sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Os mandamentos de que dependem toda a Lei e os Profetas

A perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 22,34-40; replicada em Mc 12,28-34 e Lc 10,25-28) assumida para 3.ª Leitura da missa do XXX domingo do Tempo Comum no Ano A versa o duplo mandamento do amor, que é a origem, o estilo e a meta de toda a missão da Igreja e dos cristãos no mundo que nos cerca e com que nos entrosamos. O anúncio audaz deste mandamento – promulgado pela excelência da vontade divina no Antigo Testamento, integrante do shema israelita lembrado e rezado todos os dias e consumado por Cristo no dinamismo neotestamentário (cf Mt 5,17-18) que Ele inaugurou – convoca a uma vida inteira de justiça na liberdade e na fraternidade. A sua recordação e proclamação na liturgia dominical de encerramento do mês missionário (outubro) é a declaração da pertinência da realização do mandamento do Senhor: amar a Deus acima de tudo e amar o próximo como a nós mesmos; e configura o propósito de transformação da vida para o desempenho cabal da missão.
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No Evangelho de Mateus, a abordagem do mandamento do amor vem no contexto da terceira controvérsia de Jesus com os grupos religiosos do judaísmo. A primeira foi, com os herodianos e fariseus, sobre a questão da licitude do pagamento do tributo a César (Mt 22,15-22); a segunda foi com os saduceus (Mt 22,23-33) sobre a ressurreição dos mortos, pois este grupo rejeitava-a em absoluto, visto que admitia apenas a lei escrita, o Pentateuco, e não os pontos de doutrina elaborados mais tarde pela tradição bíblica (vg: imortalidade da alma, ressurreição dos corpos e existência de seres espirituais). Por isso, colocaram-lhe uma questão banal do tipo da borût rabínica, querendo fazê-lo entrar numa discussão semisséria. Baseados no preceito moisaico da lei do “levirato”, de que, se um homem morrer sem filhos, o irmão deve casar com a viúva para lhe dar descendência (vd Dt 25,5), perguntaram ao Mestre o que se passaria no caso de haver 7 irmãos, em que o primeiro casou e morreu sem deixar filhos, vindo o irmão a casar com a viúva – o que sucedeu ao 2.º e sucessivamente até ao 7.º (caso improvável, mas evocado para demonstração de argúcia). Tendo morrido, depois, a mulher, a questão era a de saber de qual dos 7 será a mulher na ressurreição (ou seja, na vida ultraterrena), já que todos a tiveram. Jesus, acusando-os de não compreenderem as Escrituras nem o poder de Deus (censura pungente aos ouvidos dos saduceus), retorquiu que, na ressurreição, os homens não terão mulheres nem as mulheres, maridos; serão como os anjos de Deus no céu (o que, em certa medida, sucede na fase terrestre da Igreja com a virgindade por causa do Reino dos Céus, sinal profético da futura condição escatológica). E, quanto à ressurreição dos mortos, recordou-lhes, sem mencionar palavras dos livros recentes da sabedoria ou dos profetas, o que Deus disse logo a Moisés: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob (Ex 3,6), sendo que Ele não é Deus dos mortos, mas Deus dos vivos.
Registe-se que até a teologia do judaísmo rejeitava o materialismo grosseiro dos saduceus. Ora, caso se negue a ressurreição dos corpos e a imortalidade da alma, como se entende o poder vivificante de Deus para ressuscitar Jesus. E, se Jesus não ressuscitou, para que serve o Antigo Testamento e a fé da Igreja? Para que prestará o mandamento do amor?
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Voltando à 3.ª controvérsia, esta com os fariseus, admirados com a resposta de Jesus aos saduceus, vemos um deles, um doutor da Lei, a interrogar o Mestre. O Evangelho leva-nos, de novo, a Jerusalém, nos últimos dias de Jesus antes de padecer. Os líderes judaicos já tinham feito a sua escolha e estavam com ideias definidas acerca da proposta de Jesus: uma proposta que não vem de Deus, pelo que devia ser rejeitada. Jesus tinha, pois, de ser denunciado, julgado e condenado de forma exemplar. Para concretizar esse objetivo, os responsáveis procuravam argumentos com vista à acusação formal. É neste ambiente que Mateus situa as controvérsias entre Jesus e os grupos religiosos. Tais controvérsias apresentam-se como tramas bem urdidas, destinadas a surpreender afirmações polémicas de Jesus, passíveis de serem usadas em tribunal para obter a sua condenação. E vai-se de controvérsia em controvérsia até se chegar a uma suscitada pelo próprio Cristo – a 4.ª, em que Jesus desafiou os fariseus reunidos a responderem o que pensavam do Messias (Mt 22,41-46).
Ao perguntar a Jesus qual é o maior mandamento da Lei, os fariseus procuram demonstrar que Jesus não sabe interpretar a Lei e que, portanto, não é digno de crédito. De facto, a questão do maior mandamento da Lei, uma questão não pacífica, era, no tempo de Jesus, objeto de debates intermináveis entre os fariseus e os doutores da Lei. Era uma disputa segundo o modelo da derek eres rabínica, isto é, dizia respeito a normas de boa conduta. A preocupação em atualizar a Lei, para que ela respondesse a todas as questões da vida do dia a dia, tinha levado os doutores da Lei a deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 eram proibições “sob grave” e 248 ações a praticar, que obrigavam “sob leve”. Tal “multiplicação” casuística dos preceitos legais lançava a questão das prioridades nesta floresta preceptiva: Todos os preceitos têm a mesma importância ou há algum mais importante do que os outros? E este é o teor da pergunta feita a Jesus para o experimentar, numa intenção malévola, como aponta Mateus ou Lucas, embora este o faça noutro contexto: depois da oração de ação de graças ao Pai pela revelação dos mistérios do Reino aos humildes, com a subsequente conversa com os discípulos, regressados da missão que Jesus lhes confiara, e com prelúdio à parábola do bom Samaritano.
Ainda hoje nos questionamos, nem sempre com a melhor intenção, sobre o essencial cristão.
Já o Evangelho de Marcos apresenta o escriba como uma personalidade aberta, sensata e merecedora de elogio – pessoa, enfim, que não estava longe do Reino de Deus (cf Mc 12,34).  
Todavia, a resposta de Jesus, clara e inapelável, ultrapassa o estreito horizonte da pergunta e vai muito mais além, situando-se ao nível das opções profundas a que o homem deve pôr mãos. O importante, na ótica de Jesus, não é definir o mandamento mais importante, mas encontrar a raiz de todos os mandamentos. E essa raiz, na perspetiva de Cristo, gravita em torno de duas coordenadas: a das ordenadas, por onde cresce em altura e profundidades o amor a Deus; e a das abcissas, por onde se expande e intensifica o amor ao próximo. A Lei e os Profetas são apenas comentários a estes dois mandamentos. Repare-se que os cristãos a quem se dirige Mateus referenciavam a expressão “a Lei e os Profetas”, a significar todos os livros inspirados do Antigo Testamento, que apresentavam a revelação de Deus (cf Mt 5,17; 7,12). Dizer, portanto, que “nestes dois mandamentos se sintetizam a Lei e os Profetas” significa que encerram toda a revelação de Deus, contêm a totalidade da proposta de Deus para os homens.
A originalidade deste sumário da Lei não está na ideia de amor a Deus e ao próximo, bem conhecidas do Antigo Testamento. Jesus limita-Se a citar o Deuteronómio (Dt 6,5), no atinente ao amor a Deus, e o Levítico (Lv 19,18), no respeitante ao amor ao próximo. A originalidade do ensinamento de Cristo reside no facto de Ele os aproximar um do outro, pondo-os em perfeito paralelo e fazendo-os da mesma natureza, bem como no facto de Jesus simplificar e concentrar toda a revelação de Deus nestes dois mandamentos.
De acordo com as narrativas evangélicas, Jesus não se preocupou em excesso com os rituais da religião judaica, nem viveu obcecado com a oferta de dons materiais a Deus. A sua grande preocupação foi, em contraponto, discernir a vontade do Pai e cumpri-la fiel e amorosamente. “Amar a Deus” é pois, na ótica de Jesus, prestar permanentemente toda a atenção aos projetos do Pai e procurar concretizar, na vida quotidiana, os seus planos. Ora, na vida de Jesus, o cumprimento da vontade do Pai passa por fazer da vida uma oblação total de amor aos irmãos e, se necessário, até ao dom total de si mesmo. Assim, “amor a Deus” e “amor aos irmãos” estão intimamente associados, nunca inseparáveis sob pena de sermos mentirosos. Não se trata de dois mandamentos, mas duas faces do mesmo. “Amar a Deus” é realizar o seu projeto de amor, que se concretiza na solidariedade, partilha, serviço, dom da vida aos irmãos. Diz-nos Jesus:
Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. […]. Vos sereis meus amigos se fizerdes o que eu vos mando.” (Jo 15,12.14).
Este texto limita-se a explicar que é preciso “amar o próximo como a si mesmo”. A expressão “como a si mesmo” não significa qualquer espécie de condicionalismo, mas a necessidade imperiosa de amar totalmente, de todo o coração. Porém, noutros textos de Mateus, Jesus explicita aos discípulos que é preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf Mt 5,43-48). É, pois, de amor sem limites que se trata, amor sem medida, cálculo ou tabela, que não distingue entre bons e maus, amigos e inimigos. Aliás, Lucas, ao narrar o episódio, acrescenta-lhe, como ilustração pedagógica a história parabólica do “bom samaritano”, explicando que o “amor aos irmãos” pedido por Jesus é incondicional e deve atingir todo o irmão que encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja estrangeiro, marginal ou inimigo (cf Lc 10,25-37).
Já o preceito do amor a Deus, imposto a Israel no Antigo Testamento (vd Dt 6,4-5) não se esgota no cumprimento das exigências exteriores do culto, mas implica a parte mais interior do homem, coração, alma, mente. Este preceito basilar da religião hebraica era lembrado ao israelita na sua oração diária (que iniciava a liturgia da sinagoga e que todo o israelita piedoso a rezava três vezes ao dia voltado para Jerusalém), “shema, Israel” – Escuta Israel. Na verdade, a narrativa paralela de Marcos cita explicitamente o texto desta oração:
Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito e com todas as tuas forças”. 
E o outro mandamento, o do amor ao próximo como a si mesmo (citando Lv 19,18) é da mesma natureza que o primeiro. E Marcos atesta que não há mandamento maior que estes. Também o decálogo (que Jesus não cita) se resume nos mandamentos do amor a Deus (do 1.º ao 3.º mandamento) e do amor ao próximo (do 4.º ao 10.º mandamento). Com efeito, não podemos ficar nem no enunciado platónico do amor idealista nem no seu conceito romântico sentimentalista ou piegas. É preciso traduzi-lo em ação solidária orientada pela fé, baseada na esperança e no estilo da caridade assente, não só na esmola avulsa, mas sobretudo na dádiva estruturante que procura a justiça.
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O texto paralelo de Lucas termina com a pergunta do doutor da Lei: “E quem é o meu próximo?”, pois em Lv 19,18 o próximo é alguém do próprio povo. E Jesus responde com a parábola do Bom Samaritano: o próximo é aquele de quem me aproximo, podendo ser um estrangeiro, um inimigo, um marginal ou alguém desconhecido. Basta que precise do meu cuidado. João lembra que o mandamento do amor a Deus e ao próximo são inseparáveis: “Quem não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).
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Também as outras Leituras deste XXX domingo ilustram o sentido do mandamento do amor.  
A perícopa do Êxodo tomada como 1.ª Leitura (Ex 22,20-26) apresenta-nos Deus como o defensor dos pobres, representados na viúva e no órfão. E adverte os israelitas: “Se fizerdes algum mal à viúva e ao órfão, minha cólera se inflamará contra vós” (cf Ex 22,21-23). Tal advertência surge no tempo subsequente à destruição de Samaria (722 a C) e anexação do Reino do Norte pela Assíria, momento em que muitos israelitas se refugiaram em Judá, especialmente em Jerusalém. Eram estrangeiros, refugiados de guerra e, sobretudo, viúvas e órfãos. Neste contexto, surge a lei que os protege. O motivo para este gesto de solidariedade é: “vós fostes estrangeiros na terra do Egito”. O próprio Deus apresenta-se como o provedor da viúva e do órfão. Da mesma forma, também os que pertencem ao próprio povo devem ser protegidos, sendo proibido cobrar juros por empréstimos ou tomar o manto do pobre como penhor. Condena-se aqui a usura ou onzena, que Gil Vicente chama feia e filha da maldição, bem como a penhora dos bens considerados essenciais para a sobrevivência, simbolizados no manto do pobre. E o motivo não é um capricho de Deus mas as suas entranhas de misericórdia: “porque sou misericordioso” (Ex 22,26). Jesus dirá, por isso: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
A 2.ª leitura (1Ts 1,5c-10) mostra-nos Paulo a alegrar-se com os Tessalonicenses, por terem acolhido “a Palavra com a alegria do Espírito Santo”. Abandonaram os ídolos, convertendo-se à mensagem do Evangelho, “para servirem o Deus vivo e verdadeiro”. Entre as perseguições, tornaram-se imitadores de Paulo e do próprio Cristo. O que os animava era a fé na ressurreição e a esperança da vinda do Senhor, que fez deles um exemplo, conhecido de todos na região:
Vós vos convertestes, abandonando os falsos deuses, para servir a Deus, esperando o seu Filho” (1Ts 1,9-10).
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Os preceitos do Senhor, que proclamam o amor, têm lugar apenas no contexto anti-idolátrico em que se evidencia a superabundância da misericórdia e da ternura de Deus, que nós temos de replicar, não por virtude própria, mas pela dinâmica da imitação que Deus nos permite e que nos aconselha. Por outro lado, seguir a Lei na perspetiva e no estilo de misericórdia e entrega sem reservas e sem medida dá a alegria que o mundo não pode dar e de que só o discípulo pode ter e que só o profeta pode testemunhar. É a verdadeira alegria nascida do amor misericordioso. Diz o Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 7:
 “Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida, são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo também a alegria genuína dos que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras, estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado em Jesus Cristo.”.
É a alegria livre, transformadora, incondicionada, seguidora da Matemática do Reino, em que, quando mais damos, mais ganhamos. É a alegria repleta da generosidade encarnada em gestos, transformadora da vida, produtora de entusiasmo, paz interior e vontade de viver. É alegria transbordante, que não se enclausura no coração de quem a possui, mas extravasa os limites, quaisquer que sejam, para se encarnar em ações que testemunham, que falam por si, sem necessidade de explicações verbalizadas, como expressa Paulo na 1.ª Carta aos Tessalonicenses:
Assim, nós já nem precisamos falar, pois as pessoas mesmo contam como vós nos acolhestes e como vos convertestes, abandonando os falsos deuses para servir ao Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1,8c-9).
Amar a Deus e amar ao próximo é um movimento único que conduz à plena realização. É o coroamento da Lei e dos Profetas, é a fonte da alegria – para que esta liturgia dominical no convoca como filhos e filhas a quem Deus tanto ama e de quem urge a relação da fraternidade.
2017.10.27 – Louro de Carvalho

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