domingo, 29 de outubro de 2017

O imbróglio dramático da questão catalã

Em clima de tensão político-social, o Parlamento Catalão declarou a independência da Catalunha no passado dia 27 de outubro, na sequência do referendo considerado ilegal por Madrid em que participaram mais de 40% dos eleitores e cujo “sim” obteve 90% dos votos expressos, apesar das terríficas constrições criadas pelas polícias nacionais, às ordens do Governo de Sua Majestade. A decisão foi tomada por instâncias do Presidente do Governo Regional, que prometera, após o referendo, solicitar ao órgão legislativo a declaração da independência da região para assumir o estatuto de Estado Soberano sob a forma de República.
Tal decisão ocorreu agora, depois de várias empresas, mormente multinacionais, haverem retirado (ou terem feito saber que retirariam) do território daquela região autónoma a sua sede social, com tudo o que isso acarreta, e sob ameaça da aplicação do art.º 155.º da Constituição espanhola, que em caso de ilegalidade situacional ou de permanente perturbação da ordem constitucional, o Governo central de Madrid suprimirá a autonomia da respetiva região, destitui o governo regional e marca eleições regionais. Também, apesar de o Chefe do Governo da Catalunha ter mostrado abertura para o diálogo com Madrid através de mediação duma entidade idónea, Madrid propôs-se aceitar eventualmente o diálogo, mas sem qualquer mediação, para a qual a União Europeia (UE) se mostrou não disponível. E, quando declarações do Chefe do Governo catalão pareciam abrir para a declaração unilateral de independência, Rajoy instou-o a clarificar as suas palavras a fim de poder solicitar ao Senado a efetiva aplicação do mencionado art.º 155.º. E a UE, por seu turno, através do Presidente da Comissão e de outras entidades declarou reiteradamente que para já só dialogava com Estados-Membros, sendo que, neste caso, só reconhecia como Estado-Membro da UE a Espanha na sua totalidade.
A declaração da independência da Catalunha foi tomada sob a forma de resolução parlamentar com a presença de metade dos deputados e com base na discussão e aprovação de proposta apresentada pelo JxSí e pela CUP para se avançar no sentido de uma proclamação da República Catalã, não sem antes terem sido votadas as propostas dos partidos contra a independência, que foram reprovadas pela maioria. A votação decorreu após o abandono do plenário por parte dos deputados do Ciudadanos (25), do PSC (16) e do PP (11), que deixaram bandeiras espanholas nos lugares que ocupavam. E a resolução foi aprovada pelos deputados presentes no plenário do Parlamento, por 70 votos a favor, dez contra (deputados do Catalunya Sí Que es Pot, que inclui o Podemos) e dois em branco (servem para impedir que os deputados possam ser acusados de rebelião).
Em reação a este ato declarativo independentista unilateral, Mariano Rajoy, que viu o Senado aprovar a sua pretensão de aplicar à região catalã o art.º 155.º, pede “tranquilidade a todos os espanhóis, pois o Estado de direito restaurará a legalidade na Catalunha”, enquanto Oriol Junqueras fala de “liberdade para construir um novo país”.
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Porém, Rajoy e o Senado não travaram a festa independentista. É certo que o Primeiro-Ministro espanhol anunciou a demissão do presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, e de todo o governo catalão, assim como a dissolução do Parlamento da Catalunha e a convocação de eleições autonómicas para 21 de dezembro. Não obstante, o Governo catalão, que estava reunido para começar a aplicar a resolução de independência, não reagiu e deixou a Generalitat sem fazer comentários. Também não houve reação do Juntos pelo Sí ou dos partidos que compõem esta aliança. Mas os independentistas radicais da Candidatura de Unidade Popular (CUP) tomaram posição clara, escrevendo no Twitter:
Não nos submeteremos nem ao autoritarismo de Rajoy nem ao 155.º”.
A deputada Mireia Boya sugeriu uma “paella massiva insubmissa” no dia 21 de dezembro. E os membros da associação independentista Assembleia Nacional Catalã também:
Perguntam-nos sobre as medidas de Rajoy, mas na ANC temos por hábito não comentar a política de governos estrangeiros”.
Entretanto, Rajoy diz uma coisa e seu contrário, pois, destituiu o Governo regional e o Parlamento e marcou eleições. Todavia, após o Conselho de Ministros extraordinário, disse que “não se trata de suspender o autogoverno, trata-se de o devolver à normalidade o mais rapidamente possível”, pois quer eleições “livres, limpas e legais para restaurar a democracia”, já que o objetivo do artigo 155.º era convocar autonómicas no espaço máximo de 6 meses, defendendo primeiro o regresso à legalidade democrática. Depois, esteve em contacto com os líderes nacionais do PSOE, Pedro Sánchez, e do Ciudadanos, Albert Rivera, para lhes comunicar que iria convocar as eleições. Além da dissolução do Parlamento e da demissão de todo o governo e dos “embaixadores” da Catalunha no estrangeiro, ocorreu a destituição do diretor-geral dos Mossos d’Esquadra (polícia catalã), Pere Soler (141 cargos). A vice-primeira-ministra, Soraya Sáenz de Santamaría, reuniu-se, dia 28, com os secretários de Estado para estudar como vão os diferentes departamentos ministeriais assumir as pastas do governo catalão
Enquanto Miquel Iceta, no Twitter, referia este como o “dia mais triste para a Catalunha” e 21 de dezembro como “um raio de luz”, a líder da oposição na Catalunha, Inés Arrimadas, do Ciudadanos, disse que, nesse dia “começará uma nova etapa para todos os catalães”.
Ora, tudo isto não parou, em Barcelona, na praça de Sant Jaume, a festa de milhares de pessoas que celebravam a declaração da independência e exigiam a retirada da bandeira espanhola da Generalitat, enquanto noutro ponto de Barcelona, centenas de manifestantes defendiam a unidade de Espanha, envolvendo-se em confrontos com os Mossos depois de partirem os vidros da entrada da rádio pública catalã. Enquanto isso, serão alvos da procuradoria-geral os líderes do Parlamento catalão, desde logo a presidente Carme Forcadell, assim como Puigdemont e os membros do governo, entretanto demitidos. A acusação de crimes de rebelião e de sedição deverá ser entregue no dia. Tais crimes, se provados, implicam uma pena de até 30 anos de prisão. Segundo a imprensa espanhola, a gravidade do crime torna complicado que, uma vez ouvidos pelos juízes, possam sair em liberdade. A este respeito, disse Puigdemont diante dos autarcas independentistas que estiveram no Parlamento no dia 27:
Cidadãos da Catalunha, vêm horas em que a todos corresponderá manter o pulso deste país, de mantê-lo no terreno da paz, do civismo e da dignidade”.
A nível internacional, ninguém reconheceu a declaração de independência, incluindo o governo português e o Presidente Marcelo. Entretanto, hoje 300 mil pessoas desfilaram em Barcelona, capital catalã, pela unidade da Espanha. Veremos o que darão as eleições de 21 de dezembro.
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Segundo os dados da primeira sondagem, publicada no diário El Mundo, os partidos separatistas que suportavam o executivo regional terão 65 dos 135 deputados, menos 3 que os necessários para governar, ou seja, o independentistas não conseguirão a maioria necessária para formar Governo na Catalunha nas próximas eleições. Segundo este estudo de opinião, os partidos separatistas terão 65 deputados (42,5%) num total de 135 deputados. O partido mais votado será a ERC (Esquerda Republicana da Catalunha), com 26,4% das intenções de voto; o PDeCAT (Partido Democrático Europeu Catalão), de direita, de Carles Puigdemont, teria 9,8%; e a CUP (Candidatura de Unidade Popular), de extrema-esquerda, teria 6,3%. E os constitucionalistas (não independentistas) somarão 43,4%, sendo o mais votado o Ciudadanos (de centro), com 19,6%, seguido pelo PSC (Partido dos Socialistas da Catalunha), socialistas agregados ao PSOE, com 15,1% e o PP (Partido Popular), de direita, com 8,7%. O CSQP (Catalunha Sim Se Pode), de extrema-esquerda, próxima do Podemos, obteria 11 % dos votos. Atualmente, o partido de Puidgemont é o que tem mais deputados no parlamento catalão.
A empresa responsável pelo estudo realizou 1.000 entrevistas entre 23 e 26 de outubro, antes de o parlamento regional ter aprovado a declaração de independência e de o Governo central aplicar as medidas para repor a legalidade constitucional na Catalunha.
Em resposta à letra a Rajoy no dia 28, o presidente do governo regional destituído, Puigdemont, disse, numa declaração oficial gravada previamente e transmitida em direto pelas televisões não aceitar o seu afastamento e pediu aos catalães para fazerem uma “oposição democrática”,
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Marta Santos Silva, no Eco on line, equaciona “quatro mitos sobre a independência catalã”, como se discrimina a seguir, juntamente com as portas que se abrirão (ou fecharão) caso venha a acontecer efetivamente a independência da Catalunha.
- Dizem que pode a Catalunha ser membro da UE. Mas a UE não se tem mostrado disponível, pois tem dito com firme clareza que o interlocutor principal para já é a Espanha e, embora os tratados sejam omissos quanto à matéria de novas independências, a Catalunha independente ficaria de fora da UE, pelo menos até terminar um processo de candidatura e ajustamento das suas finanças públicas. Mas nem toda a gente pensa assim. Oriel Junqueras, um dos demitidos a 27 por Rajoy e ex-vice-presidente do Governo da Catalunha, escreveu no Twitter que “a Catalunha é uma economia competitiva e aberta ao mundo e essa situação não vai mudar”. E, no documento “A situação da economia num Estado catalão, citado pelo El País, acrescentava: 
Os interesses económicos e políticos da União tornam claro que haverá plena vontade para que a Catalunha permaneça membro da União Europeia e da Zona Euro”.
Esta declaração é destituída de credibilidade, pois nunca sucedeu que uma região dum Estado-membro da UE tenha obtido a independência, mas Romano Prodi, em 2004, que então presidia a Comissão Europeia, afirmou:  
Se um território deixa de ser parte de um Estado ao converter-se num Estado independente, os tratados não podem continuar a aplicar-se a esse território, e a nova região converte-se num país terceiro”. 
O mesmo foi dito, por exemplo, sobre a Escócia aquando do referendo pela independência do Reino Unido. Apesar de tudo, é sempre possível que venha algum reconhecimento à Catalunha. As regras não estão escritas. Um deputado finlandês, Mikko Kärnä, já anunciou no Twitter que vai apresentar na semana que vem uma moção para reconhecer já a independência da Catalunha.
- Dizem que a maioria dos catalães quer a independência. Porém, os partidos nacionalistas e independentistas não ganham votos desde de 1999, mantendo-se sempre mais ou menos no mesmo percentil aquém dos 50%. E, se atendermos à abstenção, que, no caso de a maioria dos eleitores querer a independência, deveria diminuir até perto do grau zero, não se pode afiançar que a maioria do povo catalão queira a independência. Por outro lado, a repressão policial no referendo torna difícil aferir da fiabilidade do “sim”. Tanto se pode inferir que a repressão acicatou o “sim” como induziu a abstenção da maioria. O analista Kiko Llaneras explica porque se fala cada vez mais da independência quando não cresce o apoio aos partidos que a defendem:
“Não é tanto que os catalães tenham mudado o voto, mas sim que a sua opinião sobre o tema e a posição do partido se movimentou”. 
Com efeito, “em 2006, menos de 20% dos eleitores da CiU queriam a independência”, ao passo que “agora são 75%”. Assim, é difícil decidir com base nos resultados eleitorais e referendários se uma maioria dos catalães quer ser independente de Espanha.
- Supõe-se que a economia da Catalunha é do tamanho da dinamarquesa. Na verdade, o independentista catalão Artur Mas, ex-presidente do Governo regional, confessou em Harvard que imaginava “a Catalunha como a Dinamarca do Mediterrâneo”, supondo que a região tinha capacidade “para ter um desemprego com nível muito baixo, uma economia muito aberta, um Estado social robusto e uma democracia de qualidade, até porque a sua produção de riqueza era semelhante”. E o documento produzido por Oriel, acima referido, veicula a ideia parecida em termos de riqueza produzida: “O PIB da Catalunha assemelha-se ao da Finlândia, da Dinamarca e da Irlanda”. Todavia, como sublinhou o El Paíso Eurostat via em 2015 o PIB catalão nos 204 mil milhões de euros – mais perto dos 179 mil milhões de Portugal no mesmo ano do que do PIB da Dinamarca de 271 mil milhões. E o PIB per capita, que para Vasqueras “supera a média europeia por 14,5%”, segundo o Eurostat supera o da UE por 7%.
- Novas eleições vão ajudar a resolver o impasse. Mas, como dados da sondagem mencionada mostram, tal solução tem poucas possibilidades de acontecer. Dificilmente os independentistas ganharão as eleições e os uniatas terão dificuldade em conseguir um governo que bata o pé a Madrid e que faça progredir a economia repondo a situação anterior ao referendo. O presidente do Ciudadanos, um dos partidos que apoiou o PP para lhe permitir agir desta forma na Catalunha, explicou à CNBC que era impossível progredir com o Governo atual, dizendo:
Para mim, a questão mais importante é como mudar o governo da Catalunha. O presidente é contra a lei. […]. Precisamos de um presidente que decida voltar à democracia, voltar à Constituição”.
E várias sondagens mostram que tudo vai ficar igual na Catalunha em termos de distribuição dos partidos no Parlamento. Kiko Llaneras não se mostra surpreendido, pois:
a percentagem de voto nacionalista (e portanto independentista) não se move há 18 anos: nas últimas seis eleições esteve sempre entre os 47% e os 49% dos votos”.
Apesar dos altos e baixos dos governos, que foram de diferentes partidos de tendência nacionalista, os números mantiveram-se.
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É pena que a aplicação do art.º 155.º (ora utilizado pela 1.ª vez) tenha sido a única forma de olhar a questão catalã, tendo sido recusada a mediação do conflito político, quer por Madrid quer pela UE. Talvez o diálogo político induzisse uma revisão da Constituição, à luz duma releitura das realidades (releitura que as elites económicas não podem impedir nem condicionar) fazendo evoluir a Espanha para um Estado de Estados (sem a pretensão hegemónica e imperial de Castela) e induzir a UE a organizar-se como Confederação de Estados Federados (pelo menos alguns, podendo outros continuar unitários). De resto, a UE, que deveria garantir a estabilidade dentro dos Estados-Membros, pode estar a aninhar a génese da fragmentação europeia gerando a proliferação de novos Estados pela via da afirmação pseudonacionalista. Se, no Reino Unido, França, Alemanha, Itália, …, a moda pega, o movimento será imparável. Madrid e Barcelona podem constituir um precedente de mau exemplo. E não havia necessidade de beliscar a causa da paz e do progresso!

2017.10.29 – Louro de Carvalho

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