No XIX domingo do Tempo Comum do Ano A, a liturgia assume
para leitura do Evangelho a perícopa de Mateus (Mt 22,15-21), em que, à semelhança do que sucede noutras passagens, se
apresentam as controvérsias de Jesus com diversos grupos religiosos,
particularmente os chefes dos sacerdotes e anciãos do povo. E o texto desta
dominga evidencia dois grupos diferentes, fariseus e herodianos, que passam ao
ataque, dirigindo-se a Jesus com uma pergunta capciosa: “É lícito ou não dar o tributo a César?”.
Estamos perante uma questão que parecia envolver um dilema:
Deus ou César, Religião ou Política. Porém, a questão do tributo ao imperador,
que necessariamente envolve um aspeto político e um aspeto religioso, não se
coloca da parte de Jesus em alternativa ou em regime de exclusão. E hoje o
problema que se coloca aos cristãos é o de saber qual a sua relação com a sociedade, com a Política (com “P” maiúsculo ou grande
e não com “p” minúsculo ou pequeno) e com Deus. E este Evangelho, aliás com a
primeira leitura, nos apresenta várias pistas de reflexão sobre o perfil dos
governantes e sobre a participação dos cristãos na vida política.
Se os fariseus e os herodianos queriam reduzir Jesus ao
silêncio pela contradição, enganaram-se.
É certo que o pagamento do tributo que o judeu devia pagar
era sinal de submissão ao poder político estrangeiro. Mas tal situação implicava
um problema de religião porque o imperador de Roma era um soberano pagão que,
assumindo-se a si mesmo como divino,
reivindicava uma forma de reconhecimento e de culto idolátrica e perversa. A
geral rejeição da dominação romana era levada ao extremo pelos zelotes, revolucionários
fanáticos que optavam pela luta armada, em termos de guerrilha organizando contínuas
investidas contra os cobradores de impostos e cometendo assassínios políticos.
É neste contexto que os representantes dos dois grupos
judaicos acima referenciados, os porta-vozes de duas posições que se
diferenciam da posição extrema dos zelotes, colocam a questão a Jesus. De
facto, os fariseus, do ponto de vista religioso, têm dificuldade em aceitar o
poder romano de ocupação, mas não propõem a revolta armada; e os herodianos
apoiam as autoridades locais, aceitam de bom grado a presença romana e contestam
a luta armada dos fanáticos religiosos. Assim, a pergunta feita a Jesus revela,
não só o escrúpulo religioso dos fariseus, mas também a sua intenção,
juntamente com os herodianos, de envolver Jesus na questão pró ou contra o
poder romano de ocupação. O próprio narrador adverte o narratário leitor ou
ouvinte: os seus interlocutores “queriam apanhá-lo em falta na palavra, isto
é, queriam comprometê-lo de qualquer maneira”, pois, se fosse a favor do
tributo, seria acusado de colaboracionista e de ir contra o Deus de Israel,
Yahweh; e, se fosse contra o tributo, seria acusado de revolucionário, inimigo
do império romano.
Porém, o Mestre dos mestres escapa à cilada que lhe querem
armar fazendo-lhes uma outra pergunta factual aparentemente comezinha, mas
crucial para a resposta e que veio a ser fonte de lição para a prática dos
cristãos. Jesus pede que lhe mostrem uma moeda do tributo, o que significa que
ele não detinha nenhuma e até podia não a conhecer. E, face ao denário de prata
(unidade do sistema
monetário romano, com o qual se paga o tributo ao imperador) que lhe mostraram, interroga-os: “De quem é esta efígie e a inscrição?”. A
moeda mandada cunhar sob a égide de Tibério, imperador desde o ano 14 até 37
d.C., ostenta a efígie do imperador (César)
e a inscrição: Tiberius Caesar divi Augusti filius Augustus
(Tibério César, filho
augusto do divino Augusto)
e, no reverso, Pontifex Maximus (Sumo Pontífice).
E Jesus responde: “Dai,
pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Obviamente, parece que se devia, por um lado, restituir ao
imperador os seus direitos, como pensavam os herodianos que era justo pagar as
taxas imperiais, mas, por isso, eles eram suspeitos de colaboracionismo; e, por
outro lado, parece que se devia reconhecer o princípio de fidelidade a Deus,
único Senhor, como entendiam os fariseus. E era em nome deste princípio que os
zelotes pregavam a necessidade de recusar o tributo e de combater o poder
romano.
A originalidade de Jesus consiste em conjugar pragmaticamente
a lealdade do pagamento do imposto a César com a opção religiosa da fidelidade
a Deus. O pertence de César está bem especificado: o denário, como símbolo do
poder político e administrativo, pois tem a efígie e a inscrição de César; e o
pertence de Deus, definível a partir do conceito de Deus que o Evangelho, aliás
toda a Bíblia, apresenta como pano de fundo de toda a tradição doutrinal,
assumida, purificada e reforçada por Cristo: “Escuta, Israel, o Senhor é o nosso Deus, o Senhor é único…” (Dt 6,4-5; Mt 22,37). A total e íntegra entrega a Deus,
único Senhor, não admite compromissos e partilha com qualquer outro senhor ou
poder concorrente, pois não se pode servir a dois senhores. O ser humano, na
medida em que é “imagem e semelhança” de Deus (Gn 1,26-27), só a Deus pertence e, por isso, deve ser restituído a Deus.
E mais: “Ao Senhor, teu Deus, adorarás e
só a Ele prestarás culto” (Mt 4,10; cf Lc 4,8; Dt 6,13) é a norma absoluta.
***
O profeta Isaías (Is
45,1.4-6), na 1.ª leitura deste domingo, recorda-nos que Deus vai agindo na
nossa história através de homens que são seus instrumentos de salvação no nosso
mundo. O povo estava no exílio da Babilónia. No entanto, Ciro, o rei da Pérsia,
passa a obter uma série de vitórias militares que o prestigiam. A própria
Babilónia será conquistada por Ciro e o povo vai recebê-lo como um libertador.
Não obstante, a situação levanta um problema teológico. Com efeito, as vitórias
de Ciro fazem com que o povo de Deus sonhe com a libertação. E o facto de a
libertação vir dum rei estrangeiro e não dum membro do povo de Deus levanta sérias
dúvidas teológicas existenciais: o Deus de Israel ter-se-á esquecido do seu
povo? Será o deus dos persas mais poderoso do que o Deus de Israel? E, se Ciro
libertar o povo do domínio da Babilónia, a quem se deve atribuir a vitória: ao
Deus de Israel ou a Marduk, deus dos persas?
O Déutero-Isaías, profeta que exerceu a missão entre os
exilados na Babilónia, tenta responder a estas questões. O profeta não duvida de
que o Deus de Israel é mesmo o libertador do povo de Deus. Ciro é efetivamente
um ungido, um escolhido de Deus. Por amor de Jacob e Israel, Deus escolheu e
chamou Ciro para o desempenho duma missão política e militar em prol do povo de
Deus. Mas o Deus de Israel é que é o Deus libertador e o Senhor da
história. Porém, Ele age na história através de homens concretos, que podem não
ter consciência da relevância da sua missão. É também neste sentido que as
escolhas de Deus podem surpreender. Na verdade, Ciro não era um membro do Povo
de Deus, era um pagão, ficando claro que o mais importante não é a força e as
capacidades do intermediário, mas a força de Deus que atua nos seus
escolhidos.
Está perícopa do livro de Isaías configura assim uma forte
provocação para todos aqueles que exercem alguma responsabilidade política. Os
líderes da comunidade, numa perspetiva de fé, devem entender o seu serviço como
uma missão confiada por Deus para o bem comum da sociedade. Assim, os líderes
políticos – ideais e eficazes – deveriam manter uma atitude orante para
descobrirem qual é a vontade e qual é o projeto de Deus, para efetivamente poderem
ser conscientes instrumentos de Deus no mundo. No entanto, também hoje o Senhor
pode servir-se, para realização do seu desígnio, de não crentes sensíveis aos
valores da magnanimidade, da justiça, da equidade e da paz
O Evangelho já comentado parcialmente acima abre para os
nossos deveres cívicos e para as nossas responsabilidades no âmbito da
comunidade política e social. Na verdade, Mateus, depois de ter narrado as três
parábolas apresentadas pelo Mestre que ilustravam a recusa dos líderes judeus
em aceitar a pessoa e a mensagem de Jesus, relata três controvérsias de Jesus
com os fariseus. Estas controvérsias são provocadas pelos fariseus que procuram
encontrar motivos para acusar Jesus no sinédrio e tribunal romano. Jesus entrara
triunfalmente em Jerusalém e adensa-se o confronto entre Jesus e os líderes
judaicos que o conduzirá à paixão e morte na cruz.
A primeira controvérsia de Jesus com os fariseus e com os herodianos,
que o evangelho deste domingo narra, relaciona-se, como se viu, com a questão
muito delicada da licitude ou ilicitude de pagar os impostos ao Imperador romano
que dominava aquele território.
Com a sua resposta Jesus afirma que os seus seguidores devem
ser bons cidadãos e cumprir as suas obrigações políticas e sociais, até para
poderem cumprir o dever de exigir dos governantes que se empenhem na sua missão
de poder como serviço. Não há bom cristão que não seja bom cidadão, como não
pode haver um profissional cristão que não seja bom profissional. Quem é
cristão tem de ser bom cidadão e cumprir com todas as suas obrigações sociais e
políticas. Nunca o cristão poderá demitir-se dos nem dos direitos nem deveres
para com a sociedade. Porém, deve advertir-se que a resposta de Jesus não
implica uma submissão incondicional à autoridade política. Nós somos servidores
de Deus e dos homens e não serventuários servis de quem quer que seja. Assim,
quando estão em confronto claro os interesses de Deus (verdade, fé, evangelização, culto, opção pelos pobres,
marginalizados indefesos, vida dos homens…) e os interesses dos homens (poderosos,
gananciosos, sanguinários…), a escolha é só uma: Deus (cf
Mt 16,23). E, quando se confronta a obediência a Deus com a obediência aos
homens, a posição tem de ser claramente pela obediência a Deus (cf At 5,29).
Mais: Jesus não proíbe a resistência ao tirano que espezinha
os súbditos, como Tomás de Aquino veio a ensinar mais tarde. Obviamente que
prefere a resistência não violenta. E, sobretudo, em qualquer tempo e lugar, os
cristãos não podem compactuar com sistemas de corrupção, com fuga aos impostos,
branqueamento de capitais, fraude fiscal – pois o cristão tem de contribuir
para o bem comum.
Também importa anotar que não é do agrado de Deus a
concentração dos poderes – político e religioso – numa só entidade, como
algumas vezes se tem tentado. Nem o Imperador (Rei
ou Presidente da República) pode assumir-se como o Chefe de Igreja nem o Papa pode
arvorar-se em Chefe dos Estados. O cesaropapismo é censurável, por qualquer vertente
que seja considerado.
Todavia, o cristão não pode tornar-se por si fonte de
conflito, deve tentar pragmaticamente viver a vida do cidadão tentando
articulá-la com a vida cristã. Não pode refugiar-se no seu reduto, mas partir
para o meio dos outros, estando no mundo, por um lado, e, por outro, rejeitando
pela vida o espírito mundano e explicando oportuna e inoportunamente as razões
da sua esperança. Deve assim aceitar a autonomia das realidades terrestres, não
confundindo Igreja com Estado, mas sem negar a cooperação recíproca, ao menos
nas causas comuns.
O cristão não pode limitar-se a ser um bom cidadão. Na
verdade, o cristão é o que foi criado à imagem e semelhança de Deus, é quem transporta
em si a imagem de Deus, é aquele que é pertença de Deus, pois foi configurado
com Cristo pelo Batismo. Assim sendo, o cristão deve-se reconhecer como
pertença do Senhor. Fomos criados à imagem e semelhança de Deus e só seremos
pessoas verdadeiramente felizes e realizadas na medida em que vivermos em
comunhão com Deus. Sendo assim, o homem deve entregar a sua vida e a sua
existência a Deus. Só assim é que podemos ser felizes. No entanto, não são poucos
os que, esquecendo-se de que foram criados à imagem e semelhança de Deus,
entregam a sua vida, não a Deus, mas a vários ídolos: o clube, a ideologia, o
ter, o prazer, o poder, entre outros. No entanto, quando uma pessoa
entrega a sua vida, não a Deus, mas a estes ídolos, vê que a vida não é marcada
pela felicidade e entra no mecanismo de escravidão e infelicidade. Só seremos
pessoas felizes e realizadas quando entregarmos a nossa vida, toda a nossa
existência a Deus. Criados por Deus e à imagem de Deus só seremos felizes se
construirmos a nossa vida com Deus e em Deus.
E, enquanto vamos servindo a Deus e cumprindo as nossas
obrigações cívicas, temos de saber levantar a voz e empunhar a pena (pessoalmente ou como Igreja – hierarquia e povo) pela causa de
Deus presente nos doentes, pobres, débeis, descartados para que também as
autoridades cumpram a missão de os integrar do dinamismo da consecução do bem
comum na justiça e na dignidade. E, seja como for, a Igreja de voz profética
pelos seus pobres (cf Lc 1,53) não pode
deixar de rezar pelos governantes, mesmo que eventualmente sejam seus
perseguidores e até detratores da sua ação evangélica e promocional (cf Mt 5,44; Lc 6,27-28). Esta será a humildade e a grandeza do seu serviço e ser de
Igreja em saída ou em missão pela justiça, pela saúde, pela educação e pela
paz.
Não é, pois, Deus ou César o que está em causa,
mas Deus
e César autónomos e não antagonistas nem confundidos, mas com Deus e os
seus pobres em primeiro lugar!
2017.10.22 – Louro de Carvalho
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