A
perícopa do Evangelho de Mateus (Mt 22,34-40; replicada
em Mc 12,28-34 e Lc 10,25-28)
assumida para 3.ª Leitura da missa do XXX domingo do Tempo Comum no Ano A versa
o duplo mandamento do amor, que é a origem, o estilo e a meta de toda a missão
da Igreja e dos cristãos no mundo que nos cerca e com que nos entrosamos. O
anúncio audaz deste mandamento – promulgado pela excelência da vontade divina
no Antigo Testamento, integrante do shema
israelita lembrado e rezado todos os dias e consumado por Cristo no dinamismo
neotestamentário (cf Mt 5,17-18) que Ele inaugurou – convoca a
uma vida inteira de justiça na liberdade e na fraternidade. A sua recordação e
proclamação na liturgia dominical de encerramento do mês missionário (outubro) é a declaração da pertinência
da realização do mandamento do Senhor: amar
a Deus acima de tudo e amar o próximo como a nós mesmos; e
configura o propósito de transformação da vida para o desempenho cabal da
missão.
***
No Evangelho de Mateus, a abordagem do mandamento
do amor vem no contexto da terceira
controvérsia de Jesus com os grupos religiosos do judaísmo. A primeira foi, com
os herodianos e fariseus, sobre a questão da licitude do pagamento do tributo a
César (Mt 22,15-22); a segunda foi com os saduceus (Mt 22,23-33) sobre a ressurreição dos mortos, pois este grupo
rejeitava-a em absoluto, visto que admitia apenas a lei escrita, o Pentateuco,
e não os pontos de doutrina elaborados mais tarde pela tradição bíblica (vg:
imortalidade da alma, ressurreição dos corpos e existência de seres espirituais). Por isso, colocaram-lhe uma questão banal do tipo da borût rabínica, querendo fazê-lo entrar
numa discussão semisséria. Baseados no preceito moisaico da lei do “levirato”, de
que, se um homem morrer sem filhos, o irmão deve casar com a viúva para lhe dar
descendência (vd Dt 25,5), perguntaram
ao Mestre o que se passaria no caso de haver 7 irmãos, em que o primeiro casou
e morreu sem deixar filhos, vindo o irmão a casar com a viúva – o que sucedeu
ao 2.º e sucessivamente até ao 7.º (caso
improvável, mas evocado para demonstração de argúcia). Tendo morrido,
depois, a mulher, a questão era a de saber de qual dos 7 será a mulher na
ressurreição (ou seja, na vida ultraterrena), já que todos a tiveram. Jesus, acusando-os de não
compreenderem as Escrituras nem o poder de Deus (censura
pungente aos ouvidos dos saduceus), retorquiu que, na ressurreição, os homens não terão
mulheres nem as mulheres, maridos; serão como os anjos de Deus no céu (o que, em certa medida, sucede na fase terrestre da Igreja
com a virgindade por causa do Reino dos Céus, sinal profético da futura
condição escatológica). E, quanto à ressurreição dos mortos, recordou-lhes, sem
mencionar palavras dos livros recentes da sabedoria ou dos profetas, o que Deus
disse logo a Moisés: Eu sou o Deus de
Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob (Ex
3,6),
sendo que Ele não é Deus dos mortos, mas Deus dos vivos.
Registe-se que até a teologia do judaísmo rejeitava o
materialismo grosseiro dos saduceus. Ora, caso se negue a ressurreição dos
corpos e a imortalidade da alma, como se entende o poder vivificante de Deus
para ressuscitar Jesus. E, se Jesus não ressuscitou, para que serve o Antigo
Testamento e a fé da Igreja? Para que prestará o mandamento do amor?
***
Voltando à 3.ª controvérsia, esta com os fariseus, admirados com
a resposta de Jesus aos saduceus, vemos um deles, um doutor da Lei, a
interrogar o Mestre. O Evangelho leva-nos,
de novo, a Jerusalém, nos últimos dias de Jesus antes de padecer. Os líderes
judaicos já tinham feito a sua escolha e estavam com ideias definidas acerca da
proposta de Jesus: uma proposta que não vem de Deus, pelo que devia ser
rejeitada. Jesus tinha, pois, de ser denunciado, julgado e condenado de forma
exemplar. Para concretizar esse objetivo, os responsáveis procuravam argumentos
com vista à acusação formal. É neste
ambiente que Mateus situa as controvérsias entre Jesus e os grupos religiosos. Tais
controvérsias apresentam-se como tramas bem urdidas, destinadas a surpreender
afirmações polémicas de Jesus, passíveis de serem usadas em tribunal para obter
a sua condenação. E vai-se de controvérsia em controvérsia até se chegar a uma
suscitada pelo próprio Cristo – a 4.ª, em que Jesus desafiou os fariseus
reunidos a responderem o que pensavam do Messias (Mt 22,41-46).
Ao perguntar a Jesus qual é o maior mandamento da Lei,
os fariseus procuram demonstrar que Jesus não sabe interpretar a Lei e que,
portanto, não é digno de crédito. De facto, a questão do maior mandamento da
Lei, uma questão não pacífica, era, no tempo de Jesus, objeto de debates
intermináveis entre os fariseus e os doutores da Lei. Era uma disputa segundo o
modelo da derek eres rabínica, isto
é, dizia respeito a normas de boa conduta. A preocupação em atualizar a Lei,
para que ela respondesse a todas as questões da vida do dia a dia, tinha levado
os doutores da Lei a deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 eram
proibições “sob grave” e 248 ações a praticar,
que obrigavam “sob leve”. Tal
“multiplicação” casuística dos preceitos legais lançava a questão das
prioridades nesta floresta preceptiva: Todos
os preceitos têm a mesma importância ou há algum mais importante do que os
outros? E este é o teor da pergunta feita a Jesus para o experimentar, numa
intenção malévola, como aponta Mateus ou Lucas, embora este o faça noutro
contexto: depois da oração de ação de graças ao Pai pela revelação dos
mistérios do Reino aos humildes, com a subsequente conversa com os discípulos,
regressados da missão que Jesus lhes confiara, e com prelúdio à parábola do bom
Samaritano.
Ainda hoje nos questionamos, nem sempre com a melhor intenção,
sobre o essencial cristão.
Já o Evangelho de Marcos apresenta o escriba como uma personalidade
aberta, sensata e merecedora de elogio – pessoa, enfim, que não estava longe do
Reino de Deus (cf Mc 12,34).
Todavia, a resposta de Jesus, clara e inapelável,
ultrapassa o estreito horizonte da pergunta e vai muito mais além, situando-se
ao nível das opções profundas a que o homem deve pôr mãos. O importante, na
ótica de Jesus, não é definir o mandamento mais importante, mas encontrar a
raiz de todos os mandamentos. E essa raiz, na perspetiva de Cristo, gravita em
torno de duas coordenadas: a das ordenadas, por onde cresce em altura e
profundidades o amor a Deus; e a das abcissas,
por onde se expande e intensifica o amor ao próximo. A Lei e os Profetas são
apenas comentários a estes dois mandamentos. Repare-se que os cristãos a quem
se dirige Mateus referenciavam a expressão “a
Lei e os Profetas”, a significar todos os livros inspirados do Antigo
Testamento, que apresentavam a revelação de Deus (cf Mt 5,17;
7,12). Dizer, portanto, que “nestes dois
mandamentos se sintetizam a Lei e os Profetas” significa que encerram toda a
revelação de Deus, contêm a totalidade da proposta de Deus para os homens.
A originalidade deste sumário da Lei não está na ideia
de amor a Deus e ao próximo, bem conhecidas do Antigo Testamento. Jesus
limita-Se a citar o Deuteronómio (Dt 6,5), no atinente ao amor a Deus, e o Levítico (Lv 19,18), no respeitante ao amor ao próximo. A originalidade
do ensinamento de Cristo reside no facto de Ele os aproximar um do outro,
pondo-os em perfeito paralelo e fazendo-os da mesma natureza, bem como no facto
de Jesus simplificar e concentrar toda a revelação de Deus nestes dois
mandamentos.
De acordo com as narrativas evangélicas, Jesus não se
preocupou em excesso com os rituais da religião judaica, nem viveu obcecado com
a oferta de dons materiais a Deus. A sua grande preocupação foi, em contraponto,
discernir a vontade do Pai e cumpri-la fiel e amorosamente. “Amar a Deus” é
pois, na ótica de Jesus, prestar permanentemente toda a atenção aos projetos do
Pai e procurar concretizar, na vida quotidiana, os seus planos. Ora, na vida de
Jesus, o cumprimento da vontade do Pai passa por fazer da vida uma oblação total
de amor aos irmãos e, se necessário, até ao dom total de si mesmo. Assim, “amor
a Deus” e “amor aos irmãos” estão intimamente associados, nunca inseparáveis
sob pena de sermos mentirosos. Não se trata de dois mandamentos, mas duas faces
do mesmo. “Amar a Deus” é realizar o seu projeto de amor, que se concretiza na
solidariedade, partilha, serviço, dom da vida aos irmãos. Diz-nos Jesus:
“Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. […]. Vos sereis meus amigos
se fizerdes o que eu vos mando.” (Jo 15,12.14).
Este texto limita-se a explicar que é preciso “amar o
próximo como a si mesmo”. A expressão “como a si mesmo” não significa qualquer
espécie de condicionalismo, mas a necessidade imperiosa de amar totalmente, de
todo o coração. Porém, noutros textos de Mateus, Jesus explicita aos discípulos
que é preciso amar os inimigos e orar pelos perseguidores (cf Mt 5,43-48). É, pois, de amor sem limites que se trata, amor sem
medida, cálculo ou tabela, que não distingue entre bons e maus, amigos e
inimigos. Aliás, Lucas, ao narrar o episódio, acrescenta-lhe, como ilustração
pedagógica a história parabólica do “bom samaritano”, explicando que o “amor
aos irmãos” pedido por Jesus é incondicional e deve atingir todo o irmão que
encontrarmos nos caminhos da vida, mesmo que ele seja estrangeiro, marginal ou
inimigo (cf Lc
10,25-37).
Já o preceito do amor a Deus, imposto a Israel no
Antigo Testamento (vd Dt 6,4-5) não se
esgota no cumprimento das exigências exteriores do culto, mas implica a parte
mais interior do homem, coração, alma, mente. Este preceito basilar da religião
hebraica era lembrado ao israelita na sua oração diária (que iniciava
a liturgia da sinagoga e que todo o israelita piedoso a rezava três vezes ao
dia voltado para Jerusalém), “shema, Israel” – Escuta Israel. Na verdade,
a narrativa paralela de Marcos cita explicitamente o texto desta oração:
“Ouve, Israel, o
Senhor nosso Deus é o único Senhor; amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito e com todas as tuas
forças”.
E o outro mandamento, o do amor
ao próximo como a si mesmo (citando Lv 19,18) é da mesma natureza que o primeiro.
E Marcos atesta que não há mandamento maior que estes. Também o decálogo (que Jesus não cita) se resume
nos mandamentos do amor a Deus (do 1.º ao 3.º mandamento) e do amor ao próximo (do 4.º ao 10.º mandamento). Com efeito, não podemos ficar nem no enunciado
platónico do amor idealista nem no seu conceito romântico sentimentalista ou
piegas. É preciso traduzi-lo em ação solidária orientada pela fé, baseada na
esperança e no estilo da caridade assente, não só na esmola avulsa, mas sobretudo
na dádiva estruturante que procura a justiça.
***
O texto
paralelo de Lucas termina com a pergunta do doutor da Lei: “E quem é o meu próximo?”, pois em Lv 19,18
o próximo é alguém do próprio povo. E Jesus responde com a parábola do Bom
Samaritano: o próximo é aquele de quem me aproximo, podendo ser um estrangeiro,
um inimigo, um marginal ou alguém desconhecido. Basta que precise do meu
cuidado. João lembra que o mandamento do amor a Deus e ao próximo são inseparáveis:
“Quem não ama o seu irmão, a quem vê, não
pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).
***
Também as
outras Leituras deste XXX domingo ilustram o sentido do mandamento do amor.
A perícopa do Êxodo tomada como 1.ª Leitura (Ex 22,20-26) apresenta-nos Deus como o defensor dos pobres, representados na viúva e
no órfão. E adverte os israelitas: “Se fizerdes
algum mal à viúva e ao órfão, minha cólera se inflamará contra vós” (cf Ex 22,21-23). Tal advertência surge no tempo
subsequente à destruição de Samaria (722 a C) e anexação do Reino do Norte pela Assíria, momento em
que muitos israelitas se refugiaram em Judá, especialmente em Jerusalém. Eram
estrangeiros, refugiados de guerra e, sobretudo, viúvas e órfãos. Neste
contexto, surge a lei que os protege. O motivo para este gesto de solidariedade
é: “vós fostes estrangeiros na terra do
Egito”. O próprio Deus apresenta-se como o provedor da viúva e do órfão. Da
mesma forma, também os que pertencem ao próprio povo devem ser protegidos,
sendo proibido cobrar juros por empréstimos ou tomar o manto do pobre como
penhor. Condena-se aqui a usura ou onzena, que Gil Vicente chama feia e filha
da maldição, bem como a penhora dos bens considerados essenciais para a
sobrevivência, simbolizados no manto do pobre. E o motivo não é um capricho de
Deus mas as suas entranhas de misericórdia: “porque sou misericordioso” (Ex 22,26). Jesus dirá, por isso: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36).
A 2.ª leitura (1Ts 1,5c-10) mostra-nos Paulo a
alegrar-se com os Tessalonicenses,
por terem acolhido “a Palavra com a
alegria do Espírito Santo”. Abandonaram os ídolos, convertendo-se à
mensagem do Evangelho, “para servirem o
Deus vivo e verdadeiro”. Entre as perseguições, tornaram-se imitadores de
Paulo e do próprio Cristo. O que os animava era a fé na ressurreição e a
esperança da vinda do Senhor, que fez deles um exemplo, conhecido de todos na
região:
“Vós vos convertestes, abandonando os
falsos deuses, para servir a Deus, esperando o seu Filho” (1Ts 1,9-10).
***
Os preceitos do Senhor, que proclamam o amor, têm lugar apenas no
contexto anti-idolátrico em que se evidencia a superabundância da misericórdia
e da ternura de Deus, que nós temos de replicar, não por virtude própria, mas
pela dinâmica da imitação que Deus nos permite e que nos aconselha. Por outro
lado, seguir a Lei na perspetiva e no estilo de misericórdia e entrega sem
reservas e sem medida dá a alegria que o mundo não pode dar e de que só o
discípulo pode ter e que só o profeta pode testemunhar. É a
verdadeira alegria nascida do amor misericordioso. Diz o Papa Francisco na sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n. 7:
“Posso
dizer que as alegrias mais belas e espontâneas, que vi ao longo da minha vida,
são as alegrias de pessoas muito pobres que têm pouco a que se agarrar. Recordo
também a alegria genuína dos que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais,
souberam conservar um coração crente, generoso e simples. De várias maneiras,
estas alegrias bebem na fonte do amor maior, que é o de Deus, a nós manifestado
em Jesus Cristo.”.
É a alegria livre,
transformadora, incondicionada, seguidora da Matemática do Reino, em que, quando
mais damos, mais ganhamos. É a alegria repleta da generosidade encarnada em
gestos, transformadora da vida, produtora de entusiasmo, paz interior e vontade
de viver. É alegria transbordante, que não se enclausura no coração de quem a
possui, mas extravasa os limites, quaisquer que sejam, para se encarnar em
ações que testemunham, que falam por si, sem necessidade de explicações verbalizadas,
como expressa Paulo na 1.ª Carta aos Tessalonicenses:
“Assim, nós já nem precisamos falar, pois as
pessoas mesmo contam como vós nos acolhestes e como vos convertestes,
abandonando os falsos deuses para servir ao Deus vivo e verdadeiro” (1Ts
1,8c-9).
Amar a Deus e
amar ao próximo é um movimento único que conduz à plena realização. É o
coroamento da Lei e dos Profetas, é a fonte da alegria – para que esta liturgia
dominical no convoca como filhos e filhas a quem Deus tanto ama e de quem urge
a relação da fraternidade.
2017.10.27 – Louro de Carvalho
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