terça-feira, 10 de outubro de 2017

A configuração do “erro de perceção mútuo”

Segundo a edição do periódico on line ECO, a Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à atuação do XXI Governo Constitucional no que se relaciona com a nomeação e a demissão da Administração do Dr. António Domingues (CPIAGNDAD) já tem relatório que será discutido e presumivelmente aprovado muito em breve. São já conhecidas as pré-conclusões do trabalho daquela comissão parlamentar – com designação tão pomposa, não sei se pela relevância do XXI Governo Constitucional se pela do efémero presidente da Comissão Executiva da CGD e seu Chairman. Bem fazem as más-línguas que ousaram pura e simplesmente designá-la por Comissão dos SMS ou Comissão de Inquérito à Demissão de António Domingues. O que merece um homem e uns miseráveis SMS! Com efeito, assuntos de Estado deveriam ser abordados e discutidos com mais cautela, seriedade e por outros meios, como a carta e/ou a reunião das pessoas em causa.
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Foi preciso um relatório, elaborado depois de ser ouvida uma bateria de personalidades e outra de documentos para se entender o que efetivamente foi o “erro de perceção mútuo” que levou à demissão de António Domingues, ou seja, para se ficar a saber o que já se sabia.
No imbróglio que se urdiu em torno da problemática da recapitalização da Caixa Geral de Depósitos e da atribuição que lhe foi outorgada duma equipa de administração e gestão profissional, saltou a retirada dos administradores do Estatuto do Gestor Público com as ambiguidades já por demasiado conhecidas.
O relatório vem a concluir o que parece alegadamente ser o mais importante:  
Em momento algum houve qualquer acordo para a alteração do Regime Jurídico do Controlo Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, podendo haver meras referências ocasionais sobre essa matéria”.  
Nas trocas de informação, António Domingues entendeu um sentido das coisas e Mário Centeno entendeu outro. Este foi o “erro de perceção mútuo” que levou à demissão de um da CGD e à manutenção do outro no Governo. Querem os inquiridores parlamentares convencer o povo de que não houve, nunca jamais em tempo algum, qualquer acordo para isentar o insigne gestor da declaração de rendimentos e de património ao TC (Tribunal Constitucional). Por outras palavras, há que salvar a honra do convento governamental proclamando Urbi et Orbi que “não houve, entre Mário Centeno e António Domingues, qualquer acordo para isentar o antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e restantes administradores de apresentarem as respetivas declarações de património e de rendimentos ao Tribunal Constitucional”. António Domingues não soube ler o conteúdo das mensagens trocadas entre si e Centeno e Centeno também não soube ler o conteúdo das mesmas mensagens. Temos então, pelo menos, um governante iletrado e tivemos também na CGD um administrador-chefe iletrado.
Domingues na sua iliteracia “julgava por adquiridos” os pressupostos que lhe interessavam; Centeno julgava por adquirida a posição que alegadamente o Governo defendia.
E, assim, segundo o ECO, chegou-se à:
Principal conclusão do relatório final da Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Atuação do XXI Governo Constitucional no que se relaciona com a Nomeação e a Demissão da Administração do Dr. António Domingues, carinhosamente apelidada de comissão dos SMS”.
Um relatório com este conteúdo e esta forma que faz arrepiar os cabelos da cidadania vai ser discutido e votado pelos deputados da Comissão no próximo dia 17 de outubro. Isto, porque
Os depoimentos foram esclarecedores o bastante para que fosse possível indagar o que havia a indagar, esclarecer o que havia a esclarecer, não havendo qualquer óbice de outra natureza que impossibilitasse a retirada de conclusões”.
Uma conclusão destas, tão rica e tão sapiente, foi tirada ao fim de pouco mais de 100 páginas pelo deputado socialista Luís Testa, o relator desta comissão. Não obstante, o relator reconhece ter havido “vários casos de recusa de envio de documentos”, sendo as recusas mais marcantes as de Mário Centeno em enviar o conteúdo das SMS trocadas com António Domingues, “que poderiam revelar o compromisso (ou não) da isenção de entrega das declarações ao Constitucional”. O relatório sublinha que é longa a lista de razões para a recusa de entrega de documentos à comissão, começando por referir:
Houve casos de recusa de envio de alguns documentos, sustentada na invocação do segredo profissional, do segredo bancário e do segredo de supervisão, que constituem modalidades de segredo profissional, ou, ainda, segredo de negócio”.
E acrescenta:
As entidades requeridas fundamentaram também o não envio da documentação solicitada na não inclusão dos documentos no objeto da comissão, na não autoria dos documentos solicitados, no facto de os elementos solicitados não terem por destinatária a Caixa Geral de Depósitos, a circunstância de o Banco Central Europeu ter notificado a Caixa Geral de Depósitos para não disponibilizar quaisquer elementos relativos à correspondência trocada sem a sua prévia autorização casuística, a não disponibilidade dos elementos solicitados, a inexistência da documentação e o facto de os documentos solicitados se encontrarem sob a responsabilidade legal do Banco Central Europeu”.
A CPIAGNDAD insistiu, ainda em 21 de abril de 2017, junto da CGD, do Ministério das Finanças e do Banco de Portugal na necessidade de lhe serem facultados os documentos adrede requeridos, disponibilizando-se para “diligenciar meios alternativos de acesso aos mesmos”. Apesar de tudo, aquelas entidades mantiveram a recusa de envio de alguns dos documentos. De tudo isto o relatório faz crónica.
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Como tem sido dito e redito, a saga começou no início de 2017, quando o Governo convidou o que passou a ser o famoso Dr. Domingues para a presidência do conselho de administração da CGD, que o convidado assumiu em agosto desse ano. Entretanto, desencadeou-se o imbróglio que levou a que se constituísse a Comissão com este objeto tão limitado, passando a coincidir no tempo, em parte, com a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a gestão do banco público desde o ano 2000, culminando no processo de recapitalização de cerca de 5.000 milhões de euros, aprovado entre o Governo português e a Comissão Europeia, depois de a CGD ter apresentado um prejuízo histórico de 1.859 milhões de euros em 2016.
Domingues, Centeno e Ricardo Mourinho Félix começaram a trocar correspondência em abril de 2016. E, nessa troca de correspondência, o antigo banqueiro entendeu fazer algumas exigências, de que a principal era a isenção do Estatuto do Gestor Público, que, a seu ver, foram aceites, como o próprio admitiu depois, em sede de comissão de inquérito. Disse a propósito:
Todas as condições foram expostas e apresentadas ao Governo e, no meu juízo, foram aceites. Escrevi a nota porque tinha consciência de que estava a propor alterações fundamentais ao modelo e quis que ficasse escrito para que não houvesse dúvidas.”.
Ora, em junho de 2016, o Governo aprovou, por decreto-lei, as alterações ao Estatuto do Gestor Público que viriam satisfazer todas as exigências de António Domingues – isto no seu entender. E eu também assim o entendo, embora julgue que o Governo não o devia ter feito, a menos que tivesse necessidade de vender essa mercadoria legislativa à Comissão Europeia e ao BCE para viabilizar a recapitalização da CGD sem que fosse considerada ajuda pública. Com efeito, o decreto-lei em causa veio isentar os gestores do banco público dos tetos salariais impostos aos restantes gestores públicos. Depois, passou a alegar-se, a meu ver de forma enviesada, que não fazia referência à obrigatoriedade de declaração de rendimentos e património, prevista noutra lei, que não a do Estatuto do Gestor Público, mas a do Regime Jurídico do Controlo Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, aprovada em 1983. Se não integram o Estatuto do Gestor Publico, não deviam continuar a ser considerados no âmbito da lei de 1983. Não o entendeu assim o Presidente da República, que extravagantemente ousou esclarecer o sentido do decreto-lei, levando à sirga o Governo, alguns partidos e o próprio Tribunal Constitucional (TC), que, pelos visto, ainda não se tinha sentido “estimulado”. No mínimo deveria ter sido, o TC a dissipar a dúvida pela via da interpretação da Lei/Decreto-Lei ou o Parlamento pela via legislativa. E talvez Domingues devesse reconhecer não ter sido explícito na sua exigência.
Assim, em outubro de 2016, pouco depois de António Domingues assumir o cargo de presidente da CGD, o comentador Marques Mendes levantou a questão: os administradores da CGD não vão entregar ao TC as respetivas declarações de rendimentos e de património? Passadas três semanas, a 15 de novembro, Domingues envia carta a Centeno, exprimindo a sua “surpresa” relativamente a essa questão:
Foi, desde logo, com grande surpresa que vimos serem suscitadas dúvidas sobre as implicações da exclusão dos membros do Conselho de Administração da CGD do Estatuto do Gestor Público, concretamente sobre a possível necessidade de envio de tais declarações ao Tribunal Constitucional”.
A obrigação de entregar as declarações fora, segundo o que acrescentava Domingues, “uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD”. Foi, pelos vistos, esse erro de perceção mútuo, como Centeno o designou quando foi ouvido na comissão de inquérito. E eu pergunto-me onde está a mutualidade do erro. Apenas cada um o entendeu, não conforme o entendeu tout court, mas conforme a própria conveniência, sendo que a de um não coincidia com a do outro. Porém, o relator concluindo que uma parte entendeu uma coisa, outra entendeu coisa diferente, comenta no seu texto:  
Não é por não se aplicar o Estatuto do Gestor Público a uma subclasse de gestores públicos que estes ficam exonerados das restantes obrigações a que estão sujeitos – nomeadamente as constantes da lei n.º 4/83, de 2 de abril – já que não afastadas a nenhuma classe ou subclasse de gestores públicos”.
E eu continuo na minha interrogação: Afinal, quais são as consequências da subtração daqueles gestores ao Estatuto do Gestor Público, se não o são as exigências de direitos e deveres inerentes a esse estatuto? Se assim não é, o Decreto-Lei n.º 39/2016, de 28 de julho, deveria estipular coisa como o seguinte: “Os gestores da CGD não estão sujeitos ao regime de indexação dos vencimentos aos do PR, ficando, nesta matéria, fora do Estatuto do Gestor Público”. De resto, tapa-se o sol com a peneira ou deita-se poeira nos olhos ao concluir-se, de forma excessiva, que esse regime de exceção nunca foi acordado com Domingues:
Das audições foi ainda possível concluir que em momento algum houve qualquer acordo para a alteração do regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos, podendo haver meras referências ocasionais sobre essa matéria”.
Penso que deviam deixar falar os escritos, ao menos, tanto como as audições, pois o que vem a seguir sobre a admissão de meras diferenças de interpretação sabe a oco e ambíguo. Vejamos:
O que é possível admitir é que possa ter sido suscitado o convencimento de que a alteração do Estatuto do Gestor Público, nos termos em que foi feita, poderia exonerar de restantes obrigações os gestores públicos em causa, o que, como já se demonstrou, não exonera”.
Ademais, é absurdo considerarem-nos ingénuos quando dizem:
A saída do Dr. António Domingues deriva, não de qualquer aspeto relacionado com a administração da CGD, mas sim de questões de relação com o acionista, construídas com base em pressupostos que o próprio julgava por adquiridos”.
E é preciso ter desplante para enxotar a culpa só para um lado, o do Dr. Domingues, quando, do meu ponto de vista, ninguém ficou bem na fotografia: Domingues, Centeno, Mourinho Félix, Marcelo e Costa Andrade.
Como em tempos afirmei, era tão fácil e tão nobre cada uma das partes assumir a sua quota-parte de culpa. Porém, a dignidade parece ter metido férias.

2017.10.10 – Louro de Carvalho

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