sábado, 1 de abril de 2023

Pessoas santas e perfeitas são necessárias

 

Em tempo de Semana Santa, também chamada Semana Maior, em que passa pelos olhos dos cristãos a presentificação da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, aquele que é o único verdadeiramente santo, não será inoportuno refletir sobre a participação dos crentes na santidade contagiante do Senhor, sendo santos e perfeitos como Ele quer, procurando ser, o máximo possível, ser semelhantes a Ele. E, mais do que a santidade e a perfeição das coisas, dos lugares e dos tempos, importa a santidade das pessoas, o que se impõe assumir em maré de crise da Igreja.

A quarta parte do livro do Levítico (Lv 17-26) constitui a “lei da santidade”, designação proveniente do refrão-imperativo insistentemente repetido: “Sede santos porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2; 20,7; cf 21,8; 22,16…).

Para os teólogos israelitas, Javé é o Deus santo, ou seja, transcendente, incomparável, inefável, inatingível. Este Deus elegeu Israel, chamou-o, distinguiu-o entre todos os povos da terra e fez aliança com Ele. Por isso, Israel participa da santidade de Deus: é um povo à parte, separado dos outros, porque chamado para a comunhão com o Deus santo – o que postula uma vida em conformidade com determinadas regras configuradoras da santidade, uma parte significativa das quais atinente à vida cultual, mas outras atinentes ao modo de vida pessoal e à vida em comunidade, coerentes e harmonizadas com as primeiras.

O tom é dado pelo refrão-imperativo posto na boca de Deus: “Sede santos porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). De facto, a comunhão com o Deus santo exige que o Povo cultive a santidade, isto é, que seja justo para com os irmãos, membros da comunidade. Assim, os membros do Povo santo são convidados a arrancar as raízes do mal, que nascem e crescem no íntimo do homem, para que, nos corações, não haja ódio, nem rancor contra o irmão.

O preceito de ordem prática, “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18), sintetiza a atitude que a santidade exige no atinente à vida fraterna, um princípio fundamental da Lei.

Jesus, em Mt 5,38-48, retoma o preceito de Ex 19,18 combinado com Dt 6,4-9, para exprimir o essencial da Lei de Moisés (cf Mt 22,37-39). Assim, expõe aos discípulos a sua Lei da santidade, no contexto do sermão da montanha. Pede aos seus que aceitem inverter a lógica da violência e do ódio, que gera egoísmo, sofrimento e morte, e exige deles o amor, que não marginaliza nem discrimina ninguém (nem os inimigos). É nesse caminho que se constrói o Reino. É a continuidade da apresentação da nova Lei, lei que deve guiar a caminhada cristã.

Jesus não veio abolir a Lei, mas levá-la à plenitude. No entanto, a Lei tornou-se um conjunto de prescrições cumpríveis mecanicamente, numa lógica casuística que, tantas vezes, não tem nada a ver com o coração e com a vida. É preciso que a Lei deixe essa lógica e se torne expressão do compromisso autêntico com Deus e com o seu Reino.

O preceito final, “sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48), parafraseia o refrão da “lei da santidade” do Levítico, “sede santos porque Eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Sintetiza, de forma magnífica, o ensinamento que Mateus apresenta à sua comunidade: viver na dinâmica do Reino exige a superação da perspetiva legalista e casuística, para viver em comunhão total com Deus, deixando que a vida de Deus, que enche o coração do crente, se manifeste na vida do quotidiano, nas relações fraternas.

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Várias personagens da Bíblia encontraram manifestações da santidade divina. Um momento-chave, neste âmbito, é a experiência de Isaías, o profeta que teve a visão do Deus de Israel sentado no seu trono divino. Foi no ano da morte do justo rei de Judá, estando o povo a sofrer com a perda de um rei bom. Nessa visão, Isaías viu algo que lhe chamou a atenção: viu a presença dos anjos de Deus em frente do trono divino. E eles clamavam uns para os outros: “Santo”, “Santo”, “Santo é o Senhor Todo Poderoso. A Terra inteira está cheia da sua glória!” (Is 6,1-13)

A palavra kadosh (santo) é repetida três vezes seguidas – uma forma hebraica de destacar algo. Kadosh significa algo que é “outro” (diferente), o inverso do comum. A palavra vem carregada de um sentido de santidade e de consagração.

Já Moisés chamava “Santo dos Santos” ao local mais importante do Tabernáculo, onde residia o Deus de Israel.

Os escritores do Novo Testamento (NT), para significar “santo”, “sagrado”, usam a palavra grega hágios (ἅγιος), com as terminações ία (no feminino), ον (no neutro). Os seus sinónimos são hierós hósios, hagnós e semnós. Nenhuma destas palavras tem, necessariamente, um significado moral no Grego clássico, mas adquiriram-no e desenvolveram-no no Grego bíblico.

Hierós significa sagrado. Implica uma relação especial com Deus, que não deve ser violada. É, porém, mais uma relação formal do que marcante de caráter. Designa uma relação externa, que, ordinariamente, não implica uma relação interna. É usada para descrever pessoas ou coisas. É a palavra mais comum para “santo” no Grego clássico, expressando a conceção usual de santidade, mas é rara no NT, pois não é adequada para expressar a plenitude da santidade do NT.

Hosiós utiliza-se para, nas pessoas ou nas coisas, descrever o que está em harmonia com a constituição divina do universo moral. Daí, é o que está de acordo com a ideia geral e instintiva de “direito”, “o que é consagrado e sancionado pela lei universal e pelo consentimento”, antes do que algo que está de acordo com algum sistema de verdade revelada. Como contrário à santidade (hosía), os Gregos consideravam anosía (falta de santidade), por exemplo, um casamento entre irmão e irmã, comum no Egito, ou a omissão dos ritos de sepultura de um parente.

Hágios tem como sentido fundamental a “separação” do mundo para o serviço a Deus. Se não original, é um sentido em uso desde há muito tempo. Esta separação não é uma separação externa, mas a separação do mal e da corrupção. Realmente importante é o significado moral da palavra. Esta palavra, rara e neutra no Grego clássico, ganhou o sentido que se lhe atribui e exprime a conceção completa de santidade do NT como nenhuma outra.

Hágnos, relacionada com hágios, significa “puro”, mas predominantemente em contexto e sentido cerimonial. Descreve a liberdade das impurezas da carne.

E sémnos é aquilo que inspira reverência ou temor. No Grego clássico, aplica-se, frequentemente, aos deuses. Mas tem a ideia inferior ao que é humanamente venerável, ou mesmo ao que se refere simplesmente às aparências, como o que é magnificente, grande, ou impressivo.

Os escritores do Antigo Testamento (At) usaram a palavra kodesh, “separado”, “santidade”, “sacralidade”, “posto à parte” – derivada do verbo kadash, que significa “apartar”, “celebrar”, “consagrar”, “dedicar”, “purificar”, “santificar”.

A palavra kodesh ocorre cerca de 470 vezes no AT.

Os equivalentes em hebraico kadosh e cognatos, no Antigo Testamento (At), aparecem em Ex 3,5; Lv 19,2; Ne 11,1; Sl 15,1 (Sl 14,1); Is 6,3; Is 52,1; Is 66,20; Is 62,12; Dn 7,27; Dn 11,28.

No NT, a semântica da santidade aparece a referenciar coisas dedicadas a Deus, santas, sagradas, reservadas ao serviço de Deus (Mt 4,5; 24,15; 27,53; Lc 1,72; At 6,13; 21,28; Rm 1,2; 2Tm 1,9; 1Pe 2,5; 2Pe 1,18; 2,21; Ap 11,2; 21,2; 21,10); e como puras, perfeitas, dignas de Deus (Rm 7,12; 12,1; 1Cor 3,17; Ef 2,21; 2Pe 3,11).

E aparece a referenciar pessoas; Deus, santo (Lc 1,49; Jo 17,11; 1Pe 1,16; Ap 4,8; 6,10); Cristo, santo (Lc 1,35; At 4,27; 4,30); o Espírito Santo (Pneûma Hágion); anjos (Mc 8,38; Lc 9,26; At 10,22; Jd 1,14; Ap 14,10); pessoas humanas santas, consagradas à Deus (Mc 6:20; Lc 1,70; 2,23; At 3,21; 1Cor 7,14, Ef 1,4; 3,5; 5,27; Cl 1,22; Heb 3,1; 1Pe 1,15-16; 2,9; 3,5; 2Pe 3,2).

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No atinente à perfeição, é de anotar que o capítulo 12 do livro de Génesis nos mostra a vocação de Abraão (ainda Abrão). O Senhor chama-o e manda que deixe a sua terra, a sua parentela e os seus pais e que vá para a terra que o Senhor lhe vai mostrar.

No capítulo 17, vemos que, passados 24 anos desde o seu chamamento, o Senhor lhe dá uma ordem um tanto intrigante a Abraão, pouco antes de lhe mudar o nome. Gn 17,1 permite que leiamos: “(…) anda em minha presença e sê perfeito.”

No AT, em hebraico, surge a palavra “tamim” a significar “perfeito”, “íntegro”, “completo”, “inocente”. E, no NT, temos a palavra “téleios”, a significar “o que é plenamente desenvolvido”, “inteireza”, “completude”.

Assim, o “ser perfeito” bíblico não pode ser entendido com a nossa interpretação costumeira de “sem defeitos” ou “sem pecado”, mas aquilo ou aquele “que desempenha plenamente o propósito para o qual foi projetado”. Por isso, o homem só pode desempenhar plenamente tal propósito, andando com Aquele que o criou: “anda na minha presença…”.

Tanto assim é que, no convite que Jesus faz ao jovem rico (Mt 19,21) também lemos “téleios” relacionado com a caminhada: “Se queres ser perfeito… vem, e segue-me.” Andar com o Senhor é a condição para ser perfeito. Abraão decidiu ouvir a voz de Deus, mas o jovem rico considerou demasiado importante tudo quanto possuía e não optou pela perfeição.

Também Paulo (Cl 1,28) pretende que “apresentemos todo o homem perfeito (téleios) em Jesus”. Uma vez mais, só em Cristo – o CAMINHO – o homem alcança a inteireza e a completude do propósito para o qual foi criado e redimido (a nova criação).

Era comum os Gregos usarem “téleios” para referirem o aluno mais maduro (não iniciante) no conhecimento. Por isso, em 1Co 14,20, lê-se: “Irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos ou maduros (téleioi) no entendimento.”

O perfeito não é o que está livre do pecado, mas é o que foi inocentado pelo sangue de Cristo. Só em Jesus podemos concretizar, em pleno, o propósito para o qual o Criador nos fez. É Ele quem tudo conhece e nos convida a andarmos com Ele.

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Há, pois, como se pode verificar, uma diferença relevante. Enquanto o Levítico fala em “santos”, o Evangelho fala em “perfeitos”. O santo é inatingível, separado dos outros, diferente deles, ao passo que o perfeito é puro, inocente, benfazejo, bendizente e benquerente. Não tem de estar longe dos outros, não tem de ser diferente. Ao invés, por força da encarnação e porque redimido e inocentado pelo Salvador, deve estar no meio dos outros, como Jesus Cristo, que pediu ao Pai: “Não Te peço que os tires do Mundo, mas que os livres do mal” (Jo 17,15). Além disso, a santidade pode ser um estado, um acontecer, enquanto a perfeição postula trabalho com vista à completude. No caso do cristão, trabalha Deus e trabalha o ser humano, bem como a comunidade.

2023.04.01 – Louro de Carvalho

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