é um ser
pecaminoso. Nós sabemos que temos um Papa que considera as mulheres, mas eu não
sei se, ao nível dos diversos países, as conferências episcopais já perceberam
muito bem o que isto quer dizer. E, como o que está em causa é este tipo de
problema, isto levaria a que, de facto, houvesse uma tomada de posição a dizer
que a Igreja tem a noção de que se deve dar a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus, mas uma das coisas que é para dar a Deus é o respeito por todos
os seres humanos – portanto, as mulheres estão incluídas.”.
Deve haver uma voz da
Igreja portuguesa que diga aos juízes que se abstenham de invocar de forma
errada os textos da Bíblia, “precisamente para proteger a sua
própria liberdade religiosa”.
***
Concordo
quase integralmente com o testemunho de Teresa Martinho, entendendo que a
Igreja deve fazer ouvir a sua voz para proteger a liberdade religiosa e para
contrariar a utilização desviante da Bíblia para justificar o injustificável,
não entendendo a evolução da doutrina bíblica, discriminando os seres humanos e
justificando crimes com outros atos pecaminosos.
Já no
atinente à laicidade do Estado e dos poderes públicos, da CRP ou do país,
reservo-me uma certa moderação contra uma interpretação fundamentalista da
Constituição e dos mecanismos da aconfessionalidade do Estado e da separação
Igrejas/Estado. Na verdade o Estado e os seus poderes (e obviamente o texto-base dos poderes
do Estado, a Constituição)
são aconfessionais e mesmo laicos. Porém, o país e os cidadãos não têm de ser
laicos ou aconfessionais. E, se os juízes são titulares de órgãos de soberania,
nem por isso deixam de estar entre o povo e de administrar a justiça em nome do
povo. Assim, embora devam fundamentar as suas decisões na Constituição e nas
Leis, no caso vertente, no nosso Código Penal em vigor – e não em outros –, nem por isso lhes fica vedada a ilustração da
fundamentação substancial das suas decisões em outros textos, designadamente textos
de impacto internacional, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as
Cartas e Convenções Internacionais, a jurisprudência e a doutrina dos mestres
de Direito ou de outros sábios. E porque não a Bíblia, Cícero, Aristóteles,
Dalai Lama, a encíclica Pacem in Terris,
…? Porém, nunca o deverão fazer em vão nem para justificar o injustificável. E,
por favor, se não conhecem tais documentos e a sua hermenêutica, não os
mencionem!
***
Segundo a Amnistia, a atuação dos juízes desembargadores espelha misoginia.
A Amnistia Internacional Portugal considera que o acórdão judicial do TRP,
que minimiza a violência doméstica contra uma mulher, “viola” as obrigações
internacionais a que Portugal está vinculado e não tem em conta os direitos das
mulheres Em comunicado, a AI expressa “profunda preocupação” com os
fundamentos do tribunal superior para negar provimento ao recurso interposto
pelo Ministério Público no caso em que dois arguidos foram condenados a penas
suspensas pelos crimes de violência doméstica, detenção de arma proibida,
perturbação da vida privada, injúrias, ofensa à integridade física simples e
sequestro. O juiz relator faz censura moral a uma mulher de Felgueiras vítima
de violência doméstica, minimizando o crime por ela ter cometido adultério. Pelo facto de o juiz invocar a Bíblia, o Código
Penal de 1886 e civilizações que punem o adultério da mulher com a lapidação,
para justificar a violência contra a mulher em causa por parte do marido e do
amante, a AI frisa:
“A citação de documentação histórica e
religiosa sem ter em conta o devido contexto e enquadramento histórico e religioso
entende-se como abusiva”.
Salientando
que a citação do Antigo Testamento da Bíblia demonstra uma “manifesta violação”
do princípio de separação entre Igreja e Estado, consagrado na CRP, a AI
salienta:
“A Amnistia Internacional Portugal defende a ausência de considerações
de caráter religioso como fundamentação jurídica em nome do respeito do
princípio da laicidade e em nome da igualdade e do respeito por todas as
religiões”.
E
acrescentou:
“O Código Penal Português de 1886, citado no acórdão do tribunal da
Relação do Porto, foi revogado pelo Código Penal de 1982, revisto pelo
Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março. Assim, o Código Penal de 1886, citado no
acórdão, não é fonte de direito português, não podendo ser utilizado pelos
tribunais. A sua utilização revela a ineficácia da justiça portuguesa.”.
A
Amnistia diz-se “preocupada” não só pela atuação dos juízes desembargadores ao
“arrepio” dos preceitos legais e constitucionais, mas pelo espelhar duma cultura
e justiça promotora de “misoginia”, sem ter em conta os direitos das mulheres,
e da compreensão do uso de violência para vingar a honra e a dignidade. E lembrou
que Portugal está vinculado não só aos tratados internacionais de direitos
humanos dos quais é signatário, mas também se encontra vinculado, desde 1 de
agosto de 2014, às obrigações previstas na Convenção do Conselho da Europa para
a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica,
comummente conhecida como Convenção de Istambul.
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Sobre
a AI, tenho entendimento similar ao que expressei sobre a Teóloga Feminista.
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Para o Bastonário da Ordem dos Advogados este juiz não pode voltar a
julgar casos de violência doméstica.
Guilherme
Figueiredo, o bastonário da AO (Ordem dos Advogados),
defende que Neto de Moura, que redigiu o polémico acórdão que cita a Bíblia
para atacar uma mulher adúltera, justificando a violência doméstica, não deve
voltar a julgar casos desta natureza. Em declarações à TSF, o Bastonário da OA
entende que o problema, tal como defendeu o CSM, “não será do ponto de vista
disciplinar, mas pode sê-lo de outra maneira, na circunstância de se esse
magistrado tem a possibilidade de se manter a julgar casos” de violência
doméstica. Frisando que a OA entende que é grave (e pessoalmente ele também o
defende), apontou uma outra dimensão:
“Há aqui uma desvalorização da pessoa, da mulher, quando ela é adúltera,
que pode justificar atos de violência. […]. Sabemos que essa desvalorização da
mulher pode conduzir, num país que tem um enorme índice de violência doméstica,
a um agravamento da violência doméstica no país.”.
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Juiz é recorrente em desculpar violência a agressores traídos
Os
vários acórdãos em que o desembargador Neto de Moura, do TRP, foi recorrente em
desculpar a conduta dos agressores domésticos por terem batido nas mulheres adúlteras
estão a ser examinados à lupa e constarão de queixa conjunta que várias
organizações vão apresentar ao CSM, entre elas a UMAR, a APAV, a Associação de
Mulheres contra a Violência, a Plataforma Portuguesa para o Direito das
Mulheres, e a associação Capazes, como confirmou ao DN Elizabete Brasil, jurista e presidente da UMAR. E, na sua
pesquisa a propósito, o DN diz ter
encontrado quatro decisões do género.
No
acórdão de 11 de outubro (assinado
também pela juíza Maria Luísa Arantes), que criou uma onda de indignação e de protesto no país, o
desembargador desvaloriza a gravidade dos atos do agressor que bateu na mulher,
de quem estava separado, com uma moca de pregos e com a ajuda do ex-amante
desta. Tal violência, segundo o juiz, ocorreu “num contexto de adultério
praticado pela assistente”, “um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”.
Chega ao ponto de lembrar que alegadamente na Bíblia a mulher adúltera era
punida com a morte. Num outro, de junho de 2016, anulou uma sentença de 1.ª
instância de pena suspensa de 2 anos e 4 meses por violência doméstica ao
agressor depois de ter questionado a “fiabilidade” do testemunho da vítima
porque a mulher adúltera é “falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil,
imoral”.
Num
acórdão de 26 de outubro de 2016, o desembargador (que assina com Ana Bacelar) decidiu revogar a medida urgente de
afastamento da residência a um agressor, porque – entre outros argumentos – “os
insultos seriam recíprocos e a denunciante até já teria manifestado desejar a
morte do arguido”. E uma decisão sua na Relação de Lisboa, de 15 de janeiro de
2013, baixou a pena pelo crime de violência doméstica de que o agressor estava
acusado e condenado. Na verdade, segundo o insigne magistrado, “o facto de o
arguido ter atingido a assistente, com um murro, no nariz que ficou
“ligeiramente negro de lado” e de a ter mordido na mão (sem lesões visíveis) constitui uma simples ofensa à
integridade física que está longe de poder considerar-se conduta maltratante
suscetível de configurar “violência doméstica”. Mesmo estando a mulher com o
filho bebé de nove dias ao colo, isso, para o juiz, “não tem a gravidade
bastante”.
Neto
de Moura vai ficar conhecido como o juiz das citações bíblicas em processos por
violência doméstica. A fúria castigadora do Antigo Testamento é aplicada, em
vão e de forma perversa, pelo desembargador em longos excertos referentes às
mulheres adúlteras.
***
A Magistratura
demarca-se
Enquanto
foram várias as manifestações, nas redes sociais, de desagrado, vindas até da
classe judicial – tendo a desembargadora Adelina Barradas de Oliveira publicado
o acórdão na sua página de Facebook e ainda um post com o excerto da Bíblia em
que Jesus se insurge contra os que queriam apedrejar a adúltera apanhada em
flagrante e lhes diz “Aquele que de entre
vós está sem pecado seja o primeiro a atirar a pedra contra ela” –, o CSM
emitiu um comunicado em que se demarca da polémica e sublinha que “nem todas as proclamações arcaicas,
inadequadas ou infelizes” em sentenças assumem relevância disciplinar,
cabendo ao Conselho Plenário pronunciar-se sobre tal matéria (mas não indica quando o fará). O Bastonário da OA entende que “a
argumentação do juiz é censurável e lamentável” e que o CSM pode e deve agir
para além do foro disciplinar, mudando o juiz de secção, por exemplo. Sustenta Guilherme
Figueiredo:
“Há uma coisa que não pode ser descurada pelo Conselho: é muito
importante ter no Tribunal da Relação juízes com uma compreensão especializada
nesta matéria. Neste caso, o que vemos é uma desconformidade entre o que é o
pensamento do juiz e o pensar da comunidade e a legislação sufragada pela
Assembleia da República e pelo Governo.”.
***
Erica
Durães, advogada da mulher que o TRP apelidou de “adúltera” e “desonesta”,
ainda não tinha ontem, fim do prazo para interpor recurso, instruções para
avançar contra juízes ou o contra o Estado por causa do acórdão que chocou o
país e é notícia em vários media estrangeiros,
incluindo o britânico The Guardian, que
frisa que “o patriarcado ultraortodoxo
(...) ainda subsiste em algumas áreas da sociedade portuguesa”. E dizia:
“É evidente que nenhum ser humano se pode
conformar com isto. Mas se a vítima, que está muito desgastada e cansada disto
tudo, tem a intenção de praticar mais algum ato judicial, desconheço, não tenho
instruções nesse sentido.”.
O DN, que tentou
contactar a visada no acórdão, a qual não recorrera da decisão da 1.ª instância
(o recurso para a Relação
foi intentado pelo MP)
não obteve respostas às perguntas enviadas. Porém, a sua representante legal
adianta que se reunirá com a cliente para apreciar as alternativas, que incluem
processo contra o Estado no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e queixa por
difamação contra os juízes que assinaram o acórdão. Já a possibilidade de
recurso para o Tribunal Constitucional (TC) parece
fora de questão: teria de ter lugar nos dez dias seguintes à notificação,
vencidos ontem.
Entretanto, o constitucionalista Jorge Reis Novais está
seguro de que “o TC destruiria aquele
acórdão, que é de alto a baixo inconstitucional”, se pudesse apreciá-lo. Mas
não pode, não só por se tratar de um problema de extinção de prazo, mas também
porque, de acordo com este professor da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, aquele tribunal não pode apreciar a constitucionalidade de decisões
judiciais. E explica:
“O nosso sistema de fiscalização da
constitucionalidade é um desastre. Só permite recorrer de normas, não de
decisões. Só nós temos esta impossibilidade, porque em todos os outros sistemas
se pode recorrer a esta instância para apreciação de decisões. Falo muito disto
aos meus alunos. Costumo dizer-lhes que o sistema é tão absurdo que, se um juiz
condenasse alguém à morte e não houvesse recurso para instância superior, o TC
não podia apreciar a decisão. Agora tenho um caso concreto para apresentar.”.
***
Os testes psicotécnicos sobre a idoneidade dos candidatos ao
CEJ não lhes garantem a sanidade.
***
Que pode fazer-se no sistema judicial português
neste caso?
Perante um acórdão que, em vez de se basear nas leis, na
Constituição e nas convenções internacionais em vigor, invoca, como atenuantes
para a pena de dois homens que ameaçaram, sequestraram e agrediram uma mulher,
o Velho Testamento e a sua prescrição de lapidação para as adúlteras, assim como
o Código Penal de 1886 e a atenuação especial da pena para o homem que matasse
a esposa que o tivesse traído (no máximo, 6 meses de exílio da comarca), e diz que “a mulher adúltera” é vituperada pelas “honestas”,
aparentemente, pode fazer-se muito pouco.
A vítima pode apresentar queixa-crime contra quem a difamou, processo
que, por os autores do acórdão serem desembargadores, só podia ser apreciado no
tribunal superior – o Supremo Tribunal de
Justiça. E resta o recurso para quem se sinta lesado pelos tribunais
portugueses: o Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos. O prazo de apresentação da queixa é de 6 meses e as
custas são grátis. As pessoas pensam que ir a Estrasburgo custa fortunas, mas
só tem de se pagar os honorários do representante. E há já um precedente quanto
à apreciação de considerações ofensivas numa decisão. No caso Salgueiro-Mouta,
referente a regulação do poder paternal, Portugal foi condenado por isso mesmo:
a decisão pode estar correta tecnicamente, mas os fundamentos serem ofensivos,
não conformes à convenção. No caso, tratava-se de considerações sobre a homossexualidade
do pai da criança em causa não vinham ao caso.
No entanto Cabral Barreto adverte que a consideração, como
ofensivos ou de não conformes à Convenção, dos fundamentos duma decisão não
significa que a decisão seja automaticamente anulada. Ou seja, o Estado pode
ser condenado a indemnizar, mas não haver anulação do acórdão. E, sendo assim,
não é claro que o Estado possa requerer aos autores da decisão que indemnizem por
sua vez a fazenda pública: “Tem de se
considerar que houve dolo para que haja responsabilidade civil dos juízes por
atos cometidos em funções” – conclui.
E, se a visada não tiver ânimo para demandas, aquele ex-juiz
europeu acha que não podem fazê-lo algumas das associações de defesa dos
direitos das mulheres que têm protestado contra o acórdão, pois “essa
possibilidade existe para direitos difusos, como o direito ao ambiente”, sendo
que, “num caso como este, só a vítima direta se poderá queixar”.
Sendo escassas as hipóteses da via judicial, na disciplinar
existe uma: o CSM, que tem o poder fiscalizador sobre os juízes. Mas este
exarou um comunicado sobre o caso em que usa linguagem invulgarmente dura e
explícita, frisando que os tribunais devem realizar “a justiça do caso concreto sem obediência ou expressão de posições
ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da
sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na Constituição e Leis
da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios da igualdade de género
e da laicidade do Estado” e que o CSM “espera
que isso aconteça sempre”. Porém, não diz o que deve suceder quando não
acontece e acrescenta:
“Nem todas as proclamações arcaicas,
inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar”.
“Uma no cravo e outra
na ferradura” – comentou um juiz, que mesmo assim crê que o assunto será
apreciado o próximo plenário do CSM, a realizar-se em novembro. E outro
sustenta:
“Com este discurso não se prevê que aconteça
nada”.
Omnis periit labor!
2017.10.24 –
Louro de Carvalho
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