O dia 2 de
outubro fica marcado por um acontecimento insólito em países democráticos.
Apesar de as altas instâncias madrilenas, nomeadamente o Tribunal Constitucional, haverem declarado ilegal e inconstitucional o
referendo promovido pelo governo catalão, a consulta popular realizou-se sobre
o desejo de independência da nação da Catalunha em relação à convencionada
unidade espanhola, muito embora com as autonomias estabelecidas a partir da
queda do regime franquista. Não obstante a intervenção policial, sob o comando
de Castela, ter selado mesas de voto e tentar impedir a ida dos cidadãos às
urnas, 42% dos 5,3 milhões de eleitores foram exprimir o seu voto. E o “sim”
venceu com uma enorme vantagem: 90%.
Porém,
o dia pela independência da Catalunha fica para a posteridade pelos momentos de
tensão e violência que puseram em polvorosa a região e a que os Estados e a
própria UE parecem ter feito vista grossa. Os quase 900 feridos (893) em confrontos com a polícia não podem deixar de pedir
responsabilidades ao Governo central por ter deixado avançar os acontecimentos
com a simples advertência de que a ação cívica da Catalunha era ilegal e
inconstitucional e, faltando-lhe a sagacidade de olhar a realidade com uma
leitura que induzisse o diálogo político, não ter acolhido a sugestão duma
revisão constitucional da lei fundamental saída dum regime de transição da
ditadura para a democracia sob a égide da monarquia, que não tem possibilidades
de eficácia política, apesar do seu cariz de simpatia e modernidade. Por outro
lado, o Governo da região também não se terá munido da ciência de sabedoria
suficiente para levar as coisas a bom porto sem evitar o acirramento dos
ânimos. Aliás, a postura da Presidente da Câmara de Barcelona surge bastante
avisada.
Não me perco
na análise dos grupos que pretendem a independência. Motivações, obviamente
diferentes, não faltam à esquerda na sua ação reivindicativa pela
autodeterminação como não faltam à direita cujos interesses económicos e de
supremacia mudam conforme as conveniências e a conjuntura. A Espanha perdeu o
império e o dinheiro hoje fica caro a todos os grupos económicos e financeiros,
que não olham a meios para fazer valer os seus intentos.
Do meu ponto
de vista, a Espanha, que mostrou a prudência de uma transição do caudilhismo
para a democracia sem renunciar ao estatuto de Estado unitário, mas sabendo
estabelecer as autonomias regionais, bem poderia ter evoluído, em termos
constitucionais e através de leis-quadro, para a reformulação fisionómica do
Estado. Porque não uma Estado federal: um Estado de Estados, onde cada Estado
tivesse as suas leis (emanadas dum parlamento estadual), os seus decretos e regulamentos (emanados dum
Governo tutelado por um Presidente independente do Governo), a sua polícia estadual e os seus tribunais de
instância e recurso – cabendo ao Estado Federal legislar em matérias de
interesse (poucas) para toda a Espanha e aos
tribunais federais de instância e de recurso dirimir pleitos sobre tais leis e
um Supremo para dirimir em última instância decisões que lhe chegassem através
dos tribunais estaduais. E há bons exemplos, como Confederação Helvética (Suíça) e Alemanha (que até esteve dividida e se uniu
por ação de Helmut Khol).
***
O líder do executivo comunitário, Jean-Claude Juncker, falou
ao telefone com Rajoy, reiterando a posição anunciada pelo porta-voz da
Comissão Europeia. Com efeito, a Comissão sustentou hoje, dia 2, na conferência
de imprensa diária, que “a violência nunca pode ser um instrumento na
política”, mas reiterou que o referendo catalão foi “ilegal” ao abrigo da
Constituição espanhola. Uma no cravo, outra na ferradura! Porém, Donald Tusk, presidente
do Conselho Europeu, telefonou ao líder do Governo espanhol, pedindo-lhe que
procurasse “meios para evitar uma nova escalada de violência e uso da força”,
na sequência dos confrontos entre polícia e manifestantes no domingo, na
Catalunha, que pretendiam votar, no domingo, no referendo para a independência
da Catalunha, que o Tribunal Constitucional espanhol declarou ilegal.
Por sua vez, o alto-comissário das Nações Unidas para os
Direitos Humanos mostrou-se “muito perturbado” com a violência ocorrida e pediu
uma investigação independente e imparcial sobre “todos os atos de violência”. Em
comunicado, Zeid Ra'ad Al Hussein, sustentou que a resposta da polícia nestas
situações deve ser “proporcional”. De facto, de acordo com o que sustenta o Governo
regional catalão, 893 pessoas ficaram feridas na Catalunha, na sequência de
confrontos entre as polícias nacionais espanholas e cidadãos que pretendiam
votar no referendo. E, pelo menos 9 agentes da polícia e 2 elementos da Guardia
Civil também ficaram feridos nos confrontos, que visavam impedir a votação
ilegal. Para Zeid Ra'ad Al Hussein, a situação “deve resolver-se através do
diálogo político, com total respeito pelas liberdades democráticas”.
A justiça de
Madrid considerou ilegal o referendo e deu ordem para que a polícia regional
fechasse os locais de votação. Face à inação da polícia regional, os Mossos d’ Esquadra,
em alguns locais, foram chamadas a Guardia Civil e a Polícia Nacional
espanhola. Foram estes corpos de polícia que protagonizaram os maiores momentos
de tensão para impedir o referendo. Realizaram cargas policiais e entraram à
força em várias assembleias de voto ocupadas por pais, alunos, residentes e
cidadãos em geral na tentativa de garantir que os locais permaneceriam abertos.
Tais forças retiraram pessoas que ocupavam locais de votação, tendo mesmo
ocupado o pavilhão desportivo da escola em Girona onde deveria votar o líder da
Generalitat, Carles Puigdemont, que acabou por votar noutro local.
Além disso,
houve, segundo relatos de repórteres das agências noticiosas internacionais, confrontos
noutros locais, nomeadamente na sala de exposições de Sant Carles de la Ràpita
(Terragona) e na Escola Rius i Taule (Barcelona).
O governo
da Catalunha informou que 893 pessoas receberam atendimento médico na sequência
dos confrontos e incidentes com a polícia. Quatro destas pessoas apresentavam
ferimentos graves e continuam hospitalizadas, embora estejam estáveis. Segundo
as autoridades de saúde catalãs, a região com mais feridos foi Barcelona, onde
384 pessoas pediram apoio médico. Na região de saúde de Girona, foram atendidos
250; na de Lleida, 111; na de Tierras del Ebro, 58; na da Catalunha Central,
47; na de Camp de Tarragona, 42; e, na do Alt Pirineu i Aran, um.
***
Enquanto o
Governo português entende que a questão catalã é um problema interno de Espanha
e que nos cabe manter as relações com o Estado espanhol, Manuel Alegre, o histórico
militante do PS afirma-se, segundo o DN,
“indignado com a repressão” levada a cabo pelas autoridades espanholas sobre o
referendo independentista catalão, dizendo:
“Não pode
haver dois pesos e duas medidas. Não podemos criticar a Polónia, a Hungria e a
Turquia e assobiar para o lado e dizer que o problema da Catalunha é um
problema interno de Espanha.”.
Alegre
sustenta que a forma de repressão por Madrid faz com que “a partir deste
momento” a questão seja “um problema da democracia e da liberdade” e “um
problema da Europa e um problema nosso”. Afirmando que “pessoalmente” é
“solidário” – como o seria Mário Soares – “com o ato da Catalunha de dispor do
seu próprio futuro” por “meios democráticos e pacíficos”, Alegre admite, porém,
ter “dúvidas” sobre “os métodos utilizados pelos dirigentes catalães”. Só que,
para ele, “isso não invalida o direito de o povo se pronunciar” e não lhe tira
a “repugnância com os métodos utilizados pelo poder central de Espanha”: houve
“repressão”, o que é “impróprio de um país democrático e europeu”.
***
A Presidente
da Câmara de Barcelona, Ada Colau, advertiu o governo regional catalão de que a
eventual declaração unilateral de independência “não é a melhor via” para
resolver a situação da Catalunha, que é “muito grave”, mas antes uma “resposta
inclusiva”, pois, o referendo, que fora suspenso pelo Tribunal Constitucional,
não se realizou “com garantias”. Por isso, apelou à prudência e pediu “unidade
de ação” para uma resposta “o mais inclusiva possível”.
Colau mostrou-se
ainda “desiludida” com a reação “tíbia” do líder do PSOE, Pedro Sánchez, face à
atuação “absolutamente indignante” das forças de segurança no dia do referendo.
O referendo,
segundo a autarca, foi marcado pela Generalitat
dominada pelos separatistas e boicotado por todos os partidos e movimentos que
não querem a separação de Espanha.
***
O presidente
do governo regional, Carles Puigdemont, que declarara remeter a questão para o
Parlamento da Catalunha visando a declaração da independência na forma de “república”,
insistiu hoje no pedido de uma “mediação internacional” para o conflito e
exigiu a “retirada de todos os efetivos policiais” enviados para a região para
impedir o referendo.
Após reunião
extraordinária do executivo catalão convocada na sequência dos acontecimentos
ocorridos este domingo na Catalunha, em que, segundo a Genaralitat, 893 pessoas
foram feridas nas cargas policiais, Puigdemont denunciou os “graves atos de
violência” protagonizados por “comandos de medo” da Polícia Nacional e da
Guardia Civil deslocadas para o território.
O governante
catalão considerou que a mediação internacional pode ter origem em distintos
fóruns especializados na resolução de conflitos, mas considerou evidente que a
União Europeia “deve apadrinhar” este processo. Segundo Puigdemont, a UE tem de
“deixar de olhar para o outro lado” face ao que disse serem as “violações” da
carta europeia de direitos fundamentais, aduzindo que a questão já não é apenas
um assunto interno, mas “um assunto europeu”.
Por seu turno, o Primeiro-Ministro
espanhol, Mariano Rajoy, sobre o referendo na Catalunha, disse que foi “apenas
uma encenação”. Fê-lo numa declaração
ao país, em que referiu que a “Espanha é uma nação firme e determinada”,
ressalvando que a sua principal função como primeiro-ministro é “proteger a
democracia”.
Disse
que, “nesta irresponsável estratégia política, foram violados os direitos fundamentais”
e criticou a ocupação de escolas na Catalunha, registada desde sexta-feira,
acusando a Generalitat de ter “doutrinado crianças e assediado juízes e
jornalistas” e de ter enganado os catalães, fazendo-os “participar numa mobilização
sem garantias”. Mas ressalvou que a maioria dos catalães demonstrou ser “gente
de lei” e ignorou a “convocatória”, o que não é totalmente verdade, pois o
ambiente de intimidação pode ter feito a sua parte.
O líder
do Governo espanhol alegou que “há meses que dizíamos que o referendo não se
realizaria” e que as autoridades da Catalunha “sabiam que o referendo era ilegal,
mas optaram por atacar o modelo democrático”. Assim, “o referendo que pretendia
liquidar a Constituição evitou-se graças ao apoio dos democratas”, sendo de
relevar, na sua ótica, o papel das “forças e corpos de segurança, Polícia
Nacional e Guardia Civil”. Pudera! Cumprem ordens…
Rajoy
agradeceu à comunidade internacional por entender a posição de Espanha e
sublinhou que “cumprimos com a nossa obrigação e atuámos apenas com a lei”,
demonstrando ter recursos “para nos defendermos destes ataques”. Assim, hoje a
Espanha tem motivos para confiar na democracia, pois “o processo de divisão
fracassou”.
Assegurando
que “não se pode substituir a concórdia pela chantagem que fizeram”, Rajoy
atacou a Generalitat por não ter escutado o Governo central e afirmou que “tem
de se começar a restabelecer a normalidade”. E pediu às forças políticas que o “continuem
a apoiar”, pois constatou-se a força da democracia espanhola, pelo que “os
espanhóis têm de continuar unidos”.
***
Da
sua parte, o Governo da Catalunha, que defendeu, com o seu presidente, Carles
Puigdemont, numa declaração pública no domingo, a legalidade e validade do
referendo, decidiu reunir-se esta manhã à porta fechada para tomar posição
sobre a proposta de greve geral.
Com
efeito, o porta-voz da Generalitat, Jordi Turull, anunciou para a manhã de hoje
uma reunião do governo da Catalunha para decidir os passos seguintes após o
referendo, em que, de forma esmagadora, os eleitores catalães se pronunciaram a
favor da independência desta região.
No
mesmo anúncio, Turull explicou que a Generalitat analisará a posição a tomar
sobre a convocatória de greve geral feita pelos sindicatos, referindo a lógica da
existência de alguma forma de protesto devido à ação das forças de polícia
deslocadas para a Catalunha pelo governo central. E aproveitou para elogiar a
atuação das forças locais, os Mossos d’Esquadra, que não participaram nas
tentativas para impedir o funcionamento das assembleias de voto.
Por
seu turno, o porta-voz do governo de Madrid, Ínigo Méndez de Vigo, anunciou a
intenção de Rajoy negociar com a Catalunha, mas confessou que isso será “muito
difícil” com alguém que só tem na mira a independência. A Generalitat informará
o Parlamento da Catalunha dos resultados do referendo para que se pronuncie,
pois é esta Câmara que terá de decidir o passo seguinte, ou seja, é deste Parlamento
que depende a decisão duma declaração de independência.
Entretanto,
Mariano Rajoy, encontrou-se esta tarde com Pedro Sanchéz, secretário-geral do
PSOE, partido na oposição e que sempre se mostrou contrário à realização do
referendo.
***
É ainda de
notar que o Bispado de Girona emitiu um comunicado com referência “aos graves
incidentes vividos” a 1 de outubro na Catalunha, em especial naquela diocese. “Condena a
violência que sofre o povo de Catalunha, bem como “os maus-tratos sofridos
por muitos cidadãos que quiseram expressar livre e pacificamente a sua
opinião”.
Dizendo que
“a resistência não se resolve com violência, mas com um diálogo sincero e
pacífico”, a nota conclui com um apelo do Bispo Francesc Pardo i Artigas a “encomendar
o conjunto do país ao Deus da paz”. Também os Bispos de Tarragona y
Barcelona, Jaume Pujol y Juan José Omella, se pronunciaram contra a deplorável
“situação de violência que vive hoje a Catalunha” e pediram “uma saída pacífica
e democrática”. E pôde ver-se o Bispo Xavier Novell desafiando a lei para se aproximar
da mesa de voto a participar na consulta popular.
***
Valerá mais o
império da lei ou a vontade dos povos? Até quando o “summum ius” com a “summa
iniuria”? Porque não o diálogo político e a negociação? O povo tem direito
à vez e à voz, que não pode ser silenciada em nome da lei. A lei é para o homem
e não o homem para a lei. Por lei não haverá golpe de estado nem revolução, o
que nem Tomás de Aquino sustenta.
2017.10.02 – Louro de Carvalho
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