sábado, 8 de abril de 2023

“Vozes de Paz num Mundo de Guerra”

 

Foi o tema da Via-Sacra no Coliseu de Roma, na noite de Sexta-Feira Santa de 2023, em que territórios feridos pela guerra tiveram vez e voz públicas mundiais.

As meditações das 14 estações desta Via-Sacra – a que o Papa Francisco não presidiu, em virtude do frio intenso que se fazia sentir naquela noite, mas que acompanhou a partir dos seus aposentos, em Santa Marta – são testemunhos de homens e de mulheres de várias regiões do Mundo que sofrem violência, pobreza e injustiça, que o Papa ouviu, durante as suas viagens apostólicas e em outras ocasiões, e que foram editadas por alguns Dicastérios da Cúria Romana.

Esses lancinantes testemunhos – de homens e de mulheres, de jovens e de idosos, de pais ou de consagrados – emergem de terras duramente assoladas por bombas, por tiros, por mísseis ou por ódio fratricida, que se transformaram em cenários de destruição, de mutilação e de morte, ocasionando medo, fuga, deserção e desespero.   

Francisco tinha o desejo de que o tema fosse “Vozes de paz num tempo de guerra”. A representar os diferentes pontos de violência no globo, foram escolhidas as principais regiões; e, no caso da Europa, foram mencionados o povo ucraniano e o povo russo, que estão em explícito e violento conflito desde o ano passado, conflito que está constantemente no centro das atenções do Papa.

***

O caminho da Cruz começou a partir da Terra Santa, onde “a violência parece ser a nossa única linguagem”. Neste contexto, “carregado de ódio e rancor”, o apelo é à tomada de uma “decisão” de paz, impondo-se a oração: “Quando condenamos, sem apelo, os nossos irmãos”, “quando fechamos os olhos perante a injustiça, Ilumina-nos, Senhor Jesus.”

O testemunho de um migrante da África Ocidental emocionou, quando ele narrou a sua “via-sacra” marcada pela prisão e pela tortura, na Líbia, e pelas travessias marítimas, como a travessia num bote com 100 pessoas. “Todas as noites, perguntava a Deus porquê: porque é que homens como nós nos devem considerar inimigos?”. E a oração foi: De julgamentos precipitados, de murmurações destrutivas, Livra-nos, “Senhor Jesus”.

A meditação da estação em que Jesus cai pela primeira vez, foi realizada por jovens da América Central. Estes jovens também falam de quedas: preguiça, medo, desalento e promessas vazias duma vida fácil, mas desonesta, feita de ganância e corrupção. “Muitas famílias”, disseram eles, “continuam a chorar a perda dos filhos”. E rezaram: Pela nossa preguiça, tristeza, queda e por pensarmos que ajudar os outros não nos toca a nós, “Levanta-nos, Senhor Jesus!”

Da América do Sul, a voz de uma mãe, vítima da explosão de uma bomba de guerrilha, em 2012, e que ajuda, agora, a prevenir acidentes com minas, dá conta de que aquilo que a aterrorizou foi ver a sua filha de 7 meses de idade com pedaços de vidro cravados no rostinho. “Como deve ter sido [doloroso] para Maria ver o rosto de Jesus pisado e ensanguentado!”. E a oração, em maré de via-sacra de Semana Santa, é breve, mas urgente: “No rosto desfigurado de quem sofre: Concede-nos reconhecer-Te, Senhor Jesus!”

Três migrantes da África, do Sul da Ásia e do Oriente Médio entrelaçaram as suas histórias, diferentes, mas unidas por serem vítimas do ódio. O que foi “uma vez experimentado não se esquece”. Portanto, a oração tem de constituir um pedido de perdão de Deus, porque O desprezamos “nos desventurados” e O ignoramos “nos necessitados de ajuda”.

Um sacerdote deu voz à Península Balcânica. Um pároco foi deportado, em plena guerra, para um acampamento, sem comida e sem água. Ameaçaram arrancar-lhe as unhas, esfolá-lo vivo. Uma vez implorou a um guarda que o matasse, mas uma mulher muçulmana trouxe-lhe comida e ajuda. “Foi para mim como a Verónica para Jesus.” “Dá-nos o teu olhar, Senhor Jesus”, é a súplica, “para cuidar de quem sofre violência”, e “acolhe quem se arrepende do mal”.

Dois adolescentes do Norte da África, que vivem em campos de deslocados, querem estudar e brincar, mas não têm espaço nem oportunidade: “A paz é boa, a guerra é má. Gostariam de o dizer aos líderes do mundo.” “Na fadiga de construir pontes de fraternidade”, a oração deles é: “Fortalece-nos, Senhor Jesus.”

Os fiéis do Sudeste Asiático, de um povo que “ama a paz”, também falaram ao mundo: “Somos um povo que ama a paz, mas estamos esmagados pela cruz do conflito”. As mulheres dão força, como a freira que “se ajoelhou diante do poder com as armas em riste”. “De traficar armas sem escrúpulos de consciência”, rezam elas, “Converte-nos, Senhor Jesus!”

É também de uma religiosa, que ensina valores às crianças, a voz da África Central a relatar a terrível manhã de 5 de dezembro de 2013, quando os rebeldes invadiram a sua aldeia: “A minha irmã desapareceu e nunca mais voltou.” Ela gritava: “Porquê?” Mas de Deus ela tirou a força para amar: “Tudo passa, exceto Deus.” “Sara-nos”, reza a Deus, do medo de não ser “compreendida” e do medo de ser “esquecida”.

Na décima estação, as meditações foram feitas por um jovem ucraniano e por um jovem russo. O primeiro conta sua fuga de Mariupol para a Itália, com o pai detido na fronteira, e o seu retorno à Ucrânia. “Há guerra de todos os lados, a cidade está destruída”, vincou. O segundo recorda o seu irmão mais velho, que morreu, e o seu pai e avô, que desapareceram: “Todos nos diziam que tínhamos que nos orgulhar, mas, em casa, só havia muito sofrimento e tristeza.” Estes jovens pedem ao Senhor a purificação do “ressentimento” e do “rancor”, das “palavras” e das “reações violentas”.

O sofrimento também é compartilhado por um jovem do Oriente Médio, que tem vivido uma guerra que é cada dia mais “horrenda”, desde 2012. Fugiu com os pais: “um outro calvário”. “Cura-nos, Senhor Jesus”, da “incapacidade de dialogar”, do “isolamento”, da “deficiência” e da “suspeita”.

A mãe da Ásia Ocidental que perdeu o seu filho não abre mão da esperança. Viu o morrer o filho menor, sob uma casca de morteiro, juntamente com o primo e com a vizinha. Porém, diz: “A fé ajuda-me a ter esperança, porque me lembra que os mortos estão nos braços de Jesus”. Ela pede a Cristo: “Ensina-nos” a “perdoar, como Tu nos perdoaste”.

Uma religiosa da África Oriental revive a morte da irmã nas mãos dos terroristas, no dia em que o seu país celebra o Acordo para a Independência. “O dia da vitória transformou-se em derrota”, confessou. No entanto, como assegurou, “é Cristo a nossa verdadeira vitória”. “Tu que, morrendo, destruíste a morte: tem piedade de nós, Senhor Jesus!” – rezou.

Por fim, sobressaem as histórias das jovens da África Austral, sequestradas e abusadas pelos rebeldes: “Despidas de roupas e dignidade, vivíamos nuas, para que não escapássemos”, relataram. Tendo escapado, agora escrevem: “Em nome de Jesus, perdoamos-lhes por tudo o que nos fizeram.” E rezaram: “Guarda-nos, Senhor Jesus, no perdão que renova o coração.”

***

A Via-Sacra concluiu-se com uma oração de “14 obrigado” ao Senhor Jesus:

Pela mansidão que confunde a arrogância;

Pela coragem com que abraçaste a cruz;

Pela paz que jorra das tuas feridas;

Por nos teres dado a tua santa Mãe como nossa Mãe;

Pelo amor demonstrado diante da traição;

Por teres mudado as lágrimas em sorriso;

Por teres amado a todos sem excluir ninguém;

Pela esperança que infundes na hora da provação;

Pela misericórdia que sara as misérias;

Por Te teres despojado de tudo para nos enriquecer;

Por teres mudado a cruz em árvore da vida;

Pelo perdão que ofereceste aos teus assassinos;

Por teres derrotado a morte;

Pela luz que acendeste nas nossas noites e pela qual, reconciliando todas as divisões, nos tornaste a todos irmãos, filhos do mesmo Pai que está nos céus.

***

A Via-Sacra foi uma bela oportunidade de revisitar o sofrimento das pessoas e dos povos no orbe terrestre e constituiu um rico momento de oração pessoal e coletiva com a Bíblia (cada estação era enquadrada por uma citação bíblica), a tradição (as 14 estações são uma herança da tradição) e o jornal (o sofrimento, a esperança e o perdão foram notícia, crónica e reportagem).

Creio que, nesta fé meditante, nesta oração universal e na ação pela paz, se constrói um futuro melhor, por mais justiça e por mais bem-estar.

2023.04.08 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário