Finalmente, uma investigação de mais de quatro
anos resultou em acusação formal de crimes a 28 arguidos, número em que se
incluem 9 empresas. Além de um ex-Primeiro-Ministro, contam-se outras grandes
figuras públicas e empresariais (alguns foram
condecorados por um Presidente da República), incluindo um ex-ministro.
Os
números falam por si. São ao todo 187 crimes o objeto da acusação na “Operação Marquês”. Mas podem surgir mais
acusados, pois o Ministério Público (MP) decidiu extrair 15 certidões para
“posterior investigação em processo autónomo”, o que poderá resultar em mais 15 processos. E 4.083 é o número de páginas que integram o despacho final
citado pelo MP no comunicado enviado às redações hoje, dia 11 de outubro.
O ex-Primeiro-Ministro
José Sócrates é acusado de 31 crimes, enquanto o ex-banqueiro Ricardo
Salgado foi alvo de 21 acusações e o
antigo presidente da PT, Zeinal Bava, tem 5
acusações. José Sócrates terá
acumulado 24 milhões de euros na Suíça, entre 2006 e 2009.
Entre
as acusações a Sócrates estão três crimes de corrupção passiva,
16 de branqueamento de capitais, nove por falsificação de documento e três por
fraude fiscal qualificada. Porém, o arguido contra o qual recai a acusação do
maior número de crimes é o seu amigo, o empresário Carlos Santos Silva, que vai
acusado de 33 crimes, entre os quais
17 de branqueamento de capitais e dez de falsificação de documento.
E, além das penas que o Tribunal possa decretar
em razão dos crimes, o MP, que atua
em defesa do Estado, entra também com o pedido de indemnização cível no valor
de 58 milhões de euros aos arguidos. Com
efeito, o DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) acusa os arguidos de causarem ao Estado, de forma
ilícita, uma grave lesão, através da frustração da arrecadação devida em sede
de IRS e IRC. Só Sócrates e Santos Silva deverão
pagar 19,5 milhões, de forma solidária. Já
Ricardo Salgado e Henrique Granadeiro deverão ser condenados a pagar
solidariamente mais de 4,7 milhões de euros. Granadeiro terá ainda de pagar
11,6 milhões, segundo a acusação. Zeinal
Bava deverá pagar, segundo o entendimento do MP, 16,7 milhões de euros. Para Helder Bataglia e Ricardo
Salgado é pedida a condenação ao pagamento de quase 1,5 milhões e a Carlos
Santos Silva exige-se que indemnize o Estado em mais de 1,5 milhões. O MP pede ainda a condenação de Armando
Vara ao pagamento de quase 1,5 milhões de euros e que sejam declarados perdidos
a favor do Estado vários saldos de contas bancárias e imóveis, contas essas em
nome de Carlos Santos Silva, Gonçalo Trindade Ferreira, Armando Vara, Zeinal
Bava e Henrique Granadeiro.
***
A partir daqui, o cinema segue, com os devidos intervalos para descanso,
conforme era esperado: o DCIAP tenta segurar a validade da acusação; a Defesa tenta
destruí-la; e os titulares dos altos cargos políticos esperam que a justiça
desempenhe o seu papel e no seu tempo.
Rosário Teixeira, o responsável
pela acusação na “Operação Marquês”, diz que o DCIAP está confiante quanto à
solidez da acusação, “senão não teria sido deduzida”. Assim, de acordo com a
posição do procurador, José Sócrates, Ricardo Salgado e Zeinal Bava terão agora
que enfrentar o julgamento. Esquece a possibilidade da fase de instrução, que
pode ditar a não pronúncia. Questionado acerca do possível impacto das críticas
dos advogados, acrescenta que “isso está resolvido processualmente, não é uma
questão”. Quanto aos prazos, comenta apenas que “acabou quando
acabou”, negando qualquer constrangimento ao tentar
cumprir os prazos definidos pela PGR.
Também o diretor
do DCIAP, Amadeu Guerra, afirmou que “cumprimos a nossa função” e que dentro do
DCIAP “todos estamos de consciência tranquila, claro”,
recusando-se a prestar mais declarações.
Segundo a lei (o Código de Processo Penal), os arguidos têm 20 dias úteis para requerer a
instrução, a partir da notificação do último de todos os arguidos, mas, nos
casos de especial complexidade, esse prazo pode ir até aos 50 dias. Assim, as
defesas dos 28 arguidos da Operação Marquês – entre eles, José Sócrates – têm
agora 50 dias (20+30) para pedir a abertura de
instrução.
A fase de instrução consiste num pedido feito pelas defesas dos arguidos,
ou assistentes no processo, após a dedução de acusação ou de arquivamento se,
do decurso do inquérito e da instrução resultarem indícios de facto e elementos
de direito suficientes para justificar a submissão ou não do arguido a
julgamento.
O Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) admite que o prazo de 50 dias que,
no limite, a defesa de José Sócrates e restantes arguidos têm para requerer a
abertura de instrução “poderá não ser suficiente” para analisar as
cerca de 4 mil páginas do despacho de acusação. Ainda assim, António Ventinhas
lembra que “há muito tempo” que os advogados de defesa “vão tendo acesso ao
processo”.
O pedido será analisado pelo juiz de instrução que,
neste caso concreto, poderá ser Carlos Alexandre, que até aqui esteve com o processo. Porém, segundo a lei, o magistrado
judicial que ficará com a fase da instrução será nomeado por sorteio. Sendo que,
no DCIAP, onde decorre o processo, apenas existem dois magistrados judiciais,
Carlos Alexandre e Ivo Rosa, pelo que será um destes dois magistrados que decidirá
se haverá pronúncia (em que os arguidos irão a julgamento) ou não pronúncia (em que estarão livres do julgamento).
E, nesta fase de instrução, não podem ser chamadas mais de 20 testemunhas,
segundo o que está previsto no Código de Processo Penal.
Em comunicado enviado à agência Lusa, os advogados João Araújo e Pedro
Delille anunciam que “irão examinar detalhadamente o despacho e todos os
elementos do processo e irão usar todos os meios do direito para derrotar, em
todos os terrenos, essa acusação infundada, insensata e insubsistente”. E argumentam:
“A um primeiro relance, trata-se de um
romance, de um manifesto, vazio de factos e de provas, pois não pode ser
provado o que nunca aconteceu. Trata-se de retomar e desenvolver os mesmos
temas numa iniciativa de grande espetáculo.”.
Os advogados reiteram que a acusação
surge depois de “largamente ultrapassados todos os prazos da lei” e é “visivelmente,
destinada a reanimar, a alimentar e a expandir a suspeição lançada sobre a
pessoa e a ação de um ex-Primeiro-Ministro e do seu Governo”. Sustentam que mantiveram,
ao longo do processo, mesmo face ao “enorme e injusto sacrifício pessoal do seu
constituinte, absoluta confiança no direito, mesmo quando os que o deviam guardar
e acatar o violaram grosseiramente”. Garantem ser neste quadro que irão continuar,
“com rigor e exigência”, a fazer a defesa do antigo líder do PS. E observam
que, com “esta acusação, cessam os poderes de direção do processo pelo
Ministério Público, que ficará sujeito ao controlo jurisdicional por juiz
competente, isento e imparcial”.
São estas as ideias que forneceram à Comunicação Social e que, na
substância, confirmaram em conferência de imprensa.
O Presidente da República recusou fazer
qualquer consideração quando hoje foi questionado pelos jornalistas acerca da
acusação do processo “Operação Marquês”, que aponta 31 crimes ao antigo
Primeiro-Ministro José Sócrates. Apenas adiantou apenas que “é bom tudo o que
seja a Justiça a acelerar e a converter em prazos mais curtos aquilo que temos
a noção que é muito longo”. E remeteu estas questões para o
discurso que levou ao 5 de outubro, escusando-se a comentar em concreto este
caso da justiça.
O Governo, pela voz do Ministro dos Negócios
Estrangeiros, Augusto Santos Silva, defende que “era essencial” que a acusação decorresse
“no lugar próprio”, como acontece “num Estado de direito”, e não primeiro na
comunicação social.
Confrontado com o facto de José Sócrates, um dos 28
acusados na “Operação Marquês”, estar acusado de um total de 31 crimes e de ter
recebido 24 milhões de euros em luvas, o governante socialista, que foi Ministro
de Sócrates, disse ver “com muita tranquilidade” a acusação:
“O que era
essencial era que a acusação se fizesse no lugar próprio e através dos órgãos
próprios, não nos jornais, nas televisões ou nas rádios, não através de fugas
de informação, mas que se conhecesse qual é a acusação, os factos em que se
fundamenta para também conhecermos qual é a defesa e depois o tribunal julgará.
É assim que acontece num Estado de direito.”.
À margem da visita dos reis holandeses à Universidade
de Lisboa, no quadro da visita oficial de três dias a Portugal, Santos Silva,
que foi Ministro da Defesa e dos Assuntos Parlamentares nos dois governos
liderados por José Sócrates, esclareceu que, “como amigo” do antigo Primeiro-Ministro,
aguarda “com toda a serenidade, quer o texto da acusação”, que ainda
desconhecia, “quer a defesa, porque é isso que faz funcionar o Estado de
direito: que as pessoas sejam acusadas nos lugares próprios e que se possam
defender”. Mas, questionado se a acusação foi demorada, apenas respondeu: “Como ministro dos Negócios Estrangeiros, não
tenho mais nada a dizer”.
***
De momento, aguarda-se a batalha jurídica pela punição
dos crimes, se forem suficientemente provados, e consequente indemnização pelos
danos causados ao Estado e a outras entidades que se julguem efetivamente lesadas
ou pela absolvição dos arguidos. Espera-se que se faça justiça e que nada fique
em águas de bacalhau ou, como agora passa a dizer-se, o complexo caso
espetacular não venha a resumir-se num “erro
de perceção mútuo”.
Se o sistema judiciário está vitorioso por ter
encurralado altas e poderosas figuras, veremos se a Justiça também triunfará
pelo bem comum e pela dignidade das pessoas e das instituições.
Ressalve-se que, apesar de os 28 arguidos, em especial
Sócrates, já estarem condenados e “recondenados” pela opinião pública, são
presumivelmente inocentes até eventual decisão condenatória transitada em
julgado. Por isso, aguardemos com estoica paciência democrática.
2017.10.11 – Louro de Carvalho
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