Segundo o JN, o caso remonta a novembro de 2014,
quando mulher casada de Felgueiras se envolveu numa relação extraconjugal com
homem solteiro de Marco de Canaveses. Dois meses depois, ela terá querido
acabar com a relação, mas o amante terá começado a persegui-la no seu lugar de
trabalho e por SMS, chegando a revelar a traição ao marido da mulher. O casal
separou-se, mas o cônjuge passou a enviar-lhe SMS com insultos e ameaças de morte.
Assim, a mulher tornou-se num alvo dos dois homens.
O amante continuou
a assediar a vítima e terá chegado ao ponto de, em junho de 2015, montar um
esquema para que se encontrassem os três, num episódio que terá levado o marido
a agredir a mulher. O amante sequestrou a mulher e transportou-a para um sítio
perto do local de trabalho do marido, a quem telefonou, naquele instante, a
convidá-lo para um encontro. Aparentemente sem premeditação, o marido agrediu a
mulher com uma moca de pregos (Agredir com uma moca de regos sem premeditação só pode
ser entendido por ironia).
O Tribunal
de Felgueiras, que julgou o caso, condenou o marido a um ano e três meses de
prisão por violência doméstica, com suspensão de pena, além de uma multa de
1750 euros, por posse de arma proibida. O amante, por sua vez, foi condenado a
um ano de prisão, com suspensão de pena, e multa de 3500 euros, por crimes de
perturbação da vida privada, sequestro, injúrias e ofensas à integridade física.
Enquanto os
arguidos não interpuseram recurso, o Ministério Público (MP), invocando uma valoração errada da prova e da medida
da pena, entre outros argumentos, recorreu para o Tribunal da Relação do Porto
(TRP) para tentar o agravamento da pena e a efetividade de
prisão. Porém, como conta o JN, o
acórdão deste tribunal superior foi arrasador para a mulher.
No acórdão
de 11 de outubro do corrente ano, subscrito pelos desembargadores Neto Moura e
Maria Luísa Abrantes, os magistrados ajuízam que a prova foi bem avaliada pelo
tribunal de primeira instância, que veio a concluir que o marido, socialmente
inserido, agiu “num quadro depressivo”, contrariando o MP de Felgueiras, que
estava pela premeditação da agressão. Por isso, o TRP julga improcedente o
recurso e mantém a aplicação das penas decretada pelo Tribunal de Felgueiras. Mais:
a Relação do Porto considera que “foi a
deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido cair em
profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado de revolta que
praticou o ato de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida”,
assentindo que as penas “foram ajustadas
na sua fixação”, tendo o Tribunal respeitado “os critérios legais”, não havendo pois, “razão para temer as
frustrações comunitárias na validade das normas violadas”.
É
a propósito da aplicação da suspensão de pena que no acórdão do TRP que se leem
frases como estas: “O adultério da mulher é um gravíssimo
atentado à honra e dignidade do homem”. “Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à
morte”. “Na Bíblia, podemos ler que a
mulher adúltera deve ser punida com a morte”.
Além destas
frases, o acórdão deixa ler que “ainda
não há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, art.º 372.º) punia com uma
pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério,
nesse ato a matasse”. E comenta que “são as
mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras” e que o “adultério
da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente”,
vendo “com alguma compreensão a violência
exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.
O
caso ainda não transitou em julgado, tendo a advogada da vítima afirma ao Público que a cliente não decidiu que
medidas tomar.
***
Parece,
que estamos na inversão da ordem da relevância das coisas e no esquecimento de
determinadas realidades. O TRP tem de saber que se fundamenta uma decisão
judicial tendo em conta a matéria de facto e a matéria de direito. A primeira
questiona o que aconteceu, onde quando, como, porquê e em que outras
circunstâncias. E a segunda responde às questões: se o facto é punível e, se
sim, qual o grau de culpa e a moldura penal a aplicar.
O
adultério é um ato cometido a dois (homem e mulher sendo,
pelo menos um deles casado)
ou uma situação vivida a dois nas mesmas circunstâncias. E a questão que se
coloca é porque só a mulher é que é sujeito de culpa no caso. Além disso, sendo
pecado em termos morais, nem por isso o adultério é um crime, embora possa dar
azo a separação, divórcio e crimes, ao passo que a violência doméstica é
tipificada como crime. Não pode o TRP inverter a ordem das coisas, pondo a nu a
mulher e desculpando ou “compreendendo” os homens não lhes imputando também o
adultério. Depois, embora a Bíblia tenha previsto a morte da mulher (Também
só a mulher!) por
lapidação, tal prática deixou de se efetuar; e Cristo, que considerou o
adultério de coração pelo desejo de homem ou de mulher (cf
Mt 5,27-28),
reconheceu o pecado da adúltera que lhe foi apresentada por homens (deixando
escapar-se o parceiro adúltero)
e não a condenou (cf Jo 8,1-11). A Bíblia evoluiu; Portugal,
não, a fazer fé nos juízes desembargadores! Por outro lado, Portugal, considerado
pioneiro na abolição da pena de morte e na abolição da escravatura não pode
ater-se ao Código Penal de 1886 (Já lá vão 131 anos), nem às civilizações em que se
abate exclusivamente sobre a mulher a desonra do marido ou da família, bem como
não pode um tribunal superior julgar com base na pretensa opinião das senhoras
honestas, as quais, se o são, bem podem “compreender” que em bom pano pode cair
a nódoa (E,
depois, queima-se o pano?).
Assim,
a decisão que desculpa a agressão devido a adultério “coloca a vida de muitas
mulheres em risco”, por fazer escola ao contrário.
Fora
de contexto, as palavras do relator, o juiz desembargador Neto de Moura, e
assinadas ainda por Maria Luísa Abrantes, levaram alguns especialistas a
questionar se se trataria de um processo atual, pois, como explica a socióloga
Isabel Ventura (autora de tese de doutoramento em que
analisa os discursos judiciais em casos de violência sexual):
“A expressão ‘mulheres honestas’ foi muito
comum entre a jurisprudência até, pelo menos, ao fim da década de 80, mas já
não constava no Código Penal de 1982”.
Já
agora, diga-se que, embora taxado de pecado grave, o adultério deixou de ser
considerado delito ou crime (por isso, já não passível de pena
eclesiástica) no
Código de Direito Canónico (CIC) de 1983, quando o era no CIC de 1917, por força
dos cânones 2357,§2 e 2359,§2. Ora, o caso de violência doméstica, em que a
vítima foi agredida pelo ex-marido, com uma “moca” com pregos, e pelo homem com
quem tinha mantido uma relação extraconjugal (que motivou a
separação do casal, meses antes da agressão), “é um caso extremamente violento”, como diz
Isabel Ventura.
Também
Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, lamenta o possível impacto simbólico da fundamentação apresentada. A
jurista, que investiga a violência de género nos homicídios conjugais e violência
doméstica, sustenta:
“Quando um acórdão da Relação fala disto com
normalidade, em vez de com censura, está de certa forma a tornar mais legítimo
que haja mais homens a serem violentos contra as suas mulheres”, estando, neste caso, a
colocar em risco a vida de muitas mulheres em Portugal”.
Ferreira Leite afirma que a
associação Capazes apresentará queixa
ao CSM (Conselho
Superior de Magistratura).
Fonte da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas afirma que a entidade
também tomará uma posição em breve.
E a jurista Elisabete Brasil,
presidente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) considera inadmissível a argumentação
do TRP. Admitindo a subjetividade da pena, pois, apesar das agravantes e
atenuantes previstas na lei, é o juiz que decide, dentro da moldura penal, se
aplica pena mais leve ou mais pesada, dependendo do que dite a sua
interpretação da lei. Mais diz:
“Os juízes até podiam manter um pena
suspensa argumentando que o arguido tem uma depressão comprovada clinicamente,
que é primário, que mostrou arrependimento, enfim com aquilo que, em cada caso,
estivesse em consonância com as atenuantes que a lei apresenta”.
Porém,
a jurista contesta por “inadmissível” a fundamentação da decisão judicial com:
“Um discurso parado no tempo, contra as próprias
normas nacionais e internacionais sobre a matéria. […]. É fundamental que as Faculdades
de Direito incluam no seu currículo as questões de género e que os juízes tenham
formação na área da violência doméstica, que tem sido um problema muito grave”.
Segundo
o Público, há pelo menos mais um
processo em que se encontra, na argumentação deste magistrado, um ataque às “mulheres
adúlteras”, relativo a um caso ocorrido em Vale de Cambra. Com efeito, num acórdão da Relação do
Porto, em que o mesmo juiz Neto de Moura foi relator, o depoimento duma vítima
de violência doméstica de Vale de Cambra é desconsiderado devido ao facto de
esta “[andar] a trair o marido”. Na
verdade, segundo o predito relator, pelos vistos. useiro e vezeiro nas suas
doutas análises, comentários e conclusões:
“Uma mulher
adúltera é uma pessoa dissimulada, falsa, hipócrita, desleal, que mente,
engana, finge. Enfim, carece de probidade moral. […]. Não surpreende que
recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso
pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos.”.
E que dirá o juiz de um homem adúltero? Aprova-se, permite-se, tolera-se?
Ainda sobre o caso de Felgueiras, Ferreira Leite afirma:
“O Estado não
pode dizer que é normal na sociedade que o adultério da mulher torna
compreensível a forma brutal como esta vítima foi perseguida e agredida pelos
dois homens”.
Trata-se de “uma argumentação frontalmente contrária à Constituição e é
profundamente machista, discriminatória e, portanto, inaceitável.”
Contactada pelo Público a ASJP (Associação Sindical dos Juízes Portugueses), para obter um comentário, a presidente declinou
pronunciar-se sobre este caso.
***
O
CSM, que dantes não adiantou se foram apresentadas queixas além das referidas
ou se abrirá processo disciplinar aos juízes com base no caso, veio, segundo o DN, esclarecer que “não intervém, nem
pode intervir”, em questões jurisdicionais. Diz, em comunicado, que os
tribunais
“São independentes e os juízes nas suas decisões apenas devem obediência
à Constituição e à lei, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em
via de recurso pelos tribunais superiores”.
Contudo,
adverte que as sentenças dos tribunais devem “espelhar” essa fonte de
legitimidade,
“Realizando a justiça do caso concreto sem obediência ou expressão de
posições ideológicas e filosóficas claramente contrastantes com o sentimento
jurídico da sociedade em cada momento, expresso, em primeira linha, na
Constituição e Leis da República, aqui se incluindo, tipicamente, os princípios
da igualdade de género e da laicidade do Estado”.
Nesta
perspetiva de permanente enquadramento jurídico-social, o CSM refere ter
desenvolvido várias ações sobre questões que preocupam a sociedade no seu
conjunto, em “estreita cooperação” com a Comissão para a Cidadania e Igualdade
de Género, no apoio à aplicação do V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência
Doméstica e de Género. Promete continuar a
aprofundar a ação que desenvolve no âmbito dos temas direta ou indiretamente
relacionados com a tutela dos Direitos Humanos. E realça que nem todas
as “proclamações
arcaicas, inadequadas ou infelizes” constantes de sentenças assumem
relevância disciplinar, cabendo ao Conselho Plenário pronunciar-se sobre tal
matéria. Por outro lado, refere que os
juízes em funções nos tribunais superiores “não se encontram sujeitos a inspeções
classificativas ordinárias”, mas assinalando que a promoção à Relação e o
acesso ao Supremo Tribunal de Justiça consideram “todos os elementos
relevantes” que se encontrem disponíveis no CSM.
***
A
este respeito, a subdiretora do JN,
Inês Cardoso, publicou na edição de hoje, dia 23 de outubro, um texto sob o título
“Ela estava a pedi-las”,
sublinhado que “não é uma boca” nas redes sociais “nem
uma piada falhada”, mas que se trata de “um acórdão de um tribunal superior,
redigido em pleno ano de 2017 e assinado por dois juízes desembargadores – um
dos quais uma mulher”, em que os juízes, num caso de violência doméstica, “tecem
considerações sobre o adultério e a ‘imoralidade sexual’ da vítima”.
Não se pretende “questionar
a medida da pena”, por não estar o problema na decisão, mas “nos considerandos
utilizados para a analisar”, pois, “em vez de se limitar à matéria de facto” (e,
sobretudo, à matéria de direito: é
um tribunal de recurso), “o juiz relator recorre à Bíblia e ao
velhinho Código Penal de 1886 para contextualizar a gravidade moral do adultério”,
fazendo-o “com uma linguagem sexista que raia o absurdo”. E acentua a dita
subdiretora:
“O
macho latino trair, ainda vá, mas a mulher é que não pode ser e não admira o
estado depressivo em que o marido recorreu a uma moca de pregos para descarregar
a revolta”.
E, depois de se interrogar
se se trata de “um caso isolado nos tribunais portugueses”, diz:
“Talvez
não, porque esporadicamente surgem acórdãos com referências discriminatórias e
abusivas. Muito recentemente, uma decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem censurou ‘os preconceitos’ que prevalecem no sistema judiciário
português, num caso em que entendeu que uma mulher foi discriminada numa
indemnização por perda de prazer na sexualidade. Convém admitir, ainda assim,
que acórdãos como o que agora se refere, do Tribunal da Relação do Porto, são
exceções. O que não os torna menos preocupantes ou dignos de crítica e
reflexão.”
É, como diz Inês Cardoso e
se lê no acórdão, um raciocínio existente em muitos setores da sociedade, ou
seja, “é o clássico ‘ela estava mesmo a
pedi-las’ que traduz uma dupla penalização da mulher”: não lhe basta ser vítima
de agressão, assédio ou abusos sexuais; é ainda, muitas vezes, “considerada a
causa do crime”. E porquê? A colunista responde com hipóteses que facilmente se
tornam reais no juízo dos críticos:
“Ou
porque se veste de forma provocatória, ou porque falha no seu papel de esposa
dedicada, ou porque age com deslealdade e
imoralidade sexual”.
E termino com a sentença
judiciosa da subdiretora do JN:
“Sabemos
que popularmente há muito a fazer para combater a violência conjugal e a
desigualdade de género. Mas os tribunais, como os restantes órgãos de
soberania, existem para promover a justiça e a igualdade. Não para validar o
preconceito e a discriminação.”.
Enfim, apetece bradar quanto
à cultura de violência doméstica transversal à sociedade:
Se
os tribunais não conseguem fazer pedagogia da justiça na sociedade que temos,
tão desvirtuada tantas vezes, ao menos que não se tornem agentes da
contrapedagogia ou instrumentos da deformação da cidadania. Também eles têm
responsabilidade política enquanto decidem a aplicação interpretativa da Lei
face ao juízo que fazem dos factos.
2017.10.23 – Louro de
Carvalho
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