A confissão enunciada em epígrafe não foi
proferida pelo homem da rua, pelo iletrado ou pelo arredado da política. Quem proferiu
a frase foi um notável senador da República, um cidadão que chegou à maioridade
há muitíssimos anos – Aníbal António Cavaco Silva, o mais recente ex-Presidente
da República de Portugal.
Ainda mal arrefeceu a cadeira que ocupava em
Belém. Mas o ex-Presidente
da República não votou e disse-o placidamente – ele que foi Ministro das Finanças
durante um ano, Primeiro-Ministro durante 10 anos (tendo obtido
maioria relativa da primeira vez, mas conseguido, a seguir, duas maiorias
absolutas que lhe permitiram duas legislaturas completas) e liderou o partido que, ou sozinho ou em coligação,
esteve no Governo de 1979 a 1995, de 2002 a 2005 e de 2011 a 2015 (ao todo 23
anos, em 41 de democracia constitucional).
Não votou nas eleições autárquicas em que o PS foi literalmente o vencedor
e o PSD o grande derrotado, mas também não comenta os resultados, como revelou
ao Eco no dia 4 de outubro, à margem
da apresentação de um livro de economia, limitando-se a elogiar a contribuição
de Passos Coelho para a trajetória positiva da economia nacional.
À margem da apresentação do livro “Ética
aplicada à Economia” (de Maria do Céu Patrão Neves e João César das Neves), Cavaco escusou-se a comentários por alegadamente
não fazer parte do grupo de “políticos que estão no ativo ou comentadores
profissionais”. Muito admira que não tenha dito que não era um político, como
chegou a dizer quando estava na política ativa, pois até ganhou a liderança do
Partido numa boa de rodagem do carro na estrada rumo à Figueira da Foz onde, talvez
“casualmente”, o PSD estava em congresso, que se lembrou repentinamente de o
eleger seu presidente. E, quando o partido que liderara lhe antecipava o apoio
às eleições presidenciais, garantiu que a vida política ativa não era nada
interessante.
Desta vez, na sua confissão espontânea, teve o sincero e transparente
desplante de dizer:
“Acontece, até, que eu não votei, porque estava
num casamento de um familiar muito próximo na Escócia no próprio dia e, por isso,
só acompanhei já na segunda-feira o que tinha aqui ocorrido”.
Quanto às declarações de Pedro Passos Coelho no Conselho Geral do PSD, que
revelou que não se vai recandidatar à liderança do PSD depois dos maus
resultados obtidos, o eminente ex-líder partidário disse não ter assistido e
sustentou que “compete aos militantes tomarem
as decisões que considerem melhores não só para o partido, mas acima de tudo
para o país”, sublinhando que, “ao
contrário de outros, nunca interferi na vida do meu partido”.
Aproveitou ainda para acrescentar, acerca de Pedro Passos Coelho, que este
“deu o seu contributo para que Portugal, a partir de 2013, entrasse
numa trajetória de crescimento económico, redução do desemprego e melhoria das
condições de vida da população que felizmente para todos tem vindo
a acentuar-se”. Com efeito, atribui este desempenho positivo da economia
nacional à “excelente situação da economia europeia e dos benefícios que
Portugal retira do turismo e das exportações”, assim como da “imagem de
segurança que Portugal projeta e da hospitalidade dos portugueses”.
***
Dizem alguns
que o insigne cidadão Silva, que não votou nas eleições autárquicas por ter
estado, no dia do sufrágio, num casamento de “um familiar muito próximo” na
Escócia, poderia ter votado por antecipação. Ora, isso não corresponde ao
que está estabelecido na lei, pelo que o antigo Presidente da República,
estando ausente apenas por este motivo, não poderia votar antecipadamente.
A Lei
Eleitoral sobre as eleições autárquicas detalha os motivos pelos quais os
eleitores podem requerer o voto antecipado. Com efeito, o art.º 117.º da Lei Orgânica n.º1/2001, de 14 de agosto,
na sua redação atual, estipula os casos de quem pode votar por antecipação, bem
como outros requisitos:
1 – Podem
votar antecipadamente:
a) Os
militares, os agentes de forças e serviços de segurança interna e os bombeiros
e agentes da proteção civil que no dia da realização da eleição estejam
impedidos de se deslocar à assembleia de voto por imperativo inadiável de
exercício das suas funções no País ou no estrangeiro;
b) Os
membros integrantes de delegações oficiais do Estado que, por deslocação ao
estrangeiro em representação do País, se encontrem impedidos de se deslocar à
assembleia de voto no dia da eleição;
c) Os
trabalhadores marítimos e aeronáuticos, bem como os ferroviários e os
rodoviários de longo curso que por força da sua atividade profissional se
encontrem presumivelmente deslocados no dia da realização da eleição;
d) Os
membros que representem oficialmente seleções nacionais, organizadas por
federações desportivas dotadas de estatuto de utilidade pública desportiva, e
se encontrem deslocados no estrangeiro, em competições desportivas, no dia da
realização da eleição;
e) Os
eleitores que por motivo de doença se encontrem internados ou presumivelmente
internados em estabelecimento hospitalar e impossibilitados de se deslocar à
assembleia de voto;
f) Os
eleitores que se encontrem presos e não privados de direitos políticos;
g) Todos
os eleitores não abrangidos pelas alíneas anteriores que, por força da
representação de qualquer pessoa colectiva dos setores público, privado ou
cooperativo, das organizações representativas dos trabalhadores ou de
organizações representativas das atividades económicas, e, ainda, outros eleitores
que, por imperativo decorrente das suas funções profissionais, se encontrem
impedidos de se deslocar à assembleia de voto no dia da eleição.
2 – Podem
ainda votar antecipadamente os estudantes de instituições de ensino inscritos
em estabelecimentos situados em distrito, região autónoma ou ilha diferentes
daqueles por onde se encontram inscritos no recenseamento eleitoral.
3 – Para
efeitos de escrutínio só são considerados os votos recebidos na sede da junta
de freguesia correspondente à assembleia de voto em que o eleitor deveria votar
até ao dia anterior ao da realização da eleição.
E os
artigos 118.º, 119.º e 120.º regulam, respetivamente, o “modo de exercício
do direito de voto antecipado por razões profissionais”; o “modo de exercício por doentes internados e
por presos”; e o “modo de exercício do voto por estudantes”.
Há uma
situação em que não é permitido o voto antecipado mesmo estando o eleitor fora
do país, como foi o caso de Cavaco: as férias. Segundo se lê no site da Comissão Nacional de Eleições, “o
facto de estar de férias não é uma situação que justifique legalmente o
exercício do voto antecipado”.
***
As declarações de Cavaco Silva surpreendem não apenas pelos cargos
públicos que ocupou como pelas declarações que fez, no passado, sobre a
importância do voto.
E não pode, a meu ver, elogiar-se a sinceridade ou
transparência do ex-Chefe de Estado. Sinceridade e transparência exigem-se nos
negócios do Estado, na atividade legislativa e na administração. Porém, vir um
político que fez insistentemente a apologia do voto (dele dependendo sempre) e exerceu aqueles altos cargos
públicos dizer que não votou por estar num casamento sabe a insulto aos
cidadãos. Uma referência nacional não desce a este género de confissão pública.
Não ajuízo as condições da pertinência da sua presença no predito casamento,
mas era motivo para Sua Excelência se conter recatando o facto de não ter
votado e sobretudo a justificação. Não pode o conselheiro de Estado, que o é
por inerência segundo a Constituição, constituir-se em exemplo negativo do
exercício da cidadania.
Por outro lado, um ex-Presidente da República tem mordomias cedidas
em função dos altos serviços prestados e por constituir uma reserva moral da
República: tem direito, para serviço pessoal, a carro oficial com motorista e
combustível; a uma subvenção mensal vitalícia correspondente a 80% do
vencimento do Presidente em funções; a um gabinete de trabalho, com apoio de um
assessor e de um secretário da sua confiança, nomeados a seu pedido; a ajudas
de custo nos termos aplicados aos do Primeiro-Ministro sempre que tenha de
deslocar-se no desempenho de missões oficiais para fora da área da sua
residência habitual; a
livre-trânsito, a passaporte diplomático nas deslocações ao estrangeiro; e ao
uso e porte de arma de defesa.
Não
peço que lhe retirem estas mordomias, que os contribuintes lhe pagam, mas
escrever memórias de ressentimento ou lecionar de forma enviesada numa
universidade de verão não são posturas próprias daquele que, para concordância
de uns e discordância de outros, soube como decenário Chefe do Governo, para lá
de erros estruturais cometidos, captar fundos comunitários e aliar a dimensão
keynesiana com a neoliberal na governança, fazendo-se passar por um político
fautor da estabilidade e do progresso, também à custa das privatizações e do
início do desmantelamento das grandes estruturas do Estado. Assim, não merece a
consideração de todos!
***
Em
contraponto, o Chefe de Estado, Marcelo Rebelo de
Sousa, salvou a honra do convento nacional quando discursou hoje, 5 de outubro,
na Praça do Município, em Lisboa, 4 dias depois das autárquicas, em que o PS
foi o partido mais votado, obtendo a maioria das presidências de câmara e cujos
resultados levaram Passos a anunciar o fim do seu ciclo na liderança do PSD.
Marcelo Rebelo
de Sousa, que, entre os dias 2 e 4, recebeu os partidos com assento parlamentar
no Palácio de Belém, ainda não tinha falado publicamente sobre estas eleições.
Na parte
inicial do seu discurso comemorativo da implantação da República, o Presidente da
República defendeu que é preciso “um
poder local forte e próximo das pessoas” e, neste contexto, disse que “as eleições de há quatro dias devem ser
encaradas com apreço, olhando às centenas de milhar de candidatos e à redução
do nível de abstenção”.
No dia 1, a
abstenção a nível nacional foi de 45%, valor ligeiramente inferior ao dos 47,4%
registados em 2013, ano em que se atingiu a taxa de participação mais baixa de
sempre em eleições locais, que se realizam desde 1976, na sequência da aprovação
da Constituição, das primeiras eleições legislativas e das eleições presidenciais.
Segundo o Chefe
de Estado, que encareceu a urgência da descentralização, nestas eleições “os portugueses entenderam a importância do
seu envolvimento cívico, bem como a urgência de começar a inverter um sintoma
de aparente desinteresse pela coisa pública”. É óbvio que o Presidente não
sabe nem tem que saber de algumas posturas de caciquismo local que raiam as
malhas da indecência. Mas não se pode exigir que tudo seja perfeito nem que a
vida seja inteiramente justa.
Depois,
apelou uma vez mais aos protagonistas políticos para que pensem mais a médio e
a longo prazo, “ultrapassando o mero
apelo dos sucessivos atos eleitorais” e, neste ponto, deixou um alerta,
declarando: “Não há sucessos eternos nem revezes definitivos”.
2017.10.05 – Louro de Carvalho
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