sábado, 29 de abril de 2023

Ouvimos demasiado a voz das armas e pouco as vozes do diálogo

 

A Câmara Municipal de Mafra e o Instituto para a Promoção da América Latina e Caraíbas (IPDAL) organizaram, para os dias 27 e 28 de abril, o III “Mafra Dialogues – Diálogo Inter-religioso e Paz Global”, que reuniu, no Palácio Nacional de Mafra, influentes personalidades e organizações mundiais, para debate das ameaças à paz e à segurança internacional.

Face à emergência de novos desafios globais, surge a necessidade da elaboração de um roteiro de propostas que mantenham a humanidade no caminho da procura partilhada de soluções pacíficas.

No programa, destacam-se dois painéis – Desafios à Paz Global: Europa e Indo-Pacífico” e Diálogo Inter-religioso”; a mensagem especial da Santa Sé, através de videomensagem do arcebispo Monsenhor Paul Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, da Santa Sé; e as palestras do cardeal Dieudonné Nzapalainga, perito do Centro Internacional Rei Abdullah bin Abdulaziz para o Diálogo Inter-religioso e Intercultural (KAICIID, na sigla inglesa) e Bispo de Bangui, e de José Ramos-Horta, Presidente da República de Timor-Leste.

Merece, ainda, destaque a presença de Paulo Neves, presidente do IPDAL, de Hélder Sousa Silva, presidente da Câmara Municipal de Mafra – a entidade anfitriã –, de Irene Fellin, Special Representative for Women, Peace and Security, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), e de José Múcio, ministro de Estado da Defesa do Brasil, que intervieram na sessão de abertura; de Elizabeth Spehar, UN (United Nations) Assistant Secretary-General for Peacebuilding Support, que presidiu ao encerramento dos trabalhos, no dia 27; e de Helena Carreiras, ministra da Defesa Nacional de Portugal, que presidiu à sessão de encerramento.

No 1.º painel, participaram Susana Malcorra, copresidente do International Crisis Grou; Duarte Pacheco, presidente da União Interparlamentar; Jyun-yi Lee, Associate Research Fellow, do Institute for National Defense and Security Research (INDSR), Taiwan; Emilio Cassinello, diretor-geral do Centro Internacional de Toledo para a Paz; Serge Stroobants, diretor para a Europa do Institute for Economics and Peace; e Hanna Shelest, Security Studies Program Director, Ukranian Prism.

No 2.º painel, participaram Mónica Ferro, diretora do Escritório de Genebra, do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA); o embaixador Adelino Silva, diretor executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa; o rabino Daniel Goldman, copresidente do Instituto de Diálogo Inter-religioso (IDI) da Argentina; Agustin Nuñez, diretor-sénior do Programa de África, do KAICIID; e o Embaixador Arif Lalani, antigo Enviado Especial do Canadá para a Organização de Cooperação Islâmica (este participou online).

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O cardeal e arcebispo de Bangui, que tem desempenhado papel crucial na recuperação da paz no seu país, a República Centro-Africana (RCA) sustentou que, se queremos a paz na Ucrânia, precisamos de redirecionar as energias, que têm estado focadas apenas num eixo, o do armamento, e passar às linguagens do diálogo e da paz.

“Ouvimos demasiado a voz das armas, mas também há a voz do diálogo para a paz”, afirmou, na sua palestra, no dia 28, frisando que esse diálogo deve ser visto como “técnica de resolução de conflitos, que não se foca no resultado final, mas na transformação que ocorre durante o diálogo”. “Durante uma sessão de diálogo, em vez de nos focarmos em questões materiais, o foco deve estar nas emoções. É apenas porque se concentra na esfera emocional que o diálogo transforma as pessoas”, defendeu.

O cardeal exemplificou, praticamente, como as “emoções tiveram um papel fundamental” na resolução de crises na RCA. Em 2017, na cidade de Bangassou, a 750 km da capital Bangui, “os antiballakas, milícias que se dizem cristãs, preparavam-se para atacar o seminário menor da cidade, onde os muçulmanos se refugiavam. Estava o arcebispo em missão, naquela cidade, com Clarice Manehou, presidente da coordenação feminina da plataforma das denominações religiosas da RCA. Durante uma semana, dialogaram com os líderes dos antiballakas para os dissuadirem do projeto. Ao oitavo dia, Clarice Manehou ajoelhou-se diante do líder dos antiballakas, para lhe dizer, em lágrimas, que era uma mulher, mas, acima de tudo, uma mãe e que todos eles tinham nascido de uma mulher e que ela era como a mãe deles, pelo que os exortava a interromper aquele projeto desastroso. Após alguns momentos de silêncio, a emoção tomou conta do líder, que foi junto daquela mulher e lhe disse: “Mamã, ouvimos o teu recado”. No dia seguinte, não só desistiram do plano, como também depuseram as armas, o que “possibilitou o regresso dos muçulmanos à cidade”.

O cardeal Nzapalainga, que é um dos líderes da Plataforma Inter-religiosa da RCA, com o líder da Comunidade Islâmica e com o presidente da Aliança Evangélica do país, sustenta que experiências como esta podem ser transpostas para a realidade europeia. E sugeriu tentar unir a sociedade civil russa e ucraniana, em que muitas pessoas são contra a guerra; e mostrar, na televisão, exemplos dessas pessoas unidas, como famílias russas e ucranianas a rezar em conjunto. Na verdade, na ótica do cardeal e arcebispo, “há pessoas que estão inativas e que podem dar o seu contributo” para este diálogo.

A posição do arcebispo de Bangui, no seu muito aplaudido discurso, foi corroborada por Monsenhor Paul Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, da Santa Sé, que, numa mensagem em vídeo, abriu os trabalhos do segundo dia do encontro.

Paul Gallagher defendeu que a paz “não se baseia na dissuasão das armas”, mas exige um trabalho ao nível da educação. Ou seja, “a paz está também nas mãos de cada um de nós”.

“A paz é algo mais desejado do que procurado, – afirmou na sua mensagem – e esta é uma das razões pelas quais o Papa acredita que se está a viver uma terceira Guerra Mundial”, com 27 conflitos em curso em todo o Mundo e com os níveis de violência a aumentar.

Por isso, o chefe da diplomacia do Vaticano lançou um apelo: “Temos de fazer mais. A paz precisa de especialistas, mas está também nas mãos de cada um de nós”, adiantou, considerando que essa paz “não se baseia na dissuasão das armas”, mas exige um trabalho ao nível da educação.

“Esperar que um conflito comece, para procurar a paz, é recorrer a remédios, quando surge uma emergência”, disse, para vincar que “a paz deve ser procurada dia a dia”, fazendo de cada pessoa “um arauto da paz” e construindo “uma ordem segundo a justiça e a caridade”.

Quanto às religiões, destacou, “devem estar na linha da frente da promoção da paz”. Até porque, na sua perspetiva, “é inegável que a humanidade precisa da religião para alcançar uma paz duradoura, pois a religião é uma bússola que nos orienta para o bem e nos afasta do mal”.

“As religiões ajudam a discernir o bem e a pô-lo em prática”, referiu Paul Gallagher. E, se isso não acontece, é porque são, muitas vezes, “instrumentalizadas”, o que “nunca deveria acontecer”. E é por isso que o terrorismo, associado à acumulação de interpretações incorretas dos textos religiosos”, é “deplorável”, acentuou.

E, concluindo que é muito importante que os líderes religiosos sejam “verdadeiros homens de diálogo”, atuando como “mediadores”, disse o que é o mediador: “Aquele que não retém nada para si, mas que se gasta generosamente até se consumir, sabendo que o único ganho é a paz.”

O Papa Francisco é o melhor exemplo desse tipo de mediador, avançou o rabino Daniel Goldman, copresidente do IDI da Argentina, que se juntou ao evento por videoconferência. O rabino disse ter conhecido o então cardeal Jorge Bergoglio, quando este era arcebispo de Buenos Aires, e partilhou como foi importante que tivesse sido criado, com o seu impulso, o organismo a que preside atualmente.

“Bergoglio organizou a primeira visita de um arcebispo católico ao centro islâmico de Buenos Aires” e foi na sequência dessa visita, em que Daniel Goldmann também participou, que o diálogo inter-religioso assumiu um papel mais relevante na Argentina. “Ele, depois, transportou isso para o nível internacional” e “é esse o caminho”, defendeu o rabino.

Também o arcebispo de Bangui havia referido o Papa como um exemplo a seguir. “Desde 2013, o Papa Francisco enfatiza o diálogo e a cooperação inter-religiosa como forma de promover a paz e a harmonia entre as diferentes comunidades religiosas. Em particular, trabalhou para construir pontes entre a Igreja Católica e o Islão, reconhecendo a importância dessa relação no atual contexto global”, assinalou.

Dieudonné Nzapalainga recordou que, em 2014, Francisco organizou uma reunião de oração no Vaticano com o presidente israelita, Shimon Peres, e com o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, com o objetivo de promover a paz no Médio Oriente e que essa reunião incluiu orações de líderes judeus, muçulmanos e cristãos, tendo sido vista “como um símbolo de esperança e unidade”.

“Em 2019, – assinalou – fez uma visita histórica aos Emirados Árabes Unidos [EAU], onde conheceu o Grande Imã de Al-Azhar, xeque Ahmed el-Tayeb, uma das figuras mais importantes do Islão sunita”. Foi durante esta visita que ambos assinaram o “Documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial e Coexistência Comum”, que apelava precisamente a uma maior cooperação e compreensão inter-religiosa.

A chave está, pois, em fazer como Francisco: “reconhecer o outro como dom de Deus” e identificar os nossos “denominadores comuns” – concluiu o rabino Daniel Goldman. Estas são as tarefas “indispensáveis para alcançar a paz”.

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É necessário que estas iniciativas se multipliquem e levem os decisores internacionais a pensar mais na paz e menos nos nas vindictas, nos interesses territoriais parcelares e nos negócios dos equipamentos bélicos – sejam estes os das armas, os das munições, os dos mísseis e das bombas, os dos veículos, os dos drones e dos robôs ou os dos computadores.

É preciso ouvir e seguir a vozes do diálogo e das pontes. A paz acima de tudo!

2023.04.29 – Louro de Carvalho

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