quinta-feira, 13 de abril de 2023

Igreja manchada pelo Mundo, mas que, por vocação, não é do Mundo

 

A 6 de abril, o Expresso publicou um texto de Ascenso Simões subordinado ao título “Que Igreja encontrará Francisco?” Começa o articulista por fazer uma resenha da vida e dos costumes de muitos membros do clero que, em tempos idos, infringiam a lei do celibato, sem qualquer tentativa de ocultação, o que me parece um apontamento realista.

E anota: “A igreja era o único sítio onde as classes se aproximavam, mesmo que os mais importantes estivessem à frente, sentados, e os outros nos fundos, de pé. O Bispo e o Vigário Geral tinham mais poder que o Governador Civil ou o Presidente de Câmara, recebiam imunidade pela via temporal e intemporal. Padres, muitos, tinham filhos e famílias, mas tudo se mantinha numa espécie de jogo de sombras.” Já não concordo que foi “neste Portugal, de pobreza e trabalho no campo, que uma parte significativa dos atuais bispos portugueses nasceu e cresceu”.

É verdade, por ser um de muitos casos, o que refere sobre algo do romance queirosiano: “Eça de Queiroz criou, em 1875, o retrato do que foi sendo a Igreja Católica até há bem pouco tempo. Amélia apaixona-se por Amaro, encontram-se às escondidas e desse romance advém uma gravidez. Amélia morre e o padre “dá às de vila Diogo.”

Já não parece que aquilo que Vergílio Ferreira diz, em 1954, de António Santos Lopes e da “forma como o seminário o moldou, o seviciou, o trucidou na sua personalidade”, seja fenómeno alastrado e, sobretudo, exclusivo de seminários e colégios católicos. Nos outros colégios e até nas escolas públicas (as gentes, sobretudo de vila e de aldeia, que o digam!), a técnica corretiva e mesmo orientadora da aprendizagem do currículo fixo era a cana, a bofetada e a palmatória, apesar de proibidas. Formei-me em seminários diocesanos, vi exageros pedagógicos condenáveis, mas não me sinto marcado por eles, muito menos em “manhã submersa”. E presto homenagem a professores que estiveram à frente do tempo, muitos dos quais de saudosa memória.  

E, se é possível que bispos do antigamente se tenham formado no universo eclesiástico de Eça e no particularizado e caricaturado por Vergílio Ferreira, não aceito que nele se tenham formado enquanto pastores da Igreja “muitos dos atuais bispos”. Muito menos ligo o comportamento da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), após o conhecimento público do relatório que a Comissão Independente (CI) elaborou, a seu pedido e expensas.

Sobre as posições da CEP, devo tecer alguns considerandos. Foi a CEP que, verificando que as comissões diocesanas não constituíam espaço suficiente de denúncia, mercê da falta de quadros em dioceses de pequena dimensão populacional e/ou geográfica, decidiu criar a CI.

Houve bispos que fizeram declarações infelizes sobre a existência das comissões diocesanas (mas que as criaram, instados pelo Papa), sobre o volume dos casos de abuso de menores por parte de clérigos, sobre a índole pública destes crimes e sobre a não obrigação de denúncia. Porém, já todas as dioceses tinham aberto a porta a denúncias por várias vias.

Porém, a CI e o seu relatório também merecem alguns reparos.    

Considero o relatório CI, que li na íntegra (486 páginas), um ótimo instrumento de trabalho e de reflexão, mas os elementos da CI esqueceram-se de que, a par da triagem correta da realidade, as conclusões saíram por extrapolação. E fizeram, indevidamente, dele uma bíblia.

Elaborado o relatório, deviam ter feito duas coisas: concertar com a CEP a sua apresentação pública, de forma comedida, dando conta ao público do trabalho feito e em que usasse da palavra alguém em nome da CI e alguém em nome da CEP; e entregá-lo à CEP, que o encomendou e o pagou. Ao invés, a CI, que já se tinha avistado com o Presidente da República, no início do trabalho, avistou-se com o chefe de Estado para lhe entregar um exemplar do relatório. Quer dizer, a comissão é independente da Igreja Católica, mas não do topo do poder político.

Por outro lado, membros da CI, que trabalharam com proficiência, detalharam em demasia a apresentação pública do relatório e arvoraram-se em juízes da sua execução pelos bispos.

Esqueceram que o seu trabalho chegara ao fim e que fora acolhida a sugestão da criação de um novo grupo de trabalho para dar continuidade à ação que iniciaram em boa hora. Ao invés, começaram a responder ao que julgavam as declarações desviantes e incompassivas dos bispos.

Assim, alguém da CI disse que deviam ser indemnizadas as vítimas. quando os abusos tenham ocorrido em seminários e colégios da Igreja, mas alguém também da CI disse, tout curt, que a Igreja deve indemnizar as vítimas. Isto parece responder à declaração do Patriarca de que falar de indemnização era um insulto às vítimas, que não a tinham pedido.

Outro elemento da CI disse que a experiência psiquiátrica mostra que os abusadores sexuais de menores são irrecuperáveis. Isto contradiz o avanço da ciência em terapia (os fármacos não resolvem) e a linha positiva da recuperabilidade dos condenados, que obsta à prisão perpétua ou por tempo indefinido. Isto, sem falar da fé na possibilidade de conversão e do perdão.                   

Não estamos, pois, ante “uma espécie de recalcamento”, com “o chegar de notícias sobre os abusos” que faça cada um dos bispos “regressar ao tempo da infância e do seminário”, numa “revisitação que os obriga a fecharem-se em si e nos seus mistérios”.

A meu ver, a CEP devia, antes da sua assembleia plenária, ter estudado ou mandado estudar o relatório e aplicar as instruções do vade mecum papal e não se ter ficado pelas meias tintas. Porém, exigir dos bispos indemnização tout court às vítimas, sem que estas sejam conhecidas, sem que estas o solicitem e sem assacar aos prevaricadores a respetiva responsabilidade criminal e civil, a não ser no caso de abusadores falecidos, é enormidade justiceira. Primeiro, os prevaricadores devem ser instados a assumir os seus crimes e a arrostar com as consequências; depois, em caso de ausência ou de incapacidade comprovada, devem as instâncias eclesiais, de forma supletiva, obviar às necessidades das vítimas, pois estas, na maior parte dos casos, estavam em estruturas e/ou em atividades que mereciam a confiança dos pais e da sociedade.      

Por outro lado, há que deslindar as denúncias de casos reais das viperinas, caluniosas e oportunistas, evitando a mercantilização do crime. E, para assumirem as suas responsabilidades, os suspeitos têm de conhecer as pessoas que foram sujeitas aos seus crimes. Por outro lado, o pagamento de tratamento, sob apresentação de fatura, sugerido pelo presidente da CEP, é bizarro e incompassivo.

Já os casos de encobrimento devem ser tratados com cuidado. Quem é inocente de encobrimento de crimes atire a primeira pedra! Há afetos inexplicáveis, há cautelas indevidas. Porém, uma denúncia precipitada pode estragar tudo. E o encobrimento era o tom corrente na família, no grupo, na sociedade.

Depois, os suspeitos têm direito à defesa, ao recurso e ao bom nome, pelo menos até serem condenados em sentença transitada em julgado. E, mesmo punidos, merecem o perdão de Deus.

Apesar das falhas declarativas de alguns bispos, parece emergir uma onda de hostilização à Igreja (Não queria ir por aí). Com efeito, cada bispo atua na sua diocese, não é a CEP, embora possa dar orientações. E cada bispo, para agir em relação aos padres, tem de saber, em concreto, que atos estão em causa, baseado em indícios suficientes. Tais indícios devem ser fornecidos pela CI, por outras comissões ou pela investigação que o bispo desencadeie. Porém, é mau partir do princípio de que todos os bispos participaram na elaboração do relatório e conhecem os detalhes dos suspeitos que lhes foram indicados em lista nominal.

Os grandes argumentos dos bispos assentam num entendimento muito próprio do Direito Canónico, segundo o qual “estavam impedidos de comunicar às autoridades civis os crimes que nos seminários, nas igrejas e em instituições de acolhimento iam acontecendo”, e no facto de o fenómeno não ser exclusivo da Igreja, o que é verdade, mas não lhes dá razão

Ora, o Direito Canónico não pode ser invocado para o encobrimento. Só a onda de desconfiança que o clero possa vir a nutrir pelo seu bispo, em quem se deve confiar. Com efeito, a Concordata de 1940 e a de 2004 não autorizam a Igreja portuguesa autorizada a fechar-se nos seus muros. Ao invés, segundo o art.º 12.º da Concordata de 1940 (retomado no art.º 5.º da de 2004), “os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham conhecimento por motivo do sagrado ministério”. Mas isso não habilita ao absurdo e à desumanidade. Assim, os abusos, a pedofilia, a negação de personalidade, práticas que hoje conhecemos, não estão ao abrigo do “ministério” referido.

Desde o Concílio Vaticano II, a Igreja tem bem determinado o campo teleológico do exercício eclesiástico. Porém, não se podem julgar os atos do passado, que são criminosos, pelos critérios de justiça de hoje. Isso não acontece em nenhuma área do Direito. Investigar os factos de 70 anos é útil para perceber a dimensão do grave flagelo, não para punir segundo as leis atuais.

Em todo o caso, a Igreja Católica deve sentir a vergonha pelos atos criminosos cometidos no seu seio, dos quais deve claramente pedir perdão e oferecer todo o apoio às vítimas. Porém, não deve envergonhar-se de ser Igreja e da sua missão, devendo continuar o seu testemunho mobilizador, discreto ou público, respirando com humildade, mas com ousadia. E deve relevar e valorizar toda a ação espiritual e social que vem desenvolvendo, bem como apresentar os seus missionários, catequistas, pastores e outros agentes do apostolado e ter orgulho neles.  

Importa saber que Igreja temos em Portugal sempre e não só na Jornada Mundial da Juventude em agosto. Precisamos de uma Igreja ativa, empenhada e sinodal, que não se desculpe com os males da sociedade, mas que os denuncie, estejam eles onde estiverem. É lícito que alguns abandonem a fé católica, escandalizados. Porém, é de questionar se a fé antes professada era genuína. E a debandada de uns deve fazer meditar os outros e reforçar-lhes o dom da fé.

Não atribuo as razões de eventual ineficácia dos bispos aos Núncios Apostólicos, que não são os únicos responsáveis pela nomeação dos bispos. Nem as escolhas recaíram sobre funcionários menores, como não há motivo para endeusar os bispos de algumas dioceses e anatematizar os de outras, ou considerar que alguns “são uma inexistência pastoral e uma total nulidade na influência cultural e teológica”. Devemos pedir-lhes uma verdadeira atitude missionária nas suas dioceses, sem excluir a “aceitação de trabalho em África, na Ásia ou na América Central”.

Tão legítimo é um padre aceitar a ascensão ao episcopado como declinar o convite.

Concordo que a nomeação de D. Delfim Gomes como auxiliar do Primaz das Espanhas agrada a D. José Cordeiro, mas teria feito todo o sentido “a sua elevação na diocese de onde provém e onde seria figura relevante nos múnus social e pastoral”. Não suspiro por clérigos que não ascenderam ao episcopado, apesar de serem “figuras centrais de movimentos relevantíssimos da Igreja em Portugal”. Poderíamos vir a perder grandes líderes de movimentos e ganhar fracos bispos. E não me pronuncio sobre quem deve ser o bispo da diocese A ou da diocese B.

Recuso qualquer profecia de debilidade da Igreja por falta de sacerdotes: a Igreja, embora precise de padres, não vive principalmente deles, mas do empenho dos batizados, que falta.

Deve reivindicar-se uma Igreja missionária dentro do território português, próxima de cada idoso, de cada pobre, de cada marginalizado, mas sem mundanidade, pondo-se todos na via da santidade.

Os cristãos seguem o Messias, que morreu na cruz para nos salvar e que fala a cada um dos nossos corações. É certo que Jesus Cristo não precisa de intermediários, mas a sua missão messiânica, não prescinde deles. Ele os escolhe, forma e envia, para a Igreja pecadora, mas indefetível.

2023.04.14 – Louro de Carvalho

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