segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Adultério: Não contesto graduação de pena, mas rejeito justificação do TRP

Segundo o JN, o caso remonta a novembro de 2014, quando mulher casada de Felgueiras se envolveu numa relação extraconjugal com homem solteiro de Marco de Canaveses. Dois meses depois, ela terá querido acabar com a relação, mas o amante terá começado a persegui-la no seu lugar de trabalho e por SMS, chegando a revelar a traição ao marido da mulher. O casal separou-se, mas o cônjuge passou a enviar-lhe SMS com insultos e ameaças de morte. Assim, a mulher tornou-se num alvo dos dois homens. 
O amante continuou a assediar a vítima e terá chegado ao ponto de, em junho de 2015, montar um esquema para que se encontrassem os três, num episódio que terá levado o marido a agredir a mulher. O amante sequestrou a mulher e transportou-a para um sítio perto do local de trabalho do marido, a quem telefonou, naquele instante, a convidá-lo para um encontro. Aparentemente sem premeditação, o marido agrediu a mulher com uma moca de pregos (Agredir com uma moca de regos sem premeditação só pode ser entendido por ironia).  
O Tribunal de Felgueiras, que julgou o caso, condenou o marido a um ano e três meses de prisão por violência doméstica, com suspensão de pena, além de uma multa de 1750 euros, por posse de arma proibida. O amante, por sua vez, foi condenado a um ano de prisão, com suspensão de pena, e multa de 3500 euros, por crimes de perturbação da vida privada, sequestro, injúrias e ofensas à integridade física.
Enquanto os arguidos não interpuseram recurso, o Ministério Público (MP), invocando uma valoração errada da prova e da medida da pena, entre outros argumentos, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto (TRP) para tentar o agravamento da pena e a efetividade de prisão. Porém, como conta o JN, o acórdão deste tribunal superior foi arrasador para a mulher.
No acórdão de 11 de outubro do corrente ano, subscrito pelos desembargadores Neto Moura e Maria Luísa Abrantes, os magistrados ajuízam que a prova foi bem avaliada pelo tribunal de primeira instância, que veio a concluir que o marido, socialmente inserido, agiu “num quadro depressivo”, contrariando o MP de Felgueiras, que estava pela premeditação da agressão. Por isso, o TRP julga improcedente o recurso e mantém a aplicação das penas decretada pelo Tribunal de Felgueiras. Mais: a Relação do Porto considera que “foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado de revolta que praticou o ato de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida”, assentindo que as penas “foram ajustadas na sua fixação”, tendo o Tribunal respeitado “os critérios legais”, não havendo pois, “razão para temer as frustrações comunitárias na validade das normas violadas”.
É a propósito da aplicação da suspensão de pena que no acórdão do TRP que se leem frases como estas: O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”. “Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”. “Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”.
Além destas frases, o acórdão deixa ler que “ainda não há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, art.º 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse ato a matasse”. E comenta que são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras” e que o “adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente”, vendo “com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.
O caso ainda não transitou em julgado, tendo a advogada da vítima afirma ao Público que a cliente não decidiu que medidas tomar.
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Parece, que estamos na inversão da ordem da relevância das coisas e no esquecimento de determinadas realidades. O TRP tem de saber que se fundamenta uma decisão judicial tendo em conta a matéria de facto e a matéria de direito. A primeira questiona o que aconteceu, onde quando, como, porquê e em que outras circunstâncias. E a segunda responde às questões: se o facto é punível e, se sim, qual o grau de culpa e a moldura penal a aplicar.
O adultério é um ato cometido a dois (homem e mulher sendo, pelo menos um deles casado) ou uma situação vivida a dois nas mesmas circunstâncias. E a questão que se coloca é porque só a mulher é que é sujeito de culpa no caso. Além disso, sendo pecado em termos morais, nem por isso o adultério é um crime, embora possa dar azo a separação, divórcio e crimes, ao passo que a violência doméstica é tipificada como crime. Não pode o TRP inverter a ordem das coisas, pondo a nu a mulher e desculpando ou “compreendendo” os homens não lhes imputando também o adultério. Depois, embora a Bíblia tenha previsto a morte da mulher (Também só a mulher!) por lapidação, tal prática deixou de se efetuar; e Cristo, que considerou o adultério de coração pelo desejo de homem ou de mulher (cf Mt 5,27-28), reconheceu o pecado da adúltera que lhe foi apresentada por homens (deixando escapar-se o parceiro adúltero) e não a condenou (cf Jo 8,1-11). A Bíblia evoluiu; Portugal, não, a fazer fé nos juízes desembargadores! Por outro lado, Portugal, considerado pioneiro na abolição da pena de morte e na abolição da escravatura não pode ater-se ao Código Penal de 1886 (Já lá vão 131 anos), nem às civilizações em que se abate exclusivamente sobre a mulher a desonra do marido ou da família, bem como não pode um tribunal superior julgar com base na pretensa opinião das senhoras honestas, as quais, se o são, bem podem “compreender” que em bom pano pode cair a nódoa (E, depois, queima-se o pano?).
Assim, a decisão que desculpa a agressão devido a adultério “coloca a vida de muitas mulheres em risco”, por fazer escola ao contrário.
Fora de contexto, as palavras do relator, o juiz desembargador Neto de Moura, e assinadas ainda por Maria Luísa Abrantes, levaram alguns especialistas a questionar se se trataria de um processo atual, pois, como explica a socióloga Isabel Ventura (autora de tese de doutoramento em que analisa os discursos judiciais em casos de violência sexual):
A expressão ‘mulheres honestas’ foi muito comum entre a jurisprudência até, pelo menos, ao fim da década de 80, mas já não constava no Código Penal de 1982”.
Já agora, diga-se que, embora taxado de pecado grave, o adultério deixou de ser considerado delito ou crime (por isso, já não passível de pena eclesiástica) no Código de Direito Canónico (CIC) de 1983, quando o era no CIC de 1917, por força dos cânones 2357,§2 e 2359,§2. Ora, o caso de violência doméstica, em que a vítima foi agredida pelo ex-marido, com uma “moca” com pregos, e pelo homem com quem tinha mantido uma relação extraconjugal (que motivou a separação do casal, meses antes da agressão), “é um caso extremamente violento”, como diz Isabel Ventura.  
Também Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, lamenta o possível impacto simbólico da fundamentação apresentada. A jurista, que investiga a violência de género nos homicídios conjugais e violência doméstica, sustenta:
Quando um acórdão da Relação fala disto com normalidade, em vez de com censura, está de certa forma a tornar mais legítimo que haja mais homens a serem violentos contra as suas mulheres”, estando, neste caso, a colocar em risco a vida de muitas mulheres em Portugal”.
Ferreira Leite afirma que a associação Capazes apresentará queixa ao CSM (Conselho Superior de Magistratura). Fonte da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas afirma que a entidade também tomará uma posição em breve.
E a jurista Elisabete Brasil, presidente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) considera inadmissível a argumentação do TRP. Admitindo a subjetividade da pena, pois, apesar das agravantes e atenuantes previstas na lei, é o juiz que decide, dentro da moldura penal, se aplica pena mais leve ou mais pesada, dependendo do que dite a sua interpretação da lei. Mais diz:
Os juízes até podiam manter um pena suspensa argumentando que o arguido tem uma depressão comprovada clinicamente, que é primário, que mostrou arrependimento, enfim com aquilo que, em cada caso, estivesse em consonância com as atenuantes que a lei apresenta”.
Porém, a jurista contesta por “inadmissível” a fundamentação da decisão judicial com:
Um discurso parado no tempo, contra as próprias normas nacionais e internacionais sobre a matéria. […]. É fundamental que as Faculdades de Direito incluam no seu currículo as questões de género e que os juízes tenham formação na área da violência doméstica, que tem sido um problema muito grave”.
Segundo o Público, há pelo menos mais um processo em que se encontra, na argumentação deste magistrado, um ataque às “mulheres adúlteras”, relativo a um caso ocorrido em Vale de Cambra. Com efeito, num acórdão da Relação do Porto, em que o mesmo juiz Neto de Moura foi relator, o depoimento duma vítima de violência doméstica de Vale de Cambra é desconsiderado devido ao facto de esta “[andar] a trair o marido”. Na verdade, segundo o predito relator, pelos vistos. useiro e vezeiro nas suas doutas análises, comentários e conclusões:
Uma mulher adúltera é uma pessoa dissimulada, falsa, hipócrita, desleal, que mente, engana, finge. Enfim, carece de probidade moral. […]. Não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos.”.
E que dirá o juiz de um homem adúltero? Aprova-se, permite-se, tolera-se?
Ainda sobre o caso de Felgueiras, Ferreira Leite afirma:
O Estado não pode dizer que é normal na sociedade que o adultério da mulher torna compreensível a forma brutal como esta vítima foi perseguida e agredida pelos dois homens”.
Trata-se de “uma argumentação frontalmente contrária à Constituição e é profundamente machista, discriminatória e, portanto, inaceitável.”
Contactada pelo Público a ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses), para obter um comentário, a presidente declinou pronunciar-se sobre este caso. 
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O CSM, que dantes não adiantou se foram apresentadas queixas além das referidas ou se abrirá processo disciplinar aos juízes com base no caso, veio, segundo o DN, esclarecer que “não intervém, nem pode intervir”, em questões jurisdicionais. Diz, em comunicado, que os tribunais
São independentes e os juízes nas suas decisões apenas devem obediência à Constituição e à lei, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores”.
Contudo, adverte que as sentenças dos tribunais devem “espelhar” essa fonte de legitimidade,
Realizando a justiça do caso concreto sem obediência ou expressão de posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento jurídico da sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na Constituição e Leis da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios da igualdade de género e da laicidade do Estado”.
Nesta perspetiva de permanente enquadramento jurídico-social, o CSM refere ter desenvolvido várias ações sobre questões que preocupam a sociedade no seu conjunto, em “estreita cooperação” com a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, no apoio à aplicação do V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género. Promete continuar a aprofundar a ação que desenvolve no âmbito dos temas direta ou indiretamente relacionados com a tutela dos Direitos Humanos. E realça que nem todas as “proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes” constantes de sentenças assumem relevância disciplinar, cabendo ao Conselho Plenário pronunciar-se sobre tal matéria. Por outro lado, refere que os juízes em funções nos tribunais superiores “não se encontram sujeitos a inspeções classificativas ordinárias”, mas assinalando que a promoção à Relação e o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça consideram “todos os elementos relevantes” que se encontrem disponíveis no CSM.
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A este respeito, a subdiretora do JN, Inês Cardoso, publicou na edição de hoje, dia 23 de outubro, um texto sob o título “Ela estava a pedi-las”, sublinhado que “não é uma boca” nas redes sociais “nem uma piada falhada”, mas que se trata de “um acórdão de um tribunal superior, redigido em pleno ano de 2017 e assinado por dois juízes desembargadores – um dos quais uma mulher”, em que os juízes, num caso de violência doméstica, “tecem considerações sobre o adultério e a ‘imoralidade sexual’ da vítima”.
Não se pretende “questionar a medida da pena”, por não estar o problema na decisão, mas “nos considerandos utilizados para a analisar”, pois, “em vez de se limitar à matéria de facto” (e, sobretudo, à matéria de direito: é um tribunal de recurso), “o juiz relator recorre à Bíblia e ao velhinho Código Penal de 1886 para contextualizar a gravidade moral do adultério”, fazendo-o “com uma linguagem sexista que raia o absurdo”. E acentua a dita subdiretora:
O macho latino trair, ainda vá, mas a mulher é que não pode ser e não admira o estado depressivo em que o marido recorreu a uma moca de pregos para descarregar a revolta”.
E, depois de se interrogar se se trata de “um caso isolado nos tribunais portugueses”, diz:
Talvez não, porque esporadicamente surgem acórdãos com referências discriminatórias e abusivas. Muito recentemente, uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem censurou ‘os preconceitos’ que prevalecem no sistema judiciário português, num caso em que entendeu que uma mulher foi discriminada numa indemnização por perda de prazer na sexualidade. Convém admitir, ainda assim, que acórdãos como o que agora se refere, do Tribunal da Relação do Porto, são exceções. O que não os torna menos preocupantes ou dignos de crítica e reflexão.
É, como diz Inês Cardoso e se lê no acórdão, um raciocínio existente em muitos setores da sociedade, ou seja, “é o clássico ‘ela estava mesmo a pedi-las’ que traduz uma dupla penalização da mulher”: não lhe basta ser vítima de agressão, assédio ou abusos sexuais; é ainda, muitas vezes, “considerada a causa do crime”. E porquê? A colunista responde com hipóteses que facilmente se tornam reais no juízo dos críticos:
Ou porque se veste de forma provocatória, ou porque falha no seu papel de esposa dedicada, ou porque age com deslealdade e imoralidade sexual”.
E termino com a sentença judiciosa da subdiretora do JN:
Sabemos que popularmente há muito a fazer para combater a violência conjugal e a desigualdade de género. Mas os tribunais, como os restantes órgãos de soberania, existem para promover a justiça e a igualdade. Não para validar o preconceito e a discriminação.”.
Enfim, apetece bradar quanto à cultura de violência doméstica transversal à sociedade:
Se os tribunais não conseguem fazer pedagogia da justiça na sociedade que temos, tão desvirtuada tantas vezes, ao menos que não se tornem agentes da contrapedagogia ou instrumentos da deformação da cidadania. Também eles têm responsabilidade política enquanto decidem a aplicação interpretativa da Lei face ao juízo que fazem dos factos.
2017.10.23 – Louro de Carvalho

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