domingo, 8 de outubro de 2017

As parábolas da vinha

São três parábolas atinentes ao reino de Deus, revelando o seu ser e dinamismo sob a imagem da vinha, mas cada uma com a sua especificidade e escopo.
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A primeira (Mt 20,1-6a), enunciada na continuação da resposta de Jesus a Pedro, que desafiou Cristo a esclarecer a recompensa que teriam os discípulos que deixaram tudo para O seguirem (cf Mt 19,27), ilustra parabolicamente o remate de tal resposta: Muitos dos primeiros serão os últimos e muitos dos últimos serão os primeiros” (Mt 19,30). É a parábola do Senhor que tinha uma vinha e recrutou, em vários momentos do dia, os trabalhadores que encontrava ociosos na praça (mesmo quando faltava apenas uma hora para o dia chegar ao fim). Tendo, no fim do dia, mandado pagar um denário a cada um dos trabalhadores, tanto aos da 1.ª hora, como aos da última e aos das horas intermédias. Um dos da primeira hora refilou porque os últimos receberam tanto como os que trabalharam o dia todo.
O Senhor interveio para dizer que cada um recebeu segundo o que foi contratado e denunciou a inveja do trabalhador por causa da bondade do senhor da vinha.
Esta perícopa do Evangelho, assumida para o domingo XXV do Tempo Comum no Ano A, é a primeira duma série de três que apresentam a imagem da vinha. Nos dois domingos seguintes, são assumidas as outras duas.
Na figura da vinha, simples e do quotidiano, a Escritura condensa a realidade muito rica e profunda, cada vez mais plena de significado à medida que os textos nos aproximam da revelação em Jesus Cristo. Em 1Rs 21, narra-se o violento episódio que envolve Nabot, súbdito de Acab, o rei corrupto, que possuía uma vinha próximo do palácio real. Por amor à vinha, herança paterna, acabou por perder a vida e a vinha. No capítulo 5 de Isaías, fica esclarecido que a vinha do Senhor é o povo de Israel: “A vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel; os habitantes de Judá a sua plantação preferida (Is 5,7). O Senhor, que ama o seu povo com um amor infinito e eterno, firmado com uma aliança inviolável, cuida dele como o vinhateiro trata da sua vinha, fazendo tudo para que frutifique em quantidade e qualidade. Mas esta narrativa evangélica centra-se na relação entre o proprietário da vinha e os vários contratados a horas diferentes, pagos com o mesmo salário segundo critérios diversos dos critérios meramente humanos da justiça comutativa.
À primeira vista, os ouvintes ou leitores podem sofrer a tentação de se colocarem a favor dos contratados da 1.ª hora, chamando injusto o dono e indo a contestar assim a postura de Deus.
Ora, Jesus quer ensinar que, ao contrário do que pensava a teologia judaica, a recompensa não é uma remuneração ajustada às obras do homem, mas é fruto da superabundante bondade e misericórdia de Deus. Literariamente, a parábola explicita o tema vago dos “primeiros-últimos e últimos-primeiros”, de Marcos (cf Mc 10,31) e Lucas (cf Lc 13,30). 
Porém, Jesus vai mais além: quer abolir do reino messiânico a situação de privilégio tão apreciada em Israel, replicada nas parábolas do pai e dos dois filhos sobre a ida para a vinha (vd Mt 21,28-32), dos maus vinhateiros (vd Mt 21,33-41) e do banquete nupcial (vd Mt 22,1-14). Com efeito, há de vir, a substituir o judaísmo um povo que dará os frutos a seu tempo (vd Mt 21,41).
Com os da 1.ª hora, o dono da vinha ajustou um denário por dia; com os seguintes ficou acordado “o que for justo”; e com os da última hora nada foi acordado nem prometido.
O surpreendente consiste no sistema de pagamento em que os primeiros constatam que os últimos recebem o mesmo que foi acordado com eles: é-lhes efetivamente dado um denário. Parece injusto, mas o dono da vinha, que é pai de família, age numa perspetiva de justiça assente na bondade e generosidade, entendendo que os da última hora têm o mesmo direito a viver, pois só não trabalharam mais porque ninguém os contratou.
O denário que é dado a todos é o reino dos céus que Jesus trouxe à terra; é a possibilidade de entrar a fazer parte da salvação messiânica. Aliás a parábola começa por dizer: “O reino dos céus é semelhante a um proprietário…”.
O problema é, pois, o da posição de hebreus e pagãos, de justos e pecadores, em relação à salvação anunciada por Jesus. Jesus apresenta um Deus diferente: não um Deus comerciante que paga a cada um conforme as ações, estabelecendo diferenças de tratamento, mas que é um pai bondoso, acolhedor – que sai a chamar, não se ficando a esperar por quem vá chegando ou por quem possa não comparecer. Mesmo os pagãos (e os pecadores, os publicanos, as prostitutas, etc.), que estavam longe (“ociosos”), mas que se decidiram por Deus com a pregação de Jesus Cristo, não ocuparão no reino uma posição diferente e inferior; sentar-se-ão à mesma mesa e gozarão, como os outros, da plenitude dos bens messiânicos; e, ainda, porque muitas vezes se mostram mais prontos a acolher o Evangelho, ao contrário dos “justos”, os da “primeira hora”, realiza-se o que Jesus diz na conclusão da parábola, “os últimos serão os primeiros e os primeiros os últimos” – enunciado semelhante aquele com que terminou o capítulo 19, a rematar a resposta de Jesus ao repto de recompensa lançado por Simão Pedro.
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Nas outras duas parábolas da vinha, os interlocutores de Jesus são príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo, no fundo os representantes do culto e do povo.
O texto evangélico do domingo XXVI do Tempo Comum no Ano A (Mt 21,28-32) vem na sequência do diálogo-confronto entre Jesus e os sumos sacerdotes e anciãos do povo que o interrogam acerca da sua autoridade para ensinar no Templo, após a entrada triunfal em Jerusalém e a poucos dias da sua morte.
Verifica-se uma tensão crescente nos diálogos que Jesus vai tendo com os diversos grupos. Não respondendo diretamente, lança-lhes um repto, que consiste em interroga-los sobre a autoridade da pregação e batismo de João: se vinha do céu ou dos homens. Ora, se dissessem que veio do céu, Ele perguntaria porque não lhe deram crédito; mas, se dissessem que é dos homens, teriam todo o povo contra eles, pois João era tido como um profeta. Por isso, a resposta foi que não sabiam e, consequentemente, a postura de Jesus ganhou legitimidade para não dizer com que autoridade realizava aquelas coisas.
Com a narrativa do pai e dos dois filhos em que estes respondem de modo diferente à vontade do pai, Jesus faz com que os seus interlocutores entrem na lógica da sua escolha preferencial pelos pecadores, representados pelo primeiro filho, inicialmente longe da vontade da vontade do Pai, mas que, ao converterem-se, acabam por cumprir a vontade de Deus. O segundo filho representa o grupo dos judeus, ditos observantes da Lei, que respondem imediatamente: “Eu (vou), Senhor!”, numa resposta formalista que não está de acordo com a vontade de Deus.
Esta é a parábola da precedência dos publicanos e prostituas no reino dos céus e a primeira das parábolas de rutura, de que a segunda, a dos maus lavradores, é comum nos três sinóticos.
A segunda parte da perícopa tira as consequências da parábola tomando como ponto de referência a pregação e a atividade penitencial de João Batista, que veio no caminho da justiça, sendo que o vocábulo “justiça” em Mateus significa “vontade de Deus”. Assim, o caminho da justiça que João veio apresentar ao povo é a norma de conduta que realiza as verdadeiras exigências da vontade divina, da implantação e desenvolvimento do Reino e da santificação do nome do Pai que está nos Céus. 
Muitos, considerados pecadores face à lei judaica, tal como os publicanos, a que se juntam as prostitutas, ouvindo a pregação de João e acreditando nela, foram capazes de mudar de vida, arrependendo-se da sua conduta. Porém, os “eleitos” – judeus observantes formais da Lei e as autoridades religiosas – não só não foram capazes de reconhecer o significado religioso da missão de João, mas também se mantiveram longe do movimento de conversão proposto. É tendo isto em conta que se percebe a dura asserção de Jesus: “Os publicanos e as prostitutas preceder-vos-ão no Reino de Deus”.
Jesus tem a plena consciência de que vai ser rejeitado pelas autoridades judaicas e que serão os ditos “eleitos”, ao contrário dos excluídos, que vão exigir a sua eliminação e morte pela cruz. É, pois, natural que Mateus, ao relatar esta parábola aos seus leitores, pense na realidade da recusa do Evangelho por parte dos judeus e na sua aceitação da parte dos pagãos e queira advertir os membros da comunidade que se contentam com a declaração formal da fé que não encontra eco nas suas vidas. Por isso, relembra aos discípulos, ou seja, aos cristãos, que “nem todo o que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino do Céu, mas sim aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21) e que a nova família de Jesus, isto é, os verdadeiros membros da comunidade são aqueles que fazem a vontade do Pai que está nos céus (cf Mt 12,50).
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A parábola assumida para a leitura proclamada do Evangelho neste domingo de 8 de outubro, o XXVII do Tempo Comum no Ano A (Mt 21-33-43), parte da imagem bem conhecida dos ouvintes de Jesus e dos leitores de Mateus: a vinha plantada com toda a tenção e devidamente cuidada com esmero e dedicação. O ponto de partida, o desta vinha assim tratada, é transcrição literal do apólogo ou canto da vinha do profeta Isaías (5,1-7), acentuando-se, antes de mais, a iniciativa do proprietário que plantou uma vinha. Mateus representa descritivamente tal atenção e cuidado com o emprego de cinco verbos: plantou… cercou… escavou… construiu… arrendou. Após ter plantado a vinha, arrendou-a a outros e partiu para longe.
A vinha é a mesma e o proprietário também é o mesmo. A mudança reside em quem trabalha na vinha, ou seja, os vinhateiros a quem o proprietário a cedeu para dela cuidarem, esperando receber a percentagem habitual da colheita, conforme foi acordado.
Esta é a parábola dos maus trabalhadores ou da rejeição de Israel, que é substituído por outro povo, que dará os frutos a seu tempo. A linguagem parabólica dá facilmente a entender a condenação da nação infiel por Jesus, bem mais explícita e dura que na parábola anterior, ditada pelos seus próprios ouvintes:
Mandará [o proprietário] matar sem piedade aqueles miseráveis e arrendará sua vinha a outros lavradores que lhe pagarão o produto em seu tempo”. 
Estamos, portanto, ante uma alegoria que apresenta a história da salvação. A vinha, com uma torre e com a vedação em seu redor, representa, como é visível, Israel, o Povo de Deus, um povo de referência para o mundo; o proprietário é Deus, que toma a iniciativa de construir e encarrega os outros de cooperar; os vinhateiros são os chefes religiosos, que deviam cuidar da vinha e fazer com que ela produzisse frutos, mas são um estorvo; os servos enviados são os profetas que pregaram antes e depois do exílio da Babilónia e a quem os chefes, a maior parte das vezes, perseguiram, apedrejaram e até mataram; e o Filho lançado fora da vinha (fora da muralhas de Jerusalém) e morto é Jesus. De facto, esta parábola, que Jesus conta a poucos dias da sua morte que já tinha sido decidida precisamente por aqueles que o estavam a escutar, é uma parábola tipicamente messiânica. Não é só o proprietário que está em evidência e grupos diferenciados de personagens, mas também o Filho (é clara a alusão à encarnação do Verbo). Entenda-se Deus e o seu Messias, bem como os profetas que foram advertindo o povo para a pureza da Aliança, a interioridade do conteúdo da Lei, a justiça e santidade de Deus e o alargamento da salvação a todos os povos.
Quem ouve uma história como esta passa da perplexidade à fúria em relação à atitude tomada pelos vinhateiros – o que sucedeu com os ouvintes de Jesus, só que não aplicaram a si a lição. Não bastou aos vinhateiros negarem-se a dar aquilo com que se comprometeram como se arvoraram em donos da vinha, de maneira arrogante e criminosa. A resposta dada pelos ouvintes de Jesus à pergunta de Jesus sobre o que faria o dono da vinha quando viesse é lógica:
Fará morrer miseravelmente aqueles malvados e dará a vinha a outros vinhateiros que lhe entregarão os frutos na altura devida”.
Porém, esta resposta serve de mote e de pretexto para Jesus se dirigir diretamente a eles. Por detrás da morte miserável dos “vinhateiros” está a tomada e destruição da cidade de Jerusalém, no ano 70, que causou uma enorme consternação e carnificina.
Os fariseus e os príncipes dos sacerdotes, depois de eles próprios pronunciarem a sentença condenatória, perceberam que Jesus falava deles. Por isso, queriam agarrá-Lo, mas tiveram medo da multidão que O considerava como profeta. E ainda não tinham semeado a cizânia na multidão contra Ele, como depois sucedeu quando a levaram a pedir a morte do Justo.
Uma outra inferência da parábola parte do Salmo 118,22, referente, de acordo com toda a tradição neotestamentária, ao Messias e ao Templo: o filho, rejeitado e morto, é a pedra rejeitada pelos construtores, mas eleita por Deus como pedra angular e de alicerce da nova construção, obra admirável. Os novos vinhateiros são apresentados como um “povo” contraposto ao primeiro, que foi infiel. Este povo não se identifica simplesmente com os pagãos convertidos, mas envolve todo o povo messiânico, com hebreus e pagãos, fundado sobre a pedra angular que é Cristo ressuscitado. Mas quem tropeçar nesta pedra angular sentirá o seu peso esmagador. Por isso, há que evitar a situação de queda ou de tropeço perante o Ressuscitado.
Os frutos do Reino de Deus podem ser identificados com a justiça que os discípulos devem procurar – acima da justiça dos fariseus e dos doutores da Lei – como valor prioritário: uma justiça que consiste na realização alegre e perseverante da vontade do Pai, requerida pela fé confiante, firmada na esperança dos bens prometidos e vivificada pela caridade, a joia evangélica posta ao serviço de todos para que não haja qualquer necessitado de nenhum dos bens messiânicos: espirituais, materiais, culturais e sociais.
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As parábolas da vinha são a trilogia que devemos meditar diariamente em sintonia com a vontade de Deus e do dinamismo o seu Reino.

2017.10.08 – Louro de Carvalho

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