domingo, 23 de abril de 2023

Uma Eucaristia ambulante ou a Eucaristia da peregrinação

 

O celebrante da Eucaristia na igreja da Misericórdia de Santa Maria da Feira considerou o relato, exclusivo de Lucas, do episódio dos discípulos de Emaús com Jesus ressuscitado (Lc 24,13-35), na tarde da ressurreição, uma celebração ambulante da Eucaristia.

Cléofas e um outro discípulo, desencantados com o que se passara, naqueles dias, em Jerusalém – a crucifixão e morte do seu Mestre e Messias na cruz – caminhavam para casa, em Emaús, com mira nas lides habituais, pois a esperança da libertação que puseram na aventura em que alinharam com todos os outros, em torno de Jesus, os deixara como o sino sem badalo.

Os dois dirigiam-se para Emaús, aldeia a 60 estádios de Jerusalém (cerca de 12 quilómetros). Pensou-se que o texto se referiria a Amwas, situada a cerca de 30 quilómetros a oeste de Jerusalém (alguns manuscritos falam de 160 estádios, o que nos colocaria no sítio certo), mas parece uma distância excessiva para percorrer num dia, sem paragens e a conversar demoradamente.

Não interessou ao evangelista um relato coerente, pois, se estivesse preocupado com a coerência, cuidaria a situação geográfica de Emaús e explicaria incongruências do texto – por exemplo porque partiram estes discípulos para a sua aldeia sem investigarem o rumor do túmulo vazio e o de que Jesus tinha ressuscitado. Interessou-lhe, pois, explicar aos cristãos para quem escreveu – na década de 80 – como se pode descobrir que Jesus está vivo e como se pode experienciar o encontro com Jesus ressuscitado. É, portanto, de uma página de catequese que se trata.

Começamos por estar diante de dois discípulos que vão a caminho de Emaús. Um é Cléofas; o outro não é identificado, como a querer dizer que podia ser qualquer um dos crentes que tomam conhecimento da história. Vão tristes e desanimados, porque os sonhos de triunfo e de glória ao lado de Jesus ruíram aos pés da cruz. O Messias poderoso, capaz de derrotar os opressores, de restaurar o grandioso reino de David (“esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel”) e de distribuir despojos e atribuir honras aos colaboradores diretos foi um rotundo fracasso. Em vez de triunfar, deixou-Se crucificar; e a sua morte é facto consumado, pois “é já o terceiro dia depois que isto aconteceu” (o terceiro dia após a morte é o dia da morte definitiva, do não regresso do túmulo). Abandonam a comunidade, que já não faz qualquer sentido, e regressam à sua aldeia, dispostos a esquecer o sonho e a retomar uma vida dura e sem esperança. A discussão, entre eles a propósito de “tudo o que tinha acontecido”, é a partilha solidária dos sonhos desfeitos que torna menos doloroso o desencanto.

Entretanto, surge uma nova personagem: Jesus (que eles não identificam). Ele, tornando-Se companheiro de viagem destes discípulos em caminhada, interroga-os sobre “o que se passou nestes dias”, escuta as suas preocupações e torna-se o confidente da sua frustração. Os dois homens contam a história do “mestre”, cuja proposta os seduziu, mas a versão que contam termina no túmulo: falta, na sua descrição, a fé no Senhor ressuscitado – ainda que saibam da tradição do túmulo vazio.

Para responder às inquietações dos discípulos e lhes mostrar que o projeto de Deus não passa por quadros de triunfo humano, mas pelo amor e pelo dom da vida, “começando por Moisés e passando pelos profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, o que lhe dizia respeito”. Estavam na liturgia da Palavra, enquanto caminhavam. De facto, é na escuta e na partilha da Palavra que o plano de Deus ganha sentido. Só pela Palavra de Deus – proclamada, explicada, meditada e acolhida –, os crentes podem perceber que o amor e o dom da vida não são fracasso, mas geram a vida nova. A escuta da Palavra de Deus dá a entender aos crentes a lógica de Deus. Os discípulos percebem, então, que “o messias tinha de sofrer tudo isso para entrar na glória”: a vida plena não está – segundo a lógica de Deus – no êxito humano, no trono, no poder, mas no serviço simples e humilde aos irmãos, no dom da vida por amor, na partilha total do que somos e temos com os irmãos que vão lado a lado connosco nos caminhos da vida.

Depois, Jesus, Cléofas e o outro discípulo chegam a Emaús. Os discípulos, embora continuem a não reconhecer Jesus, convidam-No a ficar com eles, porque se faz tarde. Ele, apesar de fazer sinal de continuar o caminho, aceita e senta-Se à mesa com eles. Enquanto comiam, Jesus “tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho”. Esta sequência de gestos relembra-lhes a cena da Última Ceia, em que Jesus instituiu a Eucaristia (e evocam a celebração eucarística da Igreja primitiva), e eles reconhecem-No. Porém, Ele partiu, pois o caminho da Igreja é para continuar. A comunidade caminha, para e restaura forças, mas continua a caminhar. É a comunidade peregrina que se alimenta da Palavra e do Pão da Vida e do Vinho da Salvação.    

Assim, Lucas ensina à sua comunidade que é possível encontrar Jesus vivo e ressuscitado – esse Jesus que por amor enfrentou a cruz, mas que continua a fazer-Se companheiro de caminhada dos homens nos caminhos da história – na celebração eucarística dominical: sempre que os irmãos se reúnem em nome de Jesus para “partir o pão”, Jesus está, vivo e atuante, no meio deles.

O último momento do episódio põe os discípulos a retomar o caminho, a regressar a Jerusalém e a anunciar aos irmãos que Jesus está vivo. Também hoje a celebração da Eucaristia impõe o regresso à vida quotidiana (“ide”) com a certeza de que Ele está vivo, nos acompanha sempre, e com a missão do testemunho e da caridade.

Quando Lucas escreve o seu Evangelho (década de 80), a comunidade cristã defrontava-se com dificuldades. Tinham decorrido cerca de 50 anos depois da morte de Jesus. A catequese dizia que Ele estava vivo; mas, no quotidiano de uma vida monótona e cheia de dificuldades, era difícil fazer essa experiência. As testemunhas oculares tinham desaparecido e os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição pareciam distantes e irreais.  

Por isso, a catequese lucana ensina como se pode encontrar Jesus ressuscitado, como se faz uma verdadeira experiência de encontro real com esse Jesus que a morte não venceu, porque não aparece Ele de forma gloriosa e não instaura um reino de glória e de poder, que nos faça triunfar definitivamente sobre os nossos adversários e detratores. E a mensagem de Lucas dirige-se a esses crentes que caminham pela vida desanimados e sem rumo, cujos sonhos parecem desfazer-se ao encontro da realidade monótona e difícil do dia a dia. Podemos ter devaneios de grandeza e sonhar com intervenções espetaculares e decisivas de Deus na história humana, mas esses não são os mecanismos de Deus. Não será numa intervenção desse tipo que encontraremos Jesus, mas Ele está vivo e caminha ao nosso lado nos caminhos do Mundo.

Podemos não O reconhecer, por os nossos corações estarem cheios de perspetivas erradas acerca do que Ele é, dos seus métodos e do que Ele quer. Todavia, Ele faz-Se nosso companheiro de viagem, caminha connosco passo a passo, alimenta a nossa caminhada com a esperança que brota da sua Palavra, faz-Se encontrar na partilha comunitária do pão (Eucaristia).

Nesta catequese fica eminente a ideia de que é na celebração comunitária da Eucaristia que os crentes fazem a experiência do encontro com Jesus ressuscitado. O relato lucano apresenta o esquema litúrgico da celebração eucarística: a liturgia da Palavra (explicação das Escrituras, que leva os discípulos a entenderem a lógica de Deus em relação a Jesus) e o partir do pão (que leva os discípulos a entrarem em comunhão com Jesus, recebendo d’Ele vida e reconhecendo-O nesses gestos, que são o “memorial” do dom da vida e da entrega aos homens).

E, depois de fazer a experiência do encontro com Cristo vivo e ressuscitado na celebração eucarística, cada crente é convidado a voltar à estrada, a dirigir-se ao encontro dos irmãos e a testemunhar que Jesus está vivo e presente na história e na caminhada dos homens. Com efeito, no sofrimento da Humanidade, assumido pelo filho de Deus, está latente a ressurreição.

O testemunho das mulheres – as apóstolas dos apóstolos – de que o túmulo estava vazio era credível. Porém, os discípulos estavam excessivamente perturbados e, só quando se sentam à mesa, partilham o pão com o forasteiro e este lho devolve com a bênção, se lhes abrem os olhos e reconhecem o Senhor. Mas é de valorizar que já os corações lhes ardiam por dentro, enquanto escutavam a explicação das Escrituras.

É, pois, a Eucaristia a presença do Ressuscitado no meio de nós. Contudo, reconhecido o Senhor, é preciso fazer como os discípulos de Emaús: correr para a comunidade, dar testemunho da experiência e escutar o testemunho da comunidade, pois a fé é pessoal, mas espelha-se e ganha novo vigor, quando se torna comunitária. “O Senhor ressuscitou e apareceu a Simão.” A fé assenta na nossa experiência de Jesus e no testemunho da Igreja, particularmente no de Pedro.   

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O trecho da primeira leitura (At 2,14.22-33) situa-nos na manhã do dia do Pentecostes, em Jerusalém. A comunidade cristã, transformada pelo Espírito, deixou a segurança do cenáculo e prepara-se para testemunhar Jesus, em Jerusalém e até aos confins do mundo.

Lucas põe na boca de Pedro – o porta-voz dos Doze – um discurso, que constitui um primeiro anúncio de Jesus (“kerigma”) aos habitantes da cidade e a todos os que lá se encontram para celebrar a festa judaica de “Shavu’ot” (“Pentecostes”, celebrado 50 dias após a Páscoa, em que se ofereciam a Deus os primeiros frutos da terra). Na época neotestamentária, celebrava a “aliança” e, sobretudo, o dom da Lei ao Povo de Deus, na montanha do Sinai. O discurso petrino sintetiza a pregação que a primitiva comunidade cristã fazia sobre Jesus.

Como nos outros discursos querigmáticos dos Atos (cf At 3,12-26; 4,8-12; 10,34-43; 13,16-41), há um núcleo central que procede do kérigma primitivo e o resume: súmula da atividade de Jesus, anúncio da sua morte e ressurreição e da salvação que daí brota. Mesmo que não reproduza exatamente a pregação de Pedro no Pentecostes, reproduz a fórmula do kérigma primitivo e a catequese que a comunidade cristã primitiva apresentava sobre Jesus.

São estes os dados fundamentais desta catequese: Jesus passou pelo mundo realizando gestos que testemunhavam a dinâmica de Deus e a sua proposta de salvação; a proposta de Jesus chocou com a recusa do Mundo e Ele foi morto na cruz; porém, Deus ressuscitou-O, mostrando que a vida gasta ao serviço de Deus não termina no fracasso, mas conduz à ressurreição, à vida plena. Pedro é aqui o porta-voz dessa comunidade que testemunhou a oferta de salvação e que recebeu de Jesus a missão de a anunciar aos homens de toda a terra.

Este primeiro anúncio é dirigido a judeus que conhecem as Escrituras e as promessas de Deus. Por isso, Lucas utiliza argumentos tirados da própria Escritura, para apresentar a catequese sobre Jesus. Em concreto, Lucas cita o salmo 16,8-11, atribuído aqui a David, um dos raros textos do Antigo Testamento (AT) que relevam a vitória da vida sobre a morte. O raciocínio do autor do discurso é: David falou do amigo de Javé que venceria a morte. Não era David, pois Ele morreu. Era o descendente de David que, segundo a promessa, herdaria o trono do seu pai e estabelecer um reino eterno. Era a esse rei, da descendência de David, que os judeus chamavam Messias ou Cristo (ungido), que alimentava a esperança de Israel e que era aguardado ansiosamente.

Assim, Jesus é esse que venceu a morte, é o filho de David, o herdeiro do trono ideal de David, o Messias que Israel esperava. Este é o testemunho da comunidade cristã sobre Jesus, o Messias, enviado ao mundo para instaurar um Reino de justiça, de abundância, de paz. A vitória de Jesus sobre a morte e a sua exaltação atestam que Ele é o Messias, enviado por Deus para salvar os homens. E os cristãos são as suas testemunhas perante todo o Mundo. Por agora, o testemunho é dado em Jerusalém, mas Lucas descreve, ao longo do livro dos Atos, a forma como o anúncio sobre Jesus vai conquistando o mundo, até atingir o coração do império.

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O trecho da 1.ª Carta de Pedro (1Pe 1,17-21), proclamado como 2.ª leitura, insere-se na mensagem petrina a comunidades do meio rural, pobres e vulneráveis, em contexto de hostilidade, que se manifesta cada vez mais contra os cristãos. As violentas perseguições de Domiciano (traduzidas em massacres, torturas e sofrimentos indizíveis) estão no horizonte próximo (década de 90).

Neste sentido, a Carta exorta os crentes à fidelidade, olhando para Cristo, que passou pela paixão e pela cruz, antes de chegar à ressurreição, mantendo a esperança, o amor, a solidariedade, e vivendo, com alegria, coragem, coerência e fidelidade, a opção cristã. E o trecho em referência constitui uma exortação a viver na santidade (“vivei no temor”: o “temor” define, no AT, a obediência, a confiança, a entrega a Deus a Deus) “durante o tempo de exílio neste mundo”.

Para reforçar a exortação, o autor apresenta aos crentes a razão por que são convidados a viver na santidade: Deus pagou alto preço para os resgatar do antigo modo de viver, preço que não foi pago com ouro ou com prata, mas com o sangue precioso de Cristo, vertido na cruz. Neste contexto, é utilizado o verbo “lytróô” (“resgatar”). É um verbo usado no Grego para designar a libertação da pessoa (nomeadamente um escravo), mediante o pagamento de certa quantia. No entanto, no AT, o verbo é usado para designar a libertação levada a cabo por Javé, em favor do Povo – do cativeiro egípcio, do exílio babilónico ou do pecado.

Em algumas passagens, assume o sentido de “adquirir”, implícito na ideia de redenção: Javé resgata Israel para ele passar a ser o Povo de Deus. Contudo, dizer que Deus “resgata”, não acentua a ideia de pagamento (Deus não paga nenhuma quantia para resgatar o Povo), mas põe o acento na libertação: Deus, no seu amor, liberta Israel da escravidão e do pecado e faz dele um Povo consagrado ao seu serviço. Aliás, a tipologia do Êxodo/libertação está bem vincada na referência ao “cordeiro sem defeito e sem mancha”: qualidades do cordeiro pascal, o da noite gloriosa da libertação da escravidão do Egito.

A questão é: Deus amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o próprio Filho (o cordeiro da libertação) com a salvação para o Povo de Deus. O egoísmo não acolheu a salvação e matou Jesus. Esse foi o preço do amor de Deus e da sua vontade de nos dar a vida. Mas a morte de Jesus não foi em vão: da sua fidelidade à missão do Pai, do dom da sua vida, nasceu uma comunidade de homens novos, que acolhem a Jesus e que caminham ao encontro da vida.

Por isso, a comunidade dos crentes – e cada crente por si, com a comunidade e com Deus – é convidada a contemplar o plano de salvação que Deus concretiza em favor do homem e que leva o Filho de Deus a morrer na cruz. Contemplando o amor de Deus e a sua vontade salvífica, aceitamos renascer para uma vida nova e santa. Dessa forma, nascerá um Povo novo, consagrado ao serviço de Deus e que se alimenta, na sua peregrinação terrestre e missionária, com a celebração eucarística, que vive da partilha da Palavra e do Pão – palavra e pão que alimentam o viandante, cimentam a comunidade e tornam missionária toda a Igreja. E esta realiza-se crescendo e aparecendo, ou seja, alimentando-se de Cristo e testemunhando-O.

2023.04.23 – Louro de Carvalho

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