segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Os cristãos devem dar novamente alma à Europa

Trata-se de uma afirmação-apelo do Papa Francisco, que recebeu, na tarde do passado dia 28 de outubro, na Sala do Sínodo, no Vaticano, os participantes na Conferência promovida pela Santa Sé e pela COMECE (Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia) em torno do tema “Repensar a Europa. Uma contribuição cristã para o futuro do projeto europeu”. Foram centenas de líderes políticos e da Igreja que se reuniram, entre os dias 27 e 29, no Vaticano, nesta conferência internacional para refletir a temática em causa.
Participaram 350 pessoas, de 28 delegações de todos os países da UE: políticos, cardeais (entre eles, Reinhard Marx, Presidente da COMECE), bispos, sacerdotes, embaixadores, académicos, representantes de diversas organizações e movimentos católicos e de outras denominações cristãs. Entre as figuras de proa esteve o Presidente do Parlamento Europeu, António Tajani, o Vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans e o Secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin.
Dom Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga e delegado português na COMECE, foi um dos representantes de Portugal na iniciativa. Mas também participaram: Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz; o ex-ministro António Bagão Félix; o eurodeputado José Manuel Fernandes; a antiga deputada Maria Rosário Carneiro; o deputado João Poças Santos; o Padre Manuel Augusto Ferreira, Superior Geral dos Missionários Combonianos; Sofia Salgado Pinto, Diretora da Faculdade de Economia e Gestão da UCP, Porto; José Veiga de Macedo, Vice-presidente da Federação Europeia das Associações de Famílias Católicas; e o Padre Duarte da Cunha, Secretário-Geral do Conselho das CCEE (Conferências Episcopais da Europa).
Em declarações à agência Lusa, o Arcebispo de Braga disse que se esperava uma reflexão e um contributo da Igreja para a Europa na diversidade e na unidade. E à agência Ecclesia salientou que a UE não pode ser “simplesmente um território” ou “um espaço geográfico onde circula uma mesma moeda”, frisando que o contexto atual da UE, 60 anos depois da sua criação, é de “apreensão” e “ceticismo”, pelas divisões e desafios que estão a surgir, sendo para o responsável católico este o momento certo para “parar e refletir”. Disse que este encontro é uma iniciativa muito feliz, oportuna, que poderá trazer ou não resultados imediatos, mas que “não deixará ficar as coisas na mesma”, sublinhando “a preocupação pela unidade” e por passar “das palavras aos atos”. E, no atinente ao contributo da Igreja Católica, admitindo que a matriz cristã poderá ajudar na busca de um caminho novo, o Arcebispo de Braga sustentou:
Teria sido fundamental se a referência à matriz cristã tivesse mesmo sido consignada na origem da UE e ficasse como um princípio norteador. Não o foi, mas este encontro poderá ser uma ajuda para reconhecer aquilo que é elementar para o funcionamento da vida da Igreja, que é um apelo à unidade de todos, a partir de uma fraternidade e de um reconhecimento efetivo da diferença, e por isso mesmo também da diversidade.”.
Segundo os organizadores, o Papa reiterou o seu compromisso para uma reflexão comum sobre o futuro da UE e recordou o apoio da Igreja ao projeto de paz. Por outro lado, a Conferência visa assinalar o 60.º aniversário da assinatura do Tratado de Roma.
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Após as palavras do Presidente da COMECE e do Presidente do Parlamento Europeu, Francisco proferiu uma alocução em que referiu que “o diálogo destes dias ofereceu a oportunidade de refletir de modo mais amplo sobre o futuro da Europa a partir duma multiplicidade de perspetivas”, mercê da presença de diversas personalidades eclesiais, políticas, académicas ou simplesmente representantes da sociedade civil. E, Salientando a possibilidade de os jovens exprimirem “as suas expectativas e esperanças, debatendo com os mais idosos”, que tiveram também o ensejo de “oferecer a sua bagagem carregada de reflexões e experiências”, declarou:
É significativo que este encontro tenha querido ser, antes de tudo, um diálogo no espírito dum debate livre e aberto, por meio do qual deseja enriquecer-se reciprocamente e iluminar o caminho do futuro da Europa, ou seja, o caminho que todos juntos somos chamados a percorrer para superar as crises que atravessamos e enfrentar os desafios que nos esperam”.
No quadro da contribuição cristã para o futuro do continente, devemos interrogar-nos sobre o nosso papel de cristãos “nestas terras tão ricamente plasmadas no decorrer dos séculos pela fé”, sobre a nossa responsabilidade num tempo em que o rosto da Europa é cada vez mais marcado por “uma pluralidade de culturas e de religiões, enquanto para muitos, o cristianismo é percebido como um elemento do passado, distante e estranho”.
No atinente à relação Pessoa-Comunidade, o Papa evidencia a personalidade e obra de São Bento, que surgiu – “no ocaso da antiga civilização”, em que as glórias de Roma eram ruínas, ainda hoje admiráveis, e novos povos pressionavam as fronteiras do Império – a fazer ressoar a voz do salmista: “Quem é o homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?”
Pespegando esta interrogação no Prólogo da Regra, Bento orientou a atenção dos coevos e a nossa sobre uma conceção do homem radicalmente diferente da que distinguira o classicismo greco-romano e da que havia caraterizado as invasões bárbaras. Assim diz o Papa:
O homem já não é mais simplesmente um ‘civis’, um cidadão dotado de privilégios para consumar-se no ócio; já não é mais um ‘miles’, combativo servidor do poder de turno; sobretudo já não é mais um ‘servus’, mercadoria de troca privada de liberdade, destinada unicamente ao trabalho e ao desgaste”.
Bento, segundo o Pontífice, não se preocupava com a condição social, da riqueza ou do poder; visava “a natureza comum de cada ser humano, que, qualquer que seja a sua condição, anela certamente a vida e deseja dias felizes”. Nestes termos, assegura o Pontífice:
Para Bento, não existem funções, existem pessoas. Não existem adjetivos, existem substantivos. É justamente este um dos valores fundamentais que o cristianismo trouxe: o sentido da pessoa, constituída à imagem de Deus. A partir de tal princípio, construíram-se os mosteiros, que com o tempo se converteram em berço do renascimento humano, cultural e religioso, e também económico do continente.”.
Assim, Francisco sustenta que “a primeira, e talvez maior, contribuição que os cristãos podem dar à Europa de hoje é recordar que ela não é uma coleção de números ou de instituições, mas sim que é feita de pessoas”. A contrario, denuncia a situação que grassa pela Europa:
Nota-se como frequentemente qualquer debate se reduz facilmente a uma discussão de cifras. Não existem cidadãos, existem votos. Não existem os migrantes, existem as cotas. Não existem trabalhadores, existem os indicadores económicos. Não existem os pobres, existem os bolsões de pobreza.”.
O concreto da pessoa reduziu-se a princípio abstrato, cómodo e tranquilizador, quando “as pessoas têm rostos”, pelo que “nos obrigam a uma responsabilidade real, concreta, ‘pessoal’, ao passo que “as cifras têm a ver com raciocínios”, que, mesmo úteis e importantes, “permanecem sempre sem alma”, oferecendo-nos “um álibi para não nos comprometermos, porque nunca nos chegam a tocar a própria carne”.
Reconhecendo que o outro é uma pessoa implica valorizar o que nos une a ele e o que o une a nós. Então, “o ser pessoa liga-nos aos outros, faz-nos ser comunidade. Por conseguinte, o Papa enuncia a segunda contribuição dos cristãos para o futuro da Europa: “a redescoberta do sentido de pertença a uma comunidade”. Com razão os Padres fundadores do projeto europeu escolheram a palavra “comunidade” para identificar o novo sujeito político. E diz Bergoglio:
A comunidade é o maior antídoto contra os individualismos que caraterizam o nosso tempo, contra aquela tendência difusa hoje no Ocidente a conceber-se e viver na solidão. Subentende-se o conceito de liberdade, interpretando-o como se quase fosse o dever de estar sozinhos, livres de qualquer vínculo e, como consequência, construiu-se uma sociedade desarraigada, privada de sentido de pertença e de herança. E isto para mim é grave.”.
A identidade dos cristãos é antes de tudo relacional, pois, como explica o Pontífice:
Estão inseridos como membros de um corpo, a Igreja (cf 1Cor 12,12), no qual cada um, com a própria identidade e peculiaridade, participa livremente na edificação comum. Analogamente, tal relação dá-se também no âmbito das relações interpessoais e da sociedade civil. Diante do outro, cada um descobre os seus méritos e defeitos; os seus pontos de força e as suas fraquezas: por outras palavras, descobre o seu rosto, compreende a sua identidade.”.
Passando, depois, a abordar a temática da família como comunicada basilar, Francisco sustenta:
A família, como primeira comunidade, permanece o mais fundamental lugar de tal descoberta. Nela, a diversidade se exalta e ao mesmo tempo se recompõe na unidade. A família é a união harmónica das diferenças entre homem e a mulher, que é tanto mais verdadeira e profunda quanto mais generativa é, capaz de abrir-se à vida e aos outros. Da mesma forma, uma comunidade civil é viva se sabe ser aberta, se sabe acolher a diversidade e os dotes de cada um e ao mesmo tempo se sabe gerar novas vidas, como também desenvolvimento, trabalho, inovação e cultura.”.
E conclui este capítulo dizendo:
Pessoa e comunidade são, portanto, os fundamentos da Europa que como cristãos queremos e podemos contribuir para construir. Os tijolos de tal edifício chamam-se: diálogo, inclusão, solidariedade, desenvolvimento e paz.”.
Depois, dá uma pincelada por cada um dos tijolos do edifício europeu.
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Sendo a Europa – do Atlântico aos Urais, do Pólo Norte ao Mar Mediterrâneo – um lugar de diálogo sincero e construtivo, em que todos os protagonistas têm mesma dignidade, diz:
Somos chamados a construir uma Europa na qual nos podemos encontrar e confrontar em todos os níveis, assim como o era em um certo sentido a antiga ágora. Tal era, de facto, a praça da polis. Não só espaço de troca económica, mas também coração nevrálgico da política, sede em que se elaboravam as leis para o bem-estar de todos, lugar para o qual assomava o templo, de forma que à dimensão horizontal da vida quotidiana não faltasse nunca o respiro transcendente que faz olhar para além do efémero, do passageiro, do provisório.”.
Aqui, aponta o preconceito laicista, que não percebe o valor positivo para a sociedade do papel público e objetivo da religião, preferindo restringi-la à esfera privada e sentimental, com a imposição dum certo pensamento único, tão difuso nos foros internacionais, que vê na afirmação da identidade religiosa perigo para si e para a própria hegemonia, acabando por favorecer uma falsa contraposição entre o direito à liberdade religiosa e outros direitos fundamentais. Ora, favorecer o diálogo é responsabilidade fundamental da política, que, ao invés, se transforma em lugar de choque entre forças opostas induzindo a substituição das vozes do diálogo pelos “gritos das reivindicações”. Assim, observa:
De vários lugares se tem a sensação de que o bem comum não é mais o objetivo primário perseguido e tal desinteresse é percebido por muitos cidadãos. Encontram assim terreno fértil em muitos países as formações extremistas e populistas que fazem do protesto o coração de sua mensagem política, sem todavia oferecer a alternativa de um construtivo projeto político. O diálogo é substituído ou por uma contraposição estéril – que pode também colocar em perigo a convivência civil – ou uma hegemonia do poder político que aprisiona e impede uma verdadeira vida democrática. Num caso, são destruídas as pontes; e no outro, constroem-se muros. E hoje a Europa conhece ambos.”.
Por isso, os cristãos devem favorecer o diálogo e “dar nova dignidade à política”, enquanto “máximo serviço ao bem comum e não como uma ocupação de poder”, o que requer “adequada formação”, porque a política não é ‘arte da improvisação’, mas expressão de abnegação e dedicação pessoal em prol da comunidade: “ser líder exige estudo, preparação e experiência”.
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Num âmbito inclusivo, “a responsabilidade comum dos líderes é a de favorecer uma Europa que seja comunidade inclusiva, livre de um equívoco de fundo”. Mas “inclusão não é sinónima de uniformização indiferenciada”. Ao invés, “é-se autenticamente inclusivos quando se sabe valorizar as diferenças, assumindo-as como património comum e enriquecedor”. Nesta ótica, diz o Papa, os migrantes, refugiados e deslocados “são um recurso mais do que um peso”, sendo os cristãos chamados a meditar a afirmação de Jesus: “Era estrangeiro e me acolhestes” (Mt 25,35).
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Como comunidade inclusiva, que a Europa deve ser e por que deve trabalhar incessantemente, há de ser espaço de solidariedade, pois ser comunidade implica apoiarmo-nos “reciprocamente” e que “não sejam só alguns a poder carregar pesos e realizar sacrifícios extraordinários, enquanto outros permanecem petrificados na defesa de posições privilegiadas”. Diz o Papa:
Uma União Europeia que, ao enfrentar as suas crises, não redescobre o sentido de ser uma única comunidade que se sustenta e se ajuda – e não um conjunto de pequenos grupos de interesse – perderia não somente um dos desafios mais importantes da sua história, mas também uma das grandes oportunidades para o seu futuro”.
Assim, a solidariedade traz consigo a subsidiariedade, que diz respeito não só às relações entre os Estados e as Regiões da Europa (e cada instância deve fazer tudo o que pode, tendo o direito de esperar das mais altas ajuda ao que não pode só por si fazer). Por isso, o Papa advoga:
Ser uma comunidade solidária significa ter cuidado pelos mais fracos da sociedade, pelos pobres, por aqueles que são descartados pelos sistemas económicos e sociais, a começar pelos idosos e pelos desempregados. Mas a solidariedade exige também que se recupere a colaboração e o apoio recíproco entre as gerações.”.
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Como fonte de desenvolvimento, a Europa, redescoberta como comunidade, deve promover um desenvolvimento autêntico, que, para o ser, tem de ser integral e harmónico, votado à promoção de cada homem e de todo o homem, como sublinhou um eminente especialista:
Nós não aceitamos separar o económico do humano, o desenvolvimento da civilização onde se insere. Aquilo que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até chegar a compreender toda a humanidade.”.
E para o desenvolvimento do homem contribui o trabalho para todos e de todos com as condições adequadas – enquanto fator essencial para a dignidade e amadurecimento da pessoa.
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E, enquanto promessa de paz, o compromisso dos cristãos na Europa deve secundar o pensamento principal que animou aqueles que assinaram os Tratados de Roma. Após duas Guerras Mundiais (passa o centenário da 1.ª) e violências atrozes de povos contra povos, chegara o tempo de afirmar o direito à paz. Porém, todos “vemos como a paz é um bem frágil e as lógicas particulares e nacionais correm o risco de frustrar os sonhos corajosos dos fundadores da Europa”. Por isso, somos instados a ser artífices da paz, o que significa não só “trabalhar para evitar as tensões internas, trabalhar para pôr fim a numerosos conflitos que ensanguentam o mundo ou levar alívio a quem sofre”, mas também “fazer-se promotor de uma cultura da paz”. Isto, como diz o Papa, “exige amor à verdade, sem a qual não podem existir relações humanas autênticas, e busca da justiça, sem a qual o abuso é a norma imperante de qualquer comunidade”. A UE manterá fidelidade ao compromisso de paz na medida em que não perder a esperança e se renovar “para responder à necessidade e às expectativas dos próprios cidadãos”.
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Por fim, o Papa pede aos cristãos que sejam “alma da Europa”. E, citando a Carta a Diogneto, afirma que “como é a alma no corpo, assim no mundo são os cristãos”. Assim, “eles são chamados a dar novamente alma à Europa, a despertar a consciência, não para ocupar espaços”, mas “para animar processos que gerem novos dinamismos na sociedade”. E cita outro exemplo:
Foi justamente o que fez São Bento […]: não se deteve em ocupar os espaços dum mundo perdido e confuso. Sustentado pela sua fé, olhou além e de uma pequena gruta em Subiaco deu vida a um movimento corajoso e irreversível que redesenhou o rosto da Europa. Ele, que foi ‘mensageiro de paz, realizador de união, mestre de civilização’ mostre também a nós cristãos de hoje como da fé brota sempre uma esperança alegre, capaz de mudar o mundo.”.
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Sendo a Europa assim, haverá paz, desenvolvimento, solidariedade – de pessoas e comunidade!

2017.10.30 – Louro de Carvalho

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