domingo, 1 de outubro de 2017

Na via da ética do bem comum, a virtude da prudência, coragem e ternura

O Papa recebeu ontem, dia 30 de setembro, em audiência, na Sala Clementina, no Vaticano, cerca de 300 membros da ANCI (Associação Nacional de Municípios ou Prefeituras Italianas). 
Nas palavras que lhes dirigiu, Francisco começou por mencionar duas cidades contrastantes de que fala a Bíblia: dum lado, quase no princípio, Babel (cf Gn 11,1-9), símbolo de algo inacabado, de confusão e desorientação, divisão e impossibilidade de construir algo em comum; e do outro, no fim, a nova Jerusalém (cf Ap 21,10-27), símbolo do mundo renovado, de encontro, de cidadania. É um dom poder habitar na cidade nova, mas só podemos entrar nela na medida da nossa disponibilidade para contribuir para gerar relações de fraternidade e comunhão. Isto, na perspetiva papal, quer dizer que uma sociedade humana só pode reger-se quando se apoia numa verdadeira solidariedade, pois sítio onde cresçam invejas, ambições desenfreadas e espírito de adversidade, torna-se causa de condenação à violência do caos.
Julgando interessante que a Bíblia recorra à imagem da cidade renovada contraposta à cidade corrupta para a formação do homem segundo o querer de Deus, o Pontífice ousou falar àqueles responsáveis pelas diversas autarquias da única cidade que representa todas aquelas que são confiadas às suas responsabilidades:
“É uma cidade que não admite sentidos únicos de um individualismo exasperado, que dissocia o interesse privado do interesse público. E não suporta os becos sem saída da corrupção onde se aninham as pragas da desagregação. Não conhece os muros da privatização dos espaços públicos, onde o ‘nós’ se reduz a slogans, a artifícios retóricos que mascaram o interesse de poucos.”.
A construção dessa cidade, que não pode constituir uma utopia, exige de cada um dos seus responsáveis, não um elã presumido em direção a quem está no alto, mas o empenho humilde e quotidiano em direção à base. E especifica por contraste:
“Não se trata de erguer ulteriormente a torre, mas de alargar as praças, de criar espaço, de dar a cada um a possibilidade de se realizar a si próprio e à própria família e de abrir-se à comunhão com os outros”.
Mas, além da construção da cidade dos homens, é necessária a disponibilidade para a abraçar e servir. Para tanto, postula-se “um coração bom e grande” que saiba acalentar “a paixão do bem comum”. E sob a égide deste olhar o bem comum faz-se crescer “na pessoa a dignidade de ser cidadão”, se promove a justiça social e se gera trabalho, serviço, oportunidades. Criam-se, nesta ótica, inumeráveis iniciativas de animação e cuidado do território e educa-se para a coresponsabilidade.
Francisco, frisando que “a cidade é um organismo vivo que precisa de oxigénio em quantidade suficiente” de tal modo que, se falta isto, ou seja, quando os serviços não são de qualidade, criam-se bolsas de pobreza e marginalização e a cidade avança a dupla velocidade: uns que têm tudo garantido; e outros (famílias, pobres, desempregados, migrantes) que não têm em quem contar.
E, incitando à recusa desse modelo de cidade a duas velocidades antagónicas e convidando a frequentar “as periferias urbanas, sociais, existenciais”, visto que o ponto de vista dos últimos da sociedade “ajuda a compreender quais são as verdadeiras necessidades das pessoas e das comunidades e a encontrar soluções, o Pontífice explica-se:
“Para mover-se nesta perspetiva, temos necessidade de uma política e de uma economia centrada de novo na ética: uma ética da responsabilidade, das relações, da comunidade e do ambiente. Precisamos também de um ‘nós’ autêntico, de formas de cidadania sólidas e duradouras. Precisamos de uma política de acolhimento e de integração, que não deixa nas margens quem chega ao nosso território, mas se esforça por fazer dar frutos os recursos de que cada um é portador.”.
E o Papa lançou o olhar sobre uma realidade específica dos tempos atuais:
Disse aos Presidentes de Câmara (ou prefeitos) que compreende as dificuldades que muitos dos seus cidadãos vivem com a chegada maciça de migrantes e refugiados, facto que pensa dever-se ao inato temor do “estrangeiro”, agravado pela crise económica, pela inadequação de muitas medidas adotadas num clima de urgência. Porém, sustentou que tais dificuldades “podem ser ultrapassadas mediante a criação de espaços de encontro pessoal e de conhecimento mútuo”, mediante iniciativas de promoção da cultura do encontro, por trocas culturais e artísticas, e pelo conhecimento dos lugares de origem e comunidades dos recém-chegados.
Francisco mostrou a sua satisfação por alguns dos Presidentes de Câmara (ou prefeitos) presentes serem dos que promovem boas práticas de acolhimento e integração, práticas que merecem ser largamente difundidas, e exprimiu o desejo de que haja muitos seguidores. Percorrendo estas vias de solidariedade e inclusão, a política pode desempenhar a sua tarefa fundamental, que é a de ajudar a olhar para o futuro com esperança, aquela esperança que faz emergir as melhores energias de cada um, especialmente dos jovens. E desejou que os autarcas sejam sempre generosos e desinteressados no serviço do bem comum. Assim, a cidade tornar-se-á numa verdadeira antecipação e reflexo da Jerusalém celeste. 
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Ora, das palavras do denso discurso do Sumo Pontífice, infere-se, em síntese, que quem governa deve ter a virtude da prudência, da coragem e da ternura – a virtude de prudência para governar, a virtude da coragem para avançar e a virtude da ternura para se aproximar pelos mais fracos.
Para o Papa, é necessária “uma política e uma nova economia centrada na ética” e os líderes das várias cidades devem sair dos seus gabinetes e, em alternativa às burocracias e às solenidades, “visitar os subúrbios”, urbanos, sociais e existenciais, porque o ponto de vista dos descartados ajuda a conhecer melhor as “necessidades reais” das populações, afasta “soluções aparentes” ou de fachada e permite a construção de uma visão holística da realidade para se poder intervir em situações concretas com a eficácia e a qualidade que elas requerem.
Na audiência aos autarcas, Francisco desafiou à construção de “comunidades onde cada um se sinta reconhecido como pessoa e cidadão, titular de direitos e deveres”. Com efeito, “o que contribui para o bem de todos, concorre também para o bem do indivíduo”.
Na referência a políticas “de acolhimento e de integração” que “não deixe à margem” os que chegam às várias cidades, o Papa diz compreender o “desconforto” de muitos cidadãos pela chegada maciça de muitos migrantes e refugiados, mas que é necessário promover “espaços de encontro pessoais e conhecimento mútuo” e gerar uma postura coletiva de atenção a quem vive na base, desprotegido, sem direitos, sem oportunidades e sem ver a sua dignidade reconhecida e respeitada. É a política e a economia centradas na ética e não no dinheiro, no serviço e não nas honrarias, na responsabilidade e não na negligência e desdém, nas relações, na comunidade e no ambiente e não no isolamento egoísta, no individualismo e na destruição ecológica e ecossocial.
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Provavelmente, este foi o condimento que faltou à campanha eleitoral que se desenvolveu nos últimos dias com vista às eleições para os órgãos do poder local que hoje, dia 1 de outubro, perpassam o país. E, talvez constituísse um suplemento para a reflexão a que legalmente se dedicou o dia de ontem, 30 de setembro, com vista a um ato eleitoral consciente, ponderado, responsável e livre, que, longe de ser um pretexto para exigir um rol de promessas, constitua o cumprimento dum dever de cidadania e o exercício de um direito político,
Mais do que que aproveitar o dia para um “bate porta a porta” adicional na discrição imposta pelo dia de reflexão decorrente da lei, os candidatos deveriam ponderar a relevância e o risco inerentes às funções que estão na iminência de lhes serem confiadas pelo sufrágio popular.
O povo precisa, não de quem o explore ou dele se aproveite, mas de quem o represente lealmente, o sirva com dedicação e o lidere com presteza e competência. E o povo saberá reconhecer esse trabalho dedicado e aceitará pagar de bom grado.
É preciso arredar do espectro político o cenário denunciado no livro bíblico de Ezequiel sobre os pastores:
“Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar as ovelhas? Vós, porém bebestes-lhes o leite, vestistes-vos com a sua lã, matastes as reses mais gordas e não apascentastes as ovelhas. Não tratastes as fracas, não cuidastes da que estava doente, não curastes a que estava ferida, não reconduzistes a desgarrada e não buscastes a perdida; mas dominais sobre todas elas com rigor e dureza.” (Ez 34,2-4).
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Na visita a Cesena da região da Emília-România, neste domingo, Francisco, com o mesmo à vontade com que falou aos Bispos, sacerdotes, seminaristas, religiosos e religiosas sobre a urgência e a força da evangelização rumo à fraternidade, falou de política no seu encontro com a população na Praça do Povo.
Considerando o significado da palavra “Praça”, apontou-a como ponto de encontro dos cidadãos e espaço público “cheio de significado para a vida civil e social”, em cujo Palácio Comunal “se tomam decisões relevantes para a cidade e se tomam iniciativas económicas e sociais”. Como lugar emblemático que é, representa o espaço onde as aspirações de cada um se confrontam com as exigências e sonhos de toda a população e os grupos particulares tomam consciência de que os seus desígnios se hão de harmonizar com os da coletividade. Enfim, disse, “nesta praça se desenha e promove o bem comum, com empenho, constância e inteligência”.
A centralidade da praça ensina a essencialidade do trabalho de todos (em conjunto) para o bem comum, sendo esta a base da boa liderança da coletividade, “que a torna bela, sã e acolhedora”, faz dela o “cruzamento de iniciativas e motor de um desenvolvimento sustentável e integral”, donde se reclama a relevância da vida da comunidade, da boa política – não da que “prossegue as ambições individuais, a prepotência de facções ou os centros de interesses”. E especifica-a:  
Uma política não servil nem dominadora, não poderosa ou imprudente, mas responsável e, por conseguinte, corajosa e prudente ao mesmo tempo; que faça crescer o envolvimento das pessoas, a sua progressiva inclusão e participação; que não deixe à margem algumas categorias de pessoas; que não destrua e inquine os recursos naturais, que não são um poço sem fundo, mas um tesouro que nos foi dado por Deus para o fruirmos com respeito e inteligência; que saiba harmonizar as legitimas aspirações de cada um e dos grupos, tendo o leme bem direcionado para o interesse de toda a população”.
É por ser este o rosto autêntico e a razão de ser da política – serviço inestimável ao bem de toda a coletividade – que a doutrina social da Igreja a considera nobre forma de caridade. Por isso, jovens e menos jovens – quer o Pontífice – “devem preparar-se adequadamente e empenhar-se pessoalmente neste âmbito, assumindo desde logo a perspetiva do bem comum e rejeitando toda a forma, ainda que mínima, de corrupção”. E justifica, apontando o dedo:
A corrupção é o caruncho da vocação política. A corrupção não deixa crescer a civilização.”.
Depois, indica os riscos por que passa o bom político:
E o bom político também tem a própria cruz quando pretende ser bom, pois deve deixar tantas vezes as suas ideias pessoais para tomar as iniciativas dos outros e harmonizá-las, acomodá-las para que seja o próprio bem comum a ser posto à frente de tudo. Neste sentido, o bom político acaba sempre por ser um “mártir’ ao serviço, porque deixa as próprias ideias, mas não as abandona, poe-mas à discussão com todos para gravitar em torno do bem comum, o que é muito belo.”.
Depois, considera “a nobreza do agir político em nome e em prol do povo, que se reconhece numa história e em valores compartilhados e pede tranquilidade de vida e desenvolvimento harmónico”. E lança o repto a exigir dos protagonistas da vida pública coerência de empenho, preparação, retidão moral, capacidade de iniciativa, longanimidade, paciência e força de ânimo em enfrentar os desafios atuais, sem, contudo, pretender uma impossível perfeição. E, quando o político erra, que tenha a grandeza de ânimo de dizer que o errou, pedindo desculpa e convidando a olhar em frente.
Concorda que mão há uma varinha mágica na político, pelo que os eventos humanos e históricos e a complexidade dos problemas não permitem resolver tudo e depressa. Por isso, é preciso um são realismo na classe política que leve à ação de pessoa com as pessoas em vez da mera observação e crítica da obra dos outros. E este é um defeito quando a as críticas não são construtivas. E, se um político erra, há muitas formas de se emendar o erro e muitos meios para a denúncia do erro e a sua emenda.  Porém, tudo dever ser feito de forma construtiva. E sempre haverá forma de assumir a responsabilidade que a cada um cabe.
Assume, além disso, a política como forma de convivência sadia e lamenta a sua menoridade atual. Como efeito, parecendo que a política, nestes anos, se encolhe “face à agressividade e à perversidade de outros poderes como o financeiro e o mediático”, verifica-se a necessidade de:
Relançar os direitos da boa política, a sua independência e a sua idoneidade específica para servir o bem público, a agir em ordem a diminuir as desigualdades, a promover com medidas concretas o bem das famílias, para estabelecer um sólido quadro de diretos e deveres – equilibrar os dois – e torná-los efetivos para todos”. 
Com efeito, assegura o Papa:
O povo, que se reconhece num ethos e numa cultura própria, espera da boa política a defesa e o desenvolvimento harmónico deste património e das suas melhores potencialidades”.
E terminou o discurso com a prece ao Senhor para que “suscite bons políticos, que tenham realmente no coração a sociedade, o povo e o bem dos pobres” – confiando ao “Deus de justiça e de paz” toda “a vida social e civil” da cidade.
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Tanto o discurso no Vaticano, a 30 de setembro, como em Cesena, hoje, aponta a nobreza da política, o bem político como seu desígnio, a inclusão de todos, a atenção aos mais desprotegidos, assim como escalpeliza os erros como a sobranceria, o individualismo, a exclusão, a corrupção, a criação de desigualdades, aproveitamento pessoal, a submissão ao poder financeiro e mediático. E o discurso em Cesena fala do martírio por que passa quem queira ser bom político.
Discursos proferidos em Itália, que bem poderiam ser aqui e agora produzidos em Portugal!

2017.10.01 – Louro de Carvalho

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