Trata-se de uma afirmação-apelo do Papa Francisco, que
recebeu, na tarde do passado dia 28 de outubro, na Sala do Sínodo, no Vaticano,
os participantes na Conferência promovida pela Santa Sé e pela COMECE (Comissão
dos Episcopados da Comunidade Europeia) em
torno do tema “Repensar a Europa. Uma
contribuição cristã para o futuro do projeto europeu”. Foram centenas de líderes políticos e da
Igreja que se reuniram, entre os dias 27 e 29, no Vaticano, nesta conferência
internacional para refletir a temática em causa.
Participaram
350 pessoas, de 28 delegações de todos os países da UE: políticos, cardeais (entre eles, Reinhard Marx, Presidente da
COMECE), bispos,
sacerdotes, embaixadores, académicos, representantes de diversas organizações e
movimentos católicos e de outras denominações cristãs. Entre as figuras de proa
esteve o Presidente do Parlamento Europeu, António Tajani, o Vice-presidente da
Comissão Europeia, Frans Timmermans e o Secretário de Estado do Vaticano, cardeal
Pietro Parolin.
Dom
Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga e delegado português na COMECE, foi um dos
representantes de Portugal na iniciativa. Mas também participaram: Pedro Vaz Patto, presidente da Comissão Nacional
Justiça e Paz; o ex-ministro António Bagão Félix; o eurodeputado José Manuel
Fernandes; a antiga deputada Maria Rosário Carneiro; o deputado João Poças
Santos; o Padre Manuel Augusto Ferreira, Superior Geral dos Missionários
Combonianos; Sofia Salgado Pinto, Diretora da Faculdade de Economia e Gestão da
UCP, Porto; José Veiga de Macedo, Vice-presidente da Federação Europeia das
Associações de Famílias Católicas; e o Padre Duarte da Cunha, Secretário-Geral
do Conselho das CCEE (Conferências Episcopais da Europa).
Em
declarações à agência Lusa, o
Arcebispo de Braga disse que se esperava uma reflexão e um contributo da Igreja
para a Europa na diversidade e na unidade. E à agência Ecclesia salientou que a
UE não pode ser “simplesmente um território” ou “um espaço geográfico onde
circula uma mesma moeda”, frisando que o contexto atual da UE, 60 anos depois
da sua criação, é de “apreensão” e “ceticismo”, pelas divisões e desafios que
estão a surgir, sendo para o responsável católico este o momento certo para
“parar e refletir”. Disse que este encontro é uma iniciativa muito feliz,
oportuna, que poderá trazer ou não resultados imediatos, mas que “não deixará
ficar as coisas na mesma”, sublinhando “a preocupação pela unidade” e por
passar “das palavras aos atos”. E, no atinente ao contributo da Igreja Católica,
admitindo que a matriz cristã poderá ajudar na busca de um caminho novo, o Arcebispo
de Braga sustentou:
“Teria sido fundamental se a
referência à matriz cristã tivesse mesmo sido consignada na origem da UE e
ficasse como um princípio norteador. Não o foi, mas este encontro poderá ser
uma ajuda para reconhecer aquilo que é elementar para o funcionamento da vida
da Igreja, que é um apelo à unidade de todos, a partir de uma fraternidade e de
um reconhecimento efetivo da diferença, e por isso mesmo também da diversidade.”.
Segundo
os organizadores, o Papa reiterou o seu compromisso para uma reflexão comum
sobre o futuro da UE e recordou o apoio da Igreja ao projeto de paz. Por outro
lado, a Conferência visa assinalar o 60.º aniversário da assinatura do Tratado
de Roma.
***
Após as
palavras do Presidente da COMECE e do Presidente do Parlamento
Europeu, Francisco proferiu uma alocução em que referiu que “o diálogo destes
dias ofereceu a oportunidade de refletir de modo mais amplo sobre o futuro da
Europa a partir duma multiplicidade de perspetivas”, mercê da presença de
diversas personalidades eclesiais, políticas, académicas ou simplesmente
representantes da sociedade civil. E, Salientando a possibilidade de os jovens exprimirem
“as suas expectativas e esperanças, debatendo com os mais idosos”, que tiveram também
o ensejo de “oferecer a sua bagagem carregada de reflexões e experiências”,
declarou:
“É
significativo que este encontro tenha querido ser, antes de tudo, um diálogo no
espírito dum debate livre e aberto, por meio do qual deseja enriquecer-se
reciprocamente e iluminar o caminho do futuro da Europa, ou seja, o caminho que
todos juntos somos chamados a percorrer para superar as crises que atravessamos
e enfrentar os desafios que nos esperam”.
No quadro da contribuição cristã para o futuro do
continente, devemos interrogar-nos sobre o nosso papel de cristãos “nestas
terras tão ricamente plasmadas no decorrer dos séculos pela fé”, sobre a nossa
responsabilidade num tempo em que o rosto da Europa é cada vez mais marcado por
“uma pluralidade de culturas e de religiões, enquanto para muitos, o
cristianismo é percebido como um elemento do passado, distante e estranho”.
No atinente à relação Pessoa-Comunidade, o Papa
evidencia a personalidade e obra de São Bento, que surgiu – “no ocaso da antiga
civilização”, em que as glórias de Roma eram ruínas, ainda hoje admiráveis, e novos
povos pressionavam as fronteiras do Império – a fazer ressoar a voz do
salmista: “Quem é o homem que quer a vida
e deseja ver dias felizes?”
Pespegando esta interrogação no Prólogo da Regra,
Bento orientou a atenção dos coevos e a nossa sobre uma conceção do homem
radicalmente diferente da que distinguira o classicismo greco-romano e da que
havia caraterizado as invasões bárbaras. Assim diz o Papa:
“O homem já não
é mais simplesmente um ‘civis’, um
cidadão dotado de privilégios para consumar-se no ócio; já não é mais um ‘miles’, combativo servidor do poder de turno;
sobretudo já não é mais um ‘servus’,
mercadoria de troca privada de liberdade, destinada unicamente ao trabalho e ao
desgaste”.
Bento, segundo o Pontífice, não se preocupava com a
condição social, da riqueza ou do poder; visava “a natureza comum de cada ser
humano, que, qualquer que seja a sua condição, anela certamente a vida e deseja
dias felizes”. Nestes termos, assegura o Pontífice:
“Para Bento,
não existem funções, existem pessoas. Não existem adjetivos, existem
substantivos. É justamente este um dos valores fundamentais que o cristianismo
trouxe: o sentido da pessoa, constituída à imagem de Deus. A partir de tal
princípio, construíram-se os mosteiros, que com o tempo se converteram em berço
do renascimento humano, cultural e religioso, e também económico do continente.”.
Assim, Francisco sustenta que “a primeira, e talvez maior,
contribuição que os cristãos podem dar à Europa de hoje é recordar que ela não
é uma coleção de números ou de instituições, mas sim que é feita de pessoas”.
A contrario, denuncia a situação que
grassa pela Europa:
“Nota-se como frequentemente qualquer debate se reduz
facilmente a uma discussão de cifras. Não existem cidadãos, existem votos. Não
existem os migrantes, existem as cotas. Não existem trabalhadores, existem os
indicadores económicos. Não existem os pobres, existem os bolsões de pobreza.”.
O concreto da pessoa reduziu-se a princípio abstrato, cómodo
e tranquilizador, quando “as pessoas têm rostos”, pelo que “nos obrigam a uma
responsabilidade real, concreta, ‘pessoal’, ao passo que “as cifras têm a ver
com raciocínios”, que, mesmo úteis e importantes, “permanecem sempre sem alma”,
oferecendo-nos “um álibi para não nos comprometermos, porque nunca nos chegam a tocar a
própria carne”.
Reconhecendo que o outro é uma pessoa implica
valorizar o que nos une a ele e o que o une a nós. Então, “o ser pessoa liga-nos
aos outros, faz-nos ser comunidade. Por conseguinte, o Papa enuncia a segunda
contribuição dos cristãos para o futuro da Europa: “a redescoberta do sentido de pertença a uma comunidade”. Com razão os Padres fundadores do projeto europeu
escolheram a palavra “comunidade” para identificar o novo sujeito político. E
diz Bergoglio:
“A comunidade é
o maior antídoto contra os individualismos que caraterizam o nosso tempo,
contra aquela tendência difusa hoje no Ocidente a conceber-se e viver na
solidão. Subentende-se o conceito de liberdade, interpretando-o como se quase
fosse o dever de estar sozinhos, livres de qualquer vínculo e, como
consequência, construiu-se uma sociedade desarraigada, privada de sentido de
pertença e de herança. E isto para mim é grave.”.
A identidade dos cristãos é antes de tudo relacional,
pois, como explica o Pontífice:
“Estão
inseridos como membros de um corpo, a Igreja (cf 1Cor 12,12), no qual cada um,
com a própria identidade e peculiaridade, participa livremente na edificação
comum. Analogamente, tal relação dá-se também no âmbito das relações
interpessoais e da sociedade civil. Diante do outro, cada um descobre os seus
méritos e defeitos; os seus pontos de força e as suas fraquezas: por outras
palavras, descobre o seu rosto, compreende a sua identidade.”.
Passando, depois, a abordar a temática da família como
comunicada basilar, Francisco sustenta:
“A família,
como primeira comunidade, permanece o mais fundamental lugar de tal descoberta.
Nela, a diversidade se exalta e ao mesmo tempo se recompõe na unidade. A
família é a união harmónica das diferenças entre homem e a mulher, que é tanto
mais verdadeira e profunda quanto mais generativa é, capaz de abrir-se à vida e
aos outros. Da mesma forma, uma comunidade civil é viva se sabe ser aberta, se
sabe acolher a diversidade e os dotes de cada um e ao mesmo tempo se sabe gerar
novas vidas, como também desenvolvimento, trabalho, inovação e cultura.”.
E conclui este capítulo dizendo:
“Pessoa e
comunidade são, portanto, os fundamentos da Europa que como cristãos queremos e
podemos contribuir para construir. Os tijolos de tal edifício chamam-se:
diálogo, inclusão, solidariedade, desenvolvimento e paz.”.
Depois, dá uma pincelada por cada um dos tijolos do
edifício europeu.
***
Sendo a Europa – do Atlântico aos Urais, do Pólo Norte
ao Mar Mediterrâneo – um lugar de diálogo sincero e
construtivo, em que todos os protagonistas têm mesma dignidade, diz:
“Somos chamados
a construir uma Europa na qual nos podemos encontrar e confrontar em todos os
níveis, assim como o era em um certo sentido a antiga ágora. Tal era, de facto,
a praça da polis. Não só espaço de
troca económica, mas também coração nevrálgico da política, sede em que se
elaboravam as leis para o bem-estar de todos, lugar para o qual assomava o
templo, de forma que à dimensão horizontal da vida quotidiana não faltasse
nunca o respiro transcendente que faz olhar para além do efémero, do
passageiro, do provisório.”.
Aqui, aponta o preconceito laicista, que não percebe o
valor positivo para a sociedade do papel público e objetivo da religião,
preferindo restringi-la à esfera privada e sentimental, com a imposição dum
certo pensamento único, tão difuso nos foros internacionais, que vê na
afirmação da identidade religiosa perigo para si e para a própria hegemonia,
acabando por favorecer uma falsa contraposição entre o direito à liberdade
religiosa e outros direitos fundamentais. Ora, favorecer o diálogo é responsabilidade
fundamental da política, que, ao invés, se transforma em lugar de choque entre
forças opostas induzindo a substituição das vozes do diálogo pelos “gritos das
reivindicações”. Assim, observa:
“De vários
lugares se tem a sensação de que o bem comum não é mais o objetivo primário
perseguido e tal desinteresse é percebido por muitos cidadãos. Encontram assim
terreno fértil em muitos países as formações extremistas e populistas que fazem
do protesto o coração de sua mensagem política, sem todavia oferecer a
alternativa de um construtivo projeto político. O diálogo é substituído ou por
uma contraposição estéril – que pode também colocar em perigo a convivência
civil – ou uma hegemonia do poder político que aprisiona e impede uma verdadeira
vida democrática. Num caso, são destruídas as pontes; e no outro, constroem-se muros.
E hoje a Europa conhece ambos.”.
Por isso, os cristãos devem favorecer o diálogo e “dar
nova dignidade à política”, enquanto “máximo
serviço ao bem comum e não como uma ocupação de poder”, o que requer “adequada
formação”, porque a política não é ‘arte da improvisação’, mas expressão de
abnegação e dedicação pessoal em prol da comunidade: “ser líder exige estudo,
preparação e experiência”.
***
Num âmbito inclusivo, “a
responsabilidade comum dos líderes é a de favorecer uma Europa que seja
comunidade inclusiva, livre de um equívoco de fundo”. Mas “inclusão não é
sinónima de uniformização indiferenciada”. Ao invés, “é-se autenticamente
inclusivos quando se sabe valorizar as diferenças, assumindo-as como património
comum e enriquecedor”. Nesta ótica, diz
o Papa, os migrantes, refugiados e deslocados “são um recurso mais do que um
peso”, sendo os cristãos chamados a meditar a afirmação de Jesus: “Era estrangeiro e me acolhestes” (Mt
25,35).
***
Como comunidade inclusiva, que a Europa deve ser e por
que deve trabalhar incessantemente, há de ser espaço de solidariedade, pois ser comunidade implica
apoiarmo-nos “reciprocamente” e que “não sejam só alguns a poder carregar pesos
e realizar sacrifícios extraordinários, enquanto outros permanecem petrificados
na defesa de posições privilegiadas”. Diz o Papa:
“Uma União
Europeia que, ao enfrentar as suas crises, não redescobre o sentido de ser uma
única comunidade que se sustenta e se ajuda – e não um conjunto de pequenos
grupos de interesse – perderia não somente um dos desafios mais importantes da
sua história, mas também uma das grandes oportunidades para o seu futuro”.
Assim, a solidariedade traz consigo a subsidiariedade,
que diz respeito não só às relações entre os Estados e as Regiões da Europa (e cada
instância deve fazer tudo o que pode, tendo o direito de esperar das mais altas
ajuda ao que não pode só por si fazer). Por
isso, o Papa advoga:
“Ser uma
comunidade solidária significa ter cuidado pelos mais fracos da sociedade,
pelos pobres, por aqueles que são descartados pelos sistemas económicos e
sociais, a começar pelos idosos e pelos desempregados. Mas a solidariedade
exige também que se recupere a colaboração e o apoio recíproco entre as
gerações.”.
***
Como fonte de desenvolvimento, a Europa, redescoberta
como comunidade, deve promover um desenvolvimento autêntico, que, para o ser,
tem de ser integral e harmónico, votado à promoção de cada homem e de todo o
homem, como sublinhou um eminente especialista:
“Nós não
aceitamos separar o económico do humano, o desenvolvimento da civilização onde
se insere. Aquilo que conta para nós é o homem, cada homem, cada grupo de
homens, até chegar a compreender toda a humanidade.”.
E para o desenvolvimento do homem contribui o trabalho
para todos e de todos com as condições adequadas – enquanto fator essencial
para a dignidade e amadurecimento da pessoa.
***
E, enquanto promessa de paz, o compromisso dos
cristãos na Europa deve secundar o pensamento principal que animou aqueles que
assinaram os Tratados de Roma. Após duas Guerras Mundiais (passa o centenário
da 1.ª) e violências atrozes de povos contra povos, chegara o tempo de afirmar
o direito à paz. Porém, todos “vemos como a paz é um bem frágil e as lógicas
particulares e nacionais correm o risco de frustrar os sonhos corajosos dos
fundadores da Europa”. Por isso, somos instados a ser artífices da paz, o que significa não só “trabalhar para evitar as
tensões internas, trabalhar para pôr fim a numerosos conflitos que ensanguentam
o mundo ou levar alívio a quem sofre”, mas também “fazer-se promotor de uma
cultura da paz”. Isto, como diz o Papa, “exige amor à verdade, sem a qual não
podem existir relações humanas autênticas, e busca da justiça, sem a qual o
abuso é a norma imperante de qualquer comunidade”. A UE manterá fidelidade ao
compromisso de paz na medida em que não perder a esperança e se renovar “para
responder à necessidade e às expectativas dos próprios cidadãos”.
***
Por fim, o Papa pede aos cristãos que sejam “alma
da Europa”. E, citando a Carta a Diogneto, afirma que “como é a alma no corpo, assim no mundo são
os cristãos”. Assim, “eles são chamados a dar novamente alma à Europa, a
despertar a consciência, não para ocupar espaços”, mas “para animar processos
que gerem novos dinamismos na sociedade”. E cita outro exemplo:
“Foi justamente
o que fez São Bento […]: não se deteve em ocupar os espaços dum mundo perdido e
confuso. Sustentado pela sua fé, olhou além e de uma pequena gruta em Subiaco
deu vida a um movimento corajoso e irreversível que redesenhou o rosto da
Europa. Ele, que foi ‘mensageiro de paz, realizador de união, mestre de
civilização’ mostre também a nós cristãos de hoje como da fé brota sempre uma
esperança alegre, capaz de mudar o mundo.”.
***
Sendo a Europa assim, haverá paz, desenvolvimento,
solidariedade – de pessoas e comunidade!
2017.10.30 – Louro de Carvalho
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