segunda-feira, 10 de abril de 2023

T(r)apalhada da nossa companhia aérea invadiu a arena política

 

Christine Ourmières-Widener presidente da Comissão Executiva (ou CEO) da transportadora aérea de Portugal (TAP), no seu depoimento à comissão parlamentar de inquérito (CPI), ajustou contas com o poder político, o que mostra um tardio ressabiamento da famigerada gestora sénior, que tinha, em meu entender, motivos suficientes para o fazer enquanto estava na plenitude das suas funções, nomeadamente as eventuais pressões de membros do governo na gestão da TAP, que estava sob processo de saneamento financeiro, acordado com a Comissão Europeia. 

Reiterou a acusação de desalinhamento da parte de Alexandra Reis (que acusou a CEO de ter recrutado uma amiga e que declarou ter impedido um contrato com o marido da mesma CEO) em relação ao plano de reestruturação, como a CEO o entendia, e deu uma no cravo, outra na ferradura, em relação ao diretor financeiro (ou CFO), dizendo que ele sabia de todo o processo de indemnização de Alexandra Reis, mas não se lembrando se conhecia o montante da indemnização.

Porém, o que fez soar as campainhas do escândalo político foram as polémicas denúncias de um pedido, de que há registo, do ex-secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Santos Mendes, no sentido de ser alterado um voo da TAP em favor do Presidente da República (PR), aduzindo que o chefe de Estado, que é “o nosso maior aliado” (aliado do Governo), poderia ficar zangado, o que se poderia tornar num pesadelo, bem como o facto de ter sido solicitada a sua participação, como CEO da TAP, antes de ser ouvida no Parlamento, pela primeira vez, numa reunião do grupo parlamentar do Partido Socialista (PS), em que participaram assessores e especialistas do gabinete do ministro das Infraestruturas, João Galamba. Ora, se o primeiro caso significava interferência governamental e partidária na gestão da empresa pública, o segundo levantava a suspeita de os políticos do PS, partido do Governo, poderem revelar algumas das perguntas com que a CEO seria confrontada e a de lhe darem indicações de resposta.

Também ficou a saber-se que Hugo Mendes, que sabia da indemnização a Alexandra Reis e a autorizou, com Pedro Nuno Santos, ex-ministro das Infraestruturas, redigiu um despacho a pedir explicações à TAP e terá orientado a resposta da empresa pública.

Entretanto, o ministro das Infraestruturas, João Galamba referiu, em comunicado que foi a CEO da TAP a pedir a participação na reunião do grupo parlamentar do PS, o que ele não autorizou nem tinha de autorizar, pois, segundo o Regimento da Assembleia da República (AR), as reuniões dos grupos parlamentares, que são autónomos, são públicas e visam a produção de comunicação.       

Luís Marques Mendes, no seu comentário dominical na SIC, sem contraditório, dizia que os episódios da TAP revelam “o grau zero da política”, esperando que o primeiro-ministro se demarcasse da situação, pois está em causa a sua liderança, e que o presidente do Parlamento esclarecesse o que se passou com a dita reunião do grupo parlamentar do PS, achando estranho que a CEO da TAP conhecesse o calendário e a agenda da reunião (esquece que isso não é impossível). Por outro lado, mostrou-se convicto de que o PR iria abordar o tema e disse, que, numa situação normal, o Parlamento seria dissolvido, o que, em seu entender, não deverá acontecer, pois estamos com uma inflação sem precedentes, nos últimos anos, com a guerra e com a crise económica e social, a que não é conveniente juntar uma crise política.

Entretanto, o primeiro-ministro, em resposta a uma interpelação da agência Lusa antes de partir para uma visita de dois dias à Coreia do Sul, considerou gravíssimo o email que o ex-secretário de Estado, Hugo Mendes, enviou à presidente executiva da TAP sobre o chefe de Estado e afirma que teria obrigado à sua demissão na hora. “Como ainda não parti, respondo a essa questão de política interna. Cada instituição tem o seu tempo e este é o tempo da Assembleia da República apurar a verdade, toda a verdade, como tenho dito, doa a quem doer”, declarou.

António Costa referiu que “não conhecia” esse email e que, “se tivesse conhecido, teria obrigado o ministro [das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos] a demiti-lo, na hora”. Com efeito, como vincou, “é gravíssimo do ponto de vista da relação institucional com o Presidente da República e inadmissível no relacionamento que o Governo deve manter com as empresas públicas”.

Neste ponto, ainda em resposta à Lusa, sustentou que a atuação de Hugo Mendes não corresponde, “de forma alguma”, ao padrão de relacionamento do seu executivo com as empresas públicas: “Não confundo a natureza pública com gestão política. O acionista define orientações estratégicas e avalia a gestão na apreciação das contas. Não pode interferir na gestão corrente da empresa.”

Questionado sobre o seu relacionamento institucional com a administração cessante da TAP, o disse que só se reuniu uma vez com a presidente da comissão executiva, para esta lhe apresentar o plano de reestruturação da transportadora aérea nacional.

Por seu turno, o PR classificou, a 10 de abril, como uma ideia simultaneamente “estúpida e egoísta” o pedido de alteração do voo em março de 2022, que teria como passageiro o Chefe de Estado: “Nunca me passou pela cabeça essa ideia, que seria simultaneamente estúpida e egoísta. Estúpida, porque só um político muito estúpido ia sacrificar 200 pessoas por causa de partir um dia mais cedo ou um dia mais tarde numa visita que se reajusta facilmente.” E acrescentou que seria uma ideia egoísta e que, por isso, a Presidência da República “nunca contactou ninguém sobre isso”.

Além disso, frisou que, tendo sido colocada a questão ao Chefe da Casa Civil, a 11 de fevereiro do ano passado, foi explicado “que era um disparate”.

Já no passado dia 5 de abril, o PR fez saber: “A Presidência da República nunca contactou a TAP, nem nenhum membro do Governo sobre tal assunto. A Presidência da República nunca solicitou a alteração do voo da TAP, se tal aconteceu, terá sido por iniciativa da agência de viagens.”

Entretanto, fez saber que não está no seu horizonte a dissolução da AR, em bora não descarte esse poder presidencial. Na verdade, a crise sobrepõe-se às questões partidárias. Além disso, as sondagens dizem que o Governo não governa satisfatoriamente, mas não apontam alternativa.   

Também o presidente da AR, Augusto Santos Silva, defendeu que personalidades de perfil mais técnico, como é o caso da presidente cessante da TAP, não devem participar em reuniões de natureza política.

Santos Silva respondia aos jornalistas, em Tábua, sobre o caso de Christine Ourmières-Widener ter-se reunido a 17 de janeiro com deputados socialistas e elementos do Governo, na véspera de ser ouvida no Parlamento. “Os grupos parlamentares que apoiam um Governo e esse Governo podem e devem ter reuniões periódicas, ao nível político adequado, mas essas reuniões não devem envolver outras personalidades que, pelo seu perfil mais técnico ou pelas responsabilidades que têm – seja à frente da administração direta do Estado, seja à frente da administração indireta ou à frente do setor empresarial do Estado.” “É um episódio que julgo que não se repetirá, porque todos nós vamos aprendendo”, afirmou Santos Silva sobre a predita reunião.

Vincando que, pessoalmente, não concorda “com reuniões que misturam natureza técnica e natureza política”, salvaguardou a autonomia dos grupos parlamentares: “No que diz respeito ao parlamento, os grupos parlamentares são livres de fazerem as reuniões que entenderem e com quem entenderem e de se prepararem para as atividades parlamentares, recolhendo informação e até os pareceres que entenderem que lhes forem úteis.” No entanto, em declarações aos jornalistas, deixou uma recomendação aos grupos parlamentares: “que se distinga bem o que é o caráter político e o caráter técnico”. E frisou: “Nas reuniões de natureza política, devem participar pessoas investidas em funções políticas, como os membros do Governo ou os deputados.”

O presidente da AR abordou ainda as comunicações entre a presidente da TAP e o então secretário de Estado das Infraestruturas: “É também muito importante para que o Estado português continue a reforçar-se e sejam preservadas sempre as relações institucionais. Um nível de informalidade como se as pessoas se conhecessem e tratassem pelo nome – mesmo que aconteça –, não deve ser misturado com a natureza de uma relação institucional.

Para Santos Silva, um membro do Governo que tutele uma empresa pública ou uma direção-geral deve “assumir uma natureza institucional” nas suas comunicações e nos contactos com essa instituição, que está sob a superintendência da tutela que lidera.

Por fim, é de referir que, uma semana depois das revelações feitas na CPI da TAP, o presidente do PS, Carlos César, veio criticar a “conduta perniciosa” de ex-secretário de Estado “sem juízo”, mas saiu em defesa do ex-ministro Pedro Nuno Santos, associado aos lucros da companhia aérea. Desafia o PR a cortar com agência de viagens que terá metido “cunha” à TAP. E lembra que o Governo tem tantos votos quanto o Presidente (“quase tantos”, diria eu).

Hugo Mendes teve uma “conduta estúpida e perniciosa”, mas Pedro Nuno Santos tem mérito nos bons resultados da TAP. E o Governo tem uma maioria absoluta que só deve ser julgada no fim da legislatura – foi assim que o presidente do PS fez, nas redes sociais, o ponto de situação política sobre a TAP e as revelações já feitas na CPI. E, como muitas vezes tem acontecido, quando há polémica que envolva o chefe de Estado, foi o presidente do partido que lhe deixou recados e, desta vez, para tentar dissipar as sombras da dissolução parlamentar.

O dirigente do PS distingue entre Santana Lopes, que logrou a dissolução da AR, e a atual situação, frisando que Santana Lopes era primeiro-ministro por procuração e não pela legitimidade de eleição (eu discordo), quando o PS obteve, há pouco mais de um ano, a maioria absoluta, ganhando legitimidade igual à do Presidente da República. Depois, observou que “vivemos um período especialmente sensível nos planos nacional, europeu e internacional, quer nos perigos quer nos desafios”, importando, como reconheceu o PR, o bom governo de Portugal e que as oposições sejam bem melhores do que são. Por outro lado, recordou que os resultados desta governação com apoio parlamentar devem ser avaliados pelo povo no tempo próprio, o termo da legislatura e que “só se conhecem e debatem casos que suscitam dúvidas ou críticas, porque as instituições estão a funcionar regularmente e a democracia [está] no seu adequado exercício”.

***

Tudo certo, do ponto de vista racional. Todavia, em política, a racionalidade não basta. Há as ideologias, os interesses, as ambições, as verbas da Europa. Por isso, afigura-se-me que t(r)apalhada da TAP continuará por mais uns meses e ajude a contaminar o devir político do país, como grande aliada de outros escolhos da governação. E não creio como pode Pedro Nuno Santos ficar associado a lucros da TAP milagrosamente conhecidos despois da exoneração da CEO.

Parece que o Ministério Público vai investigar o percurso da TAP nos últimos seis anos. Se é certo que os ilícitos de gestão danosa têm prazo curto para a prescrição, seria útil, do ponto de vista político, haver conhecimento público dos desmandos ocorridos na empresa de bandeira nos últimos 50 anos. Adorava saber. O caso de Alexandra Reis não passa da ponta do icebergue.

2023.04.10 – Louro de Carvalho

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