quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Expectativas em torno do Sínodo para a Pan-Amazónia

No final da Missa de canonização de 35 novos santos, no domingo, dia 15 de outubro, e antes da oração do Angelus, o Papa, dirigindo-se aos fiéis e peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, no Vaticano, anunciou a convocação de uma Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a região Pan-amazónica, a celebrar em Roma, em outubro de 2019.
Esta convocação vem ao encontro do “desejo de algumas Conferências Episcopais da América Latina” e da “voz de muitos pastores e fiéis de várias partes do mundo”. Para o Santo Padre, “o objetivo principal desta convocação é identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspetivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazónica, pulmão de capital importância para nosso planeta”. Assim, o Sínodo centrar-se-á na problemática do desmatamento da floresta amazónica em consequência da atividade desenfreada e, às vezes ilegal, de exploração madeireira, atividade industrial que está a colocar em grave perigo o equilíbrio ecológico e ambiental da floresta amazónica, uma das principais fontes de biodiversidade do planeta. Como consequência dessa exploração dos seus recursos, os povos indígenas que habitam a região, em muitos casos tribos isoladas sem contacto com o mundo urbano, vêm sofrendo inúmeros abusos, inclusive assassinatos que ficam impunes, até situá-los às margens do desaparecimento. A situação desses povos, a sua evangelização e a defesa dos seus direitos humanos será também um dos temas principais tratados da Assembleia Sinodal.
Francisco invocou, para o êxito do evento, a intercessão dos santos proclamados neste domingo:
Que os novos Santos intercedam por este evento eclesial para que, no respeito da beleza da Criação, todos os povos da terra louvem a Deus, Senhor do universo, e por Ele iluminados, percorram caminhos de justiça e de paz”.
***
Segundo a Rádio Vaticano, as reações não se fizeram esperar. Assim, Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Brasília, membro (nomeado pelo Papa) da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos e também Presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), defende desde há tempos a ideia de ampliar os encontros dos bispos amazónicos. São 9 os países que compõem a Pan-Amazónia e em que se regista a notória presença da Igreja: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Guiana Francesa,  Suriname e Brasil. Segundo o cardeal, um Sínodo temático específico para a região, como sugerido pelo Papa, servirá de grande apoio para a presença da Igreja e a evangelização daquela área. 
Também Dom Roque Paloschi, Presidente do Conselho Indigenista Missionário, reagiu à convocação do Sínodo dizendo que nos vai ensinar a ser mais acolhedores, especificando:
Sínodo Pan-amazónico vai alargar o coração e o horizonte da Igreja naquela região. Lá, onde as Sementes do Verbo foram plantadas pelos primeiros missionários e abraçadas pelos povos nativos, a Igreja cometeu erros e pediu muitas vezes perdão. O Sínodo vai ser uma oportunidade ímpar para pensarmos em como ser mais acolhedores, mais servidores e mais próximos dos povos indígenas, frequentemente desprezados e desacreditados”.
Recorde-se que a primeira visita do Papa à Amazónia está prevista para breve, pois, na sua viagem ao Peru, em 19 de janeiro, irá à cidade de Puerto Maldonado, capital do departamento Madre de Dios e da província de Tambopata.  Ali, Francisco reunir-se-á com indígenas da selva peruana e de territórios vizinhos, Bolívia e Brasil. Aliás, o Papa tem manifestado o desejo de se reunir com os nove Bispos daquelas Igrejas da Pan-Amazónia.
Cardeal Cláudio Hummes, ex-prefeito da Congregação para o Clero e arcebispo emérito de São Paulo tem relevado, entre outras coisas, os sonhos e projetos da Amazónia, no sentido de construir outro projeto de desenvolvimento que não seja o que busca o lucro a todo custo em detrimento dos povos amazónicos, mas um desenvolvimento sustentável que continue a manter a floresta de pé, respeitador do ambiente e dos seus habitantes. Diz ele que a Amazónia nos dá enorme oportunidade de ter sonhos, porque ainda sempre há algo que aponta para um futuro, pois, “a Amazónia está em construção no sentido exato da palavra”. E ressalta que nós também como Igreja, como cristãos e como cidadãos devemos realmente ter sonhos.
Sobre a convocação do Sínodo dá os “parabéns à Igreja e a todo o povo da Amazónia”. E, confessando tratar-se de um momento de surpresa, revelou que, ao chegar recentemente do Brasil, Francisco lhe confidenciou que faria o anúncio na manhã do dia 15 de outubro, na Praça São Pedro. Disse o cardeal:
Realmente é uma grande surpresa, embora também soubesse que o Papa tinha este desejo muito forte e que ele estava estudando quando ele poderia, em que ano e em que data poderia ser”.
De facto, segundo o purpurado, foi uma surpresa muito grande e um ato muito bonito porque foi anunciado na Praça, depois da missa em que foram canonizados 35 mártires, entre os quais os protomártires do Brasil. Depois, disse sobre o valor do Sínodo e sobre o facto de ser em Roma:
Poder estar aqui na Praça neste momento é de uma alegria muito grande para mim. Agradeço primeiro de tudo a Deus e depois quero parabenizar muito todos os bispos da Pan-Amazónia, porque eles também fizeram realmente uma força muito grande. Pediram também ao Papa, rezaram por isso, escreveram cartas para ele, para podermos chegar agora a esta decisão deste Sínodo que será, portanto, de importância universal, porque os Sínodos sempre acabam tendo uma repercussão universal. Será aqui em Roma, para que o Papa possa estar todos os dias connosco neste Sínodo e possa assim repercutir no mundo inteiro a importância da missão na Igreja, dos missionários de tantos séculos, mas, sobretudo, os atuais e todo o povo da Amazónia, nós da Igreja no Brasil e dos demais países da Pan-Amazónia”.
***
A este respeito, o blogue da “Fraternitas” transcreve uma entrevista, publicada por “Caminho pra Casa”, com o padre espanhol Luis Miguel Modino, de 46 anos, do clero diocesano de Madrid, que deixou o país para o desafio de missionário Fidei Donum no Brasil no século XXI desde os seus 35 anos, sendo hoje pároco na diocese de São Gabriel da Cachoeira, uma das maiores do Brasil, com 293 mil quilómetros quadrados – o coração da Amazónia, no Estado do Amazonas, onde mais de 90 % são indígenas (23 povos indígenas e 18 línguas, tendo o município de São Gabriel da Cachoeira quatro línguas reconhecidas como oficiais: é o único).
Este sacerdote será voz mais que autorizada para falar sobre o Sínodo dos Bispos para a Pan-Amazónia, que reunirá, em 2019, bispos de todo o mundo, com especialistas e assessores e, espera-se, representantes dos povos indígenas da região. E enuncia uma condição:
Não imagino um Sínodo sem a presença dos povos indígenas. O Papa Francisco nunca ia deixar isso acontecer. Ele tem cheiro de ovelha e suas ovelhas na Amazónia são os povos indígenas.”.
Para Modino, a surpreendente convocação do Sínodo “pode mudar decisivamente a presença da Igreja na Amazónia” a partir da escuta “do grito da floresta e dos seus povos”. O Sínodo é uma “oportunidade” que a Igreja da região “não pode perder”. Alguns dos pontos da agenda do Sínodo, segundo ele, devem ser as “questões gritantes que hoje estão presentes na Igreja da Amazónia, como a celebração eucarística sem a presença de um ministro ordenado e uma maior e melhor presença nas comunidades indígenas”. Na sua visão, o Sínodo enfrenta duas questões essenciais: “a Igreja da Amazónia deve escutar o povo, sobretudo os moradores originários, as populações tradicionais” e “pôr em funcionamento a colegialidade que o Papa Francisco propõe”; e “tem que ser um Sínodo que brote do chão amazónico e que, mesmo celebrado em Roma, não respire os ares contaminados da Cúria e, sim, os ares puros das florestas que os povos indígenas trouxeram até nós”.
O Padre Modino é coordenador para o Brasil da OCSHA (Obra de Cooperação Sacerdotal para Hispanoamérica), organismo da Conferência Episcopal Espanhola. Durante 9 anos esteve na diocese de Ruy Barbosa, no interior da Bahia, antes de instalar-se em São Gabriel da Cachoeira.
Uma constante da sua prática pastoral são as itinerâncias, visitas que realiza, de barco, às comunidades da diocese, à beira dos rios Negro e Xié, que duram em geral uma semana. E também é jornalista, correspondente no Brasil de Religión Digital, o mais relevante site católico progressista em língua espanhola do mundo, com mais de três milhões de visitas/mês.
Sobre a união do sacerdócio com o jornalismo, confessa:
Como Igreja somos chamados a dar a conhecer aquilo que a gente do povo vive. Uma vez escutei uma afirmação que me marcou: aquilo que não é conhecido não existe. Como comunicador, penso que a minha missão é mostrar ao mundo a realidade dos povos e das pessoas com quem convivo e da natureza maravilhosa que nos cerca. Escrever e fotografar é um jeito de evangelizar, de ajudar as pessoas a refletir sobre situações muitas vezes desconhecidas.”.
***
Da entrevista retêm-se as linhas fundamentais, além do que está dito acima.
Recebeu a notícia da convocação do Sínodo sobre a Amazóniacomo uma grande surpresa e enorme alegria, pois pode mudar decisivamente a presença da Igreja na Amazónia”, cabendo-lhe “não deixar passar esta oportunidade que a história e o Papa” estão a oferecer.
No âmbito dos temas, entende dever ser “um Sínodo que escute o grito da floresta e seus povos”, “que brote do chão amazónico e que, mesmo celebrado em Roma, respire “os ares puros das florestas que os povos indígenas trouxeram até nós”; que aborde questões gritantes hoje presentes na Igreja da Amazónia, como a celebração eucarística sem a presença de ministro ordenado e “maior e melhor presença nas comunidades indígenas”.
Não imaginando o Sínodo sem a presença dos povos indígenas, diz:
O Papa Francisco nunca ia deixar isso acontecer. Ele tem cheiro de ovelha e as suas ovelhas na Amazónia são os povos indígenas, em quem recentemente ele reconhecia no discurso aos bispos da Colômbia, uma ‘arcana sabedora’. Espero que a Rede Eclesial Pan-Amazónica (REPAM) e as dioceses da região cuidem de garantir essa presença.”.
Em termos da preparação do Sínodo na Amazónia, sustenta:
A Igreja da Amazónia deve escutar o povo, sobretudo os moradores originários, as populações tradicionais. Pôr em funcionamento a colegialidade que o Papa Francisco propõe.”.
Chegou ao Brasil, pela primeira vez, em 1999, acompanhando um grupo de jovens duma paróquia de Madrid, para visitar a paróquia irmã, Senhora Santana de Serrinha, Bahia, onde trabalhava como missionário um sacerdote de Madrid. Após aquela experiência, pediu para ser enviado como missionário para o Brasil, o que sucedeu a 26 setembro de 2006, chegando à diocese de Ruy Barbosa, no interior da Bahia, onde ficou mais de 9 anos.
Sobre o impacto dessa mudança radical, da Espanha para Bahia, explicita:
Foi um tempo em que descobri outro jeito de ser Igreja, diferente daquele que vivi na Espanha. Conheci uma Igreja onde a teologia do Vaticano II se faz presente numa Igreja Povo de Deus, com protagonismo laical, uma Igreja inserida na realidade, nas questões cidadãs, que luta por vida em abundância para todos, organizada em redes de comunidades, onde as decisões das Assembleias são assumidas também pelo bispo.”.
Priorizou então, no trabalho missionário, a formação dos leigos, com vista a “uma maior autonomia que faça possível uma melhor caminhada das comunidades”, pois o “bom animador de comunidade faz que ela se torne instrumento do Reino na vida do povo, visto serem os leigos os protagonistas do trabalho quotidiano das comunidades”, não conseguindo o padre estar presente no dia a dia”. E, falando daquela diocese encravada no coração da Amazónia, relata:
Moro em Cucuí, um distrito de São Gabriel, na beira do Rio Negro, bem na fronteira entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela, acompanhando comunidades indígenas espalhadas pelos rios Negro e Xié. A maioria do povo pertence às etnias baré e werekena”.
Se “navegar pelos rios ajuda a descobrir a grandiosidade da Amazónia e de uma floresta preservada excepcionalmente ao longo dos séculos, também ajuda a perceber os problemas:
Tradicionalmente, os povos indígenas da região foram mestres em preservação ambiental, o que atualmente está em perigo. A ameaça das mineradoras está a chegar. O atual prefeito de São Gabriel da Cachoeira foi eleito com base em promessas de que a chegada de mineradoras iria trazer trabalho para o povo, o que se torna uma grave preocupação, pois nada pior poderia acontecer do que isso.”.
Diante dessa realidade, é preciso estar e agir. E o Padre diz como:
Como Igreja somos desafiados a dar respostas mais firmes contra essas situações, a nos pronunciarmos e deixar claro que existem realidades que não podemos aceitar como cristãos. Muitas vezes, a gente sente que existe certo medo na Igreja local a adotar uma postura firme, a falar alto e claro. A Igreja deve ser voz de um povo tradicionalmente oprimido e dominado por pequenos grupos de poder. Preocupar-se mais com o que acontece fora da sacristia.”.
Sobre a vantagem das itinerâncias, diz que respondem ao desafio de presença nas comunidades do interior, visitando esses povos, pois:
Uma das queixas é a pouca presença dos padres no meio deles. Se aparece pouco e quando a gente vai é com muita pressa, o que é totalmente contrário ao jeito de entender a vida desses povos indígenas. O povo empenha-se em acolher e muitas vezes não valorizamos esse esforço, conformamo-nos com sacramentos celebrados às carreiras, enquanto o povo procura conversa, ser escutado, partilhar a vida.”.
Outro grande desafio é a formação. E exemplifica com a visita de 12 dias nas comunidades do Rio Xié e um encontro de formação de catequistas, o que não acontecia há 5 anos.
Denuncia “o espírito capitalista” que “tem invadido” a Igreja:
Parece que só interessam os números, e não as pessoas. Gastamos muito em estruturas e pouco naquilo que muda a vida das pessoas. No nosso caso aqui: parece que é muito mais grave deixar o povo da catedral, um domingo, sem missa do que deixar as comunidades do interior abandonadas durante dois anos.”.
No tocante à sociedade brasileira, onde cada vez mais se privilegiam os grupos de poder, denuncia a desigualdade e a passividade do povo ante as mentiras do poder e as injustiças:
A desigualdade é cada vez maior e estamos voltando a situações que provocam angústia nos mais pobres, que aos poucos estão tendo que se preocupar em como dar um prato de comida aos filhos no dia seguinte. Escuto o governo falar que a crise está sendo superada e me pergunto: eles pensam que ainda tem gente que acredita em suas mentiras? Diante desta situação questiona-me a passividade do povo, que não reage diante de tamanhas injustiças que sofre cada dia. Tem-se instaurado um sentimento de ‘não tem outro jeito’ cada vez mais preocupante.”.
Porém reconhece que a Igreja brasileira tem tido uma posição mais firme nos últimos tempos:
Tenho-me surpreendido muito positivamente com a firmeza do episcopado brasileiro diante desta situação. Os pronunciamentos têm sido firmes e deixam claro de que lado a Igreja está, sobretudo a Presidência da CNBB, o que tem incomodado, e muito, o governo. Posso dizer que a Igreja do Brasil tem voltado aos tempos pós-conciliares, com bispos profetas, que despertam gratas recordações em muitos de nós. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que no Brasil também há grupos de católicos totalmente contrários a esse espírito manifestado pelos bispos.”.
Da especificidade sinodal das comunidades eclesiais de base, ao jeito deste Papa, refere:
Acho que esse jeito, em que se une fé e vida, está tomando corpo de novo no Brasil, segmentos expressivos do episcopado vão reconhecendo que tantas críticas contra esse modo de viver o cristianismo eram injustas”.
Do seu fotojornalismo, que mostra um modo de viver incómodo dentro e fora da Igreja, diz:
Ajuda a mostrar como os povos indígenas têm preservado e cuidado da Casa Comum. É uma forma de assumir as propostas e o espírito da Laudato Si' e de promover a conversão ecológica. Na era da imagem essas fotos ajudam a pessoas a encontrarem-se com o Deus Criador e a agradecer porque existem pessoas, os povos indígenas, que pensam no cuidado como atitude vital..
***
Na Igreja que não queira ser dos pobres e oprimidos, estão os verdadeiros inimigos de Francisco – gente que se aproveitou e aproveita da estrutura para ter vida boa, ignorando o sofrimento dos pobres e fazendo pouco caso da confiança no projeto de Deus. Venha, pois, o Sínodo!

2017.10.19 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário