quinta-feira, 5 de outubro de 2017

“Acontece que não votei”

A confissão enunciada em epígrafe não foi proferida pelo homem da rua, pelo iletrado ou pelo arredado da política. Quem proferiu a frase foi um notável senador da República, um cidadão que chegou à maioridade há muitíssimos anos – Aníbal António Cavaco Silva, o mais recente ex-Presidente da República de Portugal.
Ainda mal arrefeceu a cadeira que ocupava em Belém. Mas o ex-Presidente da República não votou e disse-o placidamente – ele que foi Ministro das Finanças durante um ano, Primeiro-Ministro durante 10 anos (tendo obtido maioria relativa da primeira vez, mas conseguido, a seguir, duas maiorias absolutas que lhe permitiram duas legislaturas completas) e liderou o partido que, ou sozinho ou em coligação, esteve no Governo de 1979 a 1995, de 2002 a 2005 e de 2011 a 2015 (ao todo 23 anos, em 41 de democracia constitucional).
Não votou nas eleições autárquicas em que o PS foi literalmente o vencedor e o PSD o grande derrotado, mas também não comenta os resultados, como revelou ao Eco no dia 4 de outubro, à margem da apresentação de um livro de economia, limitando-se a elogiar a contribuição de Passos Coelho para a trajetória positiva da economia nacional.
À margem da apresentação do livro “Ética aplicada à Economia” (de Maria do Céu Patrão Neves e João César das Neves), Cavaco escusou-se a comentários por alegadamente não fazer parte do grupo de “políticos que estão no ativo ou comentadores profissionais”. Muito admira que não tenha dito que não era um político, como chegou a dizer quando estava na política ativa, pois até ganhou a liderança do Partido numa boa de rodagem do carro na estrada rumo à Figueira da Foz onde, talvez “casualmente”, o PSD estava em congresso, que se lembrou repentinamente de o eleger seu presidente. E, quando o partido que liderara lhe antecipava o apoio às eleições presidenciais, garantiu que a vida política ativa não era nada interessante.
Desta vez, na sua confissão espontânea, teve o sincero e transparente desplante de dizer:
Acontece, até, que eu não votei, porque estava num casamento de um familiar muito próximo na Escócia no próprio dia e, por isso, só acompanhei já na segunda-feira o que tinha aqui ocorrido”.
Quanto às declarações de Pedro Passos Coelho no Conselho Geral do PSD, que revelou que não se vai recandidatar à liderança do PSD depois dos maus resultados obtidos, o eminente ex-líder partidário disse não ter assistido e sustentou que “compete aos militantes tomarem as decisões que considerem melhores não só para o partido, mas acima de tudo para o país”, sublinhando que, “ao contrário de outros, nunca interferi na vida do meu partido”.
Aproveitou ainda para acrescentar, acerca de Pedro Passos Coelho, que este “deu o seu contributo para que Portugal, a partir de 2013, entrasse numa trajetória de crescimento económico, redução do desemprego e melhoria das condições de vida da população que felizmente para todos tem vindo a acentuar-se”. Com efeito, atribui este desempenho positivo da economia nacional à “excelente situação da economia europeia e dos benefícios que Portugal retira do turismo e das exportações”, assim como da “imagem de segurança que Portugal projeta e da hospitalidade dos portugueses”.
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Dizem alguns que o insigne cidadão Silva, que não votou nas eleições autárquicas por ter estado, no dia do sufrágio, num casamento de “um familiar muito próximo” na Escócia, poderia ter votado por antecipação. Ora, isso não corresponde ao que está estabelecido na lei, pelo que o antigo Presidente da República, estando ausente apenas por este motivo, não poderia votar antecipadamente.
A Lei Eleitoral sobre as eleições autárquicas detalha os motivos pelos quais os eleitores podem requerer o voto antecipado. Com efeito, o art.º 117.º da Lei Orgânica n.º1/2001, de 14 de agosto, na sua redação atual, estipula os casos de quem pode votar por antecipação, bem como outros requisitos:
1 – Podem votar antecipadamente:
a) Os militares, os agentes de forças e serviços de segurança interna e os bombeiros e agentes da proteção civil que no dia da realização da eleição estejam impedidos de se deslocar à assembleia de voto por imperativo inadiável de exercício das suas funções no País ou no estrangeiro;
b) Os membros integrantes de delegações oficiais do Estado que, por deslocação ao estrangeiro em representação do País, se encontrem impedidos de se deslocar à assembleia de voto no dia da eleição;
c) Os trabalhadores marítimos e aeronáuticos, bem como os ferroviários e os rodoviários de longo curso que por força da sua atividade profissional se encontrem presumivelmente deslocados no dia da realização da eleição;
d) Os membros que representem oficialmente seleções nacionais, organizadas por federações desportivas dotadas de estatuto de utilidade pública desportiva, e se encontrem deslocados no estrangeiro, em competições desportivas, no dia da realização da eleição;
e) Os eleitores que por motivo de doença se encontrem internados ou presumivelmente internados em estabelecimento hospitalar e impossibilitados de se deslocar à assembleia de voto;
f) Os eleitores que se encontrem presos e não privados de direitos políticos;
g) Todos os eleitores não abrangidos pelas alíneas anteriores que, por força da representação de qualquer pessoa colectiva dos setores público, privado ou cooperativo, das organizações representativas dos trabalhadores ou de organizações representativas das atividades económicas, e, ainda, outros eleitores que, por imperativo decorrente das suas funções profissionais, se encontrem impedidos de se deslocar à assembleia de voto no dia da eleição.
2 – Podem ainda votar antecipadamente os estudantes de instituições de ensino inscritos em estabelecimentos situados em distrito, região autónoma ou ilha diferentes daqueles por onde se encontram inscritos no recenseamento eleitoral.
3 – Para efeitos de escrutínio só são considerados os votos recebidos na sede da junta de freguesia correspondente à assembleia de voto em que o eleitor deveria votar até ao dia anterior ao da realização da eleição.
E os artigos 118.º, 119.º e 120.º regulam, respetivamente, o “modo de exercício do direito de voto antecipado por razões profissionais”; o “modo de exercício por doentes internados e por presos”; e o  “modo de exercício do voto por estudantes”.
Há uma situação em que não é permitido o voto antecipado mesmo estando o eleitor fora do país, como foi o caso de Cavaco: as férias. Segundo se lê no site da Comissão Nacional de Eleições, “o facto de estar de férias não é uma situação que justifique legalmente o exercício do voto antecipado”.
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As declarações de Cavaco Silva surpreendem não apenas pelos cargos públicos que ocupou como pelas declarações que fez, no passado, sobre a importância do voto.
E não pode, a meu ver, elogiar-se a sinceridade ou transparência do ex-Chefe de Estado. Sinceridade e transparência exigem-se nos negócios do Estado, na atividade legislativa e na administração. Porém, vir um político que fez insistentemente a apologia do voto (dele dependendo sempre) e exerceu aqueles altos cargos públicos dizer que não votou por estar num casamento sabe a insulto aos cidadãos. Uma referência nacional não desce a este género de confissão pública. Não ajuízo as condições da pertinência da sua presença no predito casamento, mas era motivo para Sua Excelência se conter recatando o facto de não ter votado e sobretudo a justificação. Não pode o conselheiro de Estado, que o é por inerência segundo a Constituição, constituir-se em exemplo negativo do exercício da cidadania.
Por outro lado, um ex-Presidente da República tem mordomias cedidas em função dos altos serviços prestados e por constituir uma reserva moral da República: tem direito, para serviço pessoal, a carro oficial com motorista e combustível; a uma subvenção mensal vitalícia correspondente a 80% do vencimento do Presidente em funções; a um gabinete de trabalho, com apoio de um assessor e de um secretário da sua confiança, nomeados a seu pedido; a ajudas de custo nos termos aplicados aos do Primeiro-Ministro sempre que tenha de deslocar-se no desempenho de missões oficiais para fora da área da sua residência habitual; a livre-trânsito, a passaporte diplomático nas deslocações ao estrangeiro; e ao uso e porte de arma de defesa.
Não peço que lhe retirem estas mordomias, que os contribuintes lhe pagam, mas escrever memórias de ressentimento ou lecionar de forma enviesada numa universidade de verão não são posturas próprias daquele que, para concordância de uns e discordância de outros, soube como decenário Chefe do Governo, para lá de erros estruturais cometidos, captar fundos comunitários e aliar a dimensão keynesiana com a neoliberal na governança, fazendo-se passar por um político fautor da estabilidade e do progresso, também à custa das privatizações e do início do desmantelamento das grandes estruturas do Estado. Assim, não merece a consideração de todos!
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Em contraponto, o Chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, salvou a honra do convento nacional quando discursou hoje, 5 de outubro, na Praça do Município, em Lisboa, 4 dias depois das autárquicas, em que o PS foi o partido mais votado, obtendo a maioria das presidências de câmara e cujos resultados levaram Passos a anunciar o fim do seu ciclo na liderança do PSD.
Marcelo Rebelo de Sousa, que, entre os dias 2 e 4, recebeu os partidos com assento parlamentar no Palácio de Belém, ainda não tinha falado publicamente sobre estas eleições.
Na parte inicial do seu discurso comemorativo da implantação da República, o Presidente da República defendeu que é preciso “um poder local forte e próximo das pessoas” e, neste contexto, disse que “as eleições de há quatro dias devem ser encaradas com apreço, olhando às centenas de milhar de candidatos e à redução do nível de abstenção”.
No dia 1, a abstenção a nível nacional foi de 45%, valor ligeiramente inferior ao dos 47,4% registados em 2013, ano em que se atingiu a taxa de participação mais baixa de sempre em eleições locais, que se realizam desde 1976, na sequência da aprovação da Constituição, das primeiras eleições legislativas e das eleições presidenciais.
Segundo o Chefe de Estado, que encareceu a urgência da descentralização, nestas eleições “os portugueses entenderam a importância do seu envolvimento cívico, bem como a urgência de começar a inverter um sintoma de aparente desinteresse pela coisa pública”. É óbvio que o Presidente não sabe nem tem que saber de algumas posturas de caciquismo local que raiam as malhas da indecência. Mas não se pode exigir que tudo seja perfeito nem que a vida seja inteiramente justa.
Depois, apelou uma vez mais aos protagonistas políticos para que pensem mais a médio e a longo prazo, “ultrapassando o mero apelo dos sucessivos atos eleitorais” e, neste ponto, deixou um alerta, declarando: “Não há sucessos eternos nem revezes definitivos”.

2017.10.05 – Louro de Carvalho

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