segunda-feira, 3 de abril de 2023

Entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e celebração da Paixão

 

A solenidade do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor comemora a entrada triunfal de Jesus na sua cidade de Jerusalém, a cidade dos homens que se afastou da vontade de Deus, e celebra, como os demais domingos, a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus.

Este domingo é o início da Semana Maior, aquela em que, de forma mais vincada se celebra a Paixão e tudo o que a ela diz respeito. O aspeto mais vistoso deste dia é a Festa dos Ramos com que se aclama Jesus, mas esta aclamação tem consigo a dor e o propósito da Paixão de Cristo pelas pessoas, pelo povo de Deus. Ao invés do que alguém dizia, hoje também se celebra a Paixão.

A liturgia deste domingo convida-nos a contemplar o Deus que, por amor, desceu ao nosso encontro, partilhou a nossa humanidade, Se fez servo dos homens e Se deixou imolar para vencer o pecado. A cruz, que a liturgia coloca no horizonte próximo de Jesus, apresenta-nos a lição suprema, o último passo do caminho de vida nova que, em Jesus, Deus oferece e propõe: a doação da vida por amor.

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A primeira leitura (Is 50,4-7), que é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”, prefigura o sofrimento do Senhor, que assumiu a condição de servo.

O autor do texto dá a palavra a uma personagem anónima, que fala do seu chamamento por Deus para a missão. Não se autointitula profeta, mas a narrativa da sua vocação veste-se dos elementos típicos dos relatos proféticos de vocação.

A missão que este profeta recebe de Deus tem a ver com o anúncio da Palavra. Com efeito, o profeta é o homem da Palavra e a proposta de redenção que Deus faz a todos os que necessitam de salvação/libertação ecoa na palavra profética. O profeta é modelado por Deus e não opõe resistência, nem ao chamamento, nem à Palavra que Deus lhe confia. Está na atitude de escuta de Deus, para apresentar, com fidelidade, a Palavra de Deus para os homens.

E a missão do profeta concretiza-se no sofrimento e na dor. O anúncio da proposta de Deus cria resistências que se consubstanciam, quase sempre, em dor e perseguição para o profeta. Porém, este não desiste, não se demite: a sua paixão pela Palavra supera o sofrimento.

Por fim, surge a expressão da viva confiança no Senhor, que não abandona aqueles que chama. A certeza de que o profeta não está só, mas de que tem a força de Deus, torna-o mais forte do que a dor, do que a perseguição, do que o insulto e o opróbrio. Por isso, “não será confundido”.

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O Evangelho (Mt 26,14 – 27,66), proclamado e meditado neste dia, é o relato da Paixão e Morte de Jesus. Porém, este evento salvífico tem de ser entendido no contexto do que foi a sua vida.

Ora a versão mateana do Evangelho de Jesus Cristo, não o Evangelho segundo Jesus Cristo, começa por apresentar Jesus (cf Mt 1,1-4,22). Descreve o anúncio central de Jesus: nas palavras e nos gestos, Jesus anuncia o mundo novo a que chama o Reino dos céus (cf Mt 4,23-9,35). Desse anúncio nasce a comunidade dos discípulos, que assimila a proposta de Jesus (cf Mt 9,36-12,50). Instruídos por Jesus, formados na mentalidade do Reino, os discípulos recebem a missão de o testemunhar, após a partida de Jesus (cf Mt 13,1-17,27). Na parte final do Evangelho, Mateus assinala a rutura de Jesus com o judaísmo (cf Mt 18,1-25,46) e o final da via terrena de Jesus: a paixão, a morte e a ressurreição (cf Mt 26,1-28,15) – dados constitutivos do mistério pascal.

O anúncio do Reino, colidindo com a mentalidade da opressão, leva Jesus à morte na cruz. Contudo, isto não é o fim. Não se pode dissociar o acontecimento da paixão dos que celebraremos no próximo domingo, pois a ressurreição é a prova de que Jesus veio de Deus e tinha um mandato do Pai para realizar, no mundo, o Reino dos céus.

Cedo Jesus Se apercebeu de que o Pai O chamava à missão de anunciar o mundo novo, de justiça, de paz e de amor para todos os homens. Para concretizar a missão, Jesus passou pelos caminhos da Palestina “fazendo o bem” e anunciando a proximidade do mundo novo, de vida, de liberdade, de paz e de amor. Ensinou que Deus é amor e que não exclui ninguém, nem mesmo os pecadores: os leprosos, os paralíticos, os surdos, os mudos e os cegos, não podem ser marginalizados, pois não são amaldiçoados por Deus; os publicanos e as prostitutas poderão superar, no Reino dos céus, os que se julgam justos; os pobres e os excluídos são os preferidos de Deus e os que têm um coração mais disponível para acolher o Reino; e os ricos, os poderosos, os instalados serão levados à morte pelo egoísmo, pelo orgulho, pela autossuficiência, pelo fechamento.

O projeto libertador de Jesus chocou, inevitavelmente, com a atmosfera de opressão que domina o Mundo. As autoridades políticas e religiosas, incomodadas com a denúncia de Jesus, não estão dispostas a renunciar aos mecanismos de poder e de privilégio; não estão dispostas a arriscar, a desinstalar-se e a aceitar a conversão. Por isso, prenderam-No, julgaram-No, condenaram-No e pregaram-No numa cruz.

A morte de Jesus é a consequência lógica do anúncio do Reino: resultou das tensões e resistências que a sua pregação provocou nos que dominavam o mundo. É o culminar da sua vida, a afirmação última, porém, a mais radical e genuína (porque selada no sangue) do que Jesus pregou com palavras e com gestos: o amor, o dom total, o serviço. Na cruz, aparece o Homem Novo, o protótipo do homem que ama radicalmente e que faz da vida um dom. Porque ama, assume a missão da luta contra o pecado, contra as causas do medo, da injustiça, do sofrimento, da exploração e da morte. E a cruz gera o dinamismo do mundo novo, do Reino.

Mas, para lá da reflexão holística sobre o sentido da paixão e morte de Jesus, convém anotar alguns dados exclusivos da versão mateana.

Mateus insiste na conexão dos acontecimentos com o cumprimento das Escrituras. E, quando não o refere explicitamente, liga os acontecimentos da paixão de Jesus com figuras e factos do Antigo Testamento (AT), para mostrar que a paixão e morte de Jesus fazem parte do projeto de Deus, previsto desde sempre. Na verdade, este evangelista, escrevendo para cristãos que vêm do judaísmo, faz referência a citações e promessas do AT – conhecidas de cor por todos os judeus – para demonstrar que Jesus é o Messias anunciado pelos profetas e cujo destino passa pela dádiva da vida.

Também Marcos e Lucas contam como, no Getsémani, quando Jesus foi preso, um dos do grupo de Jesus agrediu à espada um servo do sumo-sacerdote. Porém, só Mateus apresenta Jesus a condenar explicitamente o gesto, vincando que o projeto do Pai não passa pela violência, mas pelo amor e pelo dom da vida, pelo que os discípulos de Jesus não podem recorrer à violência, mesmo por uma causa justa. O Reino de Deus nunca passará por esquemas de violência, de imposição, de poder e de prepotência. No Reino, os fins nunca justificam os meios.

Só no Evangelho de Mateus aparece o relato da morte de Judas, para deixar clara a inocência de Jesus e a iniquidade do processo. A forma como Mateus vinca o desespero e o arrependimento de Judas deixa clara a inocência de Jesus, bem como o desnorte dos responsáveis pelo processo, empenhados em desresponsabilizar-se de um processo apoiado na falsidade e no atropelo às leis.

São exclusivos de Mateus o sonho da mulher de Pilatos e a lavagem das mãos por parte deste procurador romano. Estes pormenores aparecem com uma dupla finalidade: deixar claro que Jesus é inocente e que os próprios romanos o reconhecem; e sugerir que não foi o império romano, mas o judaísmo que rejeitou Jesus e o Reino. Os pagãos reconhecem a inocência de Jesus; mas o seu próprio Povo rejeita-O. A frase que, no contexto do julgamento, Mateus atribui ao Povo (“o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos”) deve ser entendida neste enquadramento. Assim, Mateus explica aos cristãos vindos do judaísmo porque é que o judaísmo, como conjunto, está fora do Reino: rejeitou Jesus e quis eliminar a sua proposta.

Também é exclusiva de Mateus a descrição dos factos que acompanharam a morte de Jesus: “o véu do Templo rasgou-se em duas partes, de alto a baixo; a terra tremeu e as rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos e muitos dos corpos de santos que tinham morrido ressuscitaram; e, saindo do sepulcro, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade e apareceram a muitos”. Com tais elementos, Mateus frisa a importância do momento. É o tipo de sinais que, segundo a tradição apocalítica, precederiam a manifestação de Deus, no fim dos tempos, e mostram que, apesar do aparente fracasso, Deus está ali, a manifestar-Se como o salvador e libertador do seu Povo.

E só Mateus narra o episódio da guarda do sepulcro. Provavelmente, fá-lo com uma finalidade apologética. Para os cristãos, o sepulcro vazio era a evidência de que Jesus ressuscitou, mas alguns judeus puseram a circular o rumor de que o corpo de Jesus fora roubado pelos discípulos. Mateus explica a origem do rumor e nega-o com veemência.

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A segunda leitura (Fl 2,6-11) apresenta-nos um hino cristológico pré-paulino.

Filipos, cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército, estava organizada ao modo de Roma e fora da jurisdição dos governantes provinciais, dependendo diretamente do imperador. Gozava, pois, dos privilégios das cidades de Itália. A comunidade cristã, fundada por Paulo, era entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja, como o revela a coleta em prol da Igreja de Jerusalém. Por ela o apóstolo nutria especial afeto. Apesar destes sinais positivos, não era uma comunidade perfeita. O desprendimento, a humildade e a simplicidade não eram valores apreciados entre os altivos patrícios que compunham a comunidade. É neste quadro que se situa esta perícopa da Carta aos Filipenses, em que Paulo convida os Filipenses a encarnar os valores que marcam a trajetória existencial de Cristo. Para tanto, utiliza um hino recitado nas celebrações litúrgicas cristãs, expondo Cristo como exemplo de vida.

Cristo Jesus – nomeado no princípio, no meio e no fim – constitui o motivo do hino. Porque os Filipenses são cristãos ou visto que Jesus Cristo é o protótipo a cuja imagem estão configurados, têm a iniludível obrigação de comportar-se como Cristo.

O hino alude à antítese entre Adão, o homem que reivindicou ser como Deus e Lhe desobedeceu, e Cristo, o Homem Novo que responde ao orgulho de Adão com a humildade e a obediência ao Pai. Adão trouxe fracasso e morte, ao passo que Jesus trouxe exaltação e vida.

O hino define o “despojamento” (“kénôsis”) de Cristo: não afirmou, com arrogância e orgulho, a sua condição divina, mas, fazendo-Se homem, assumiu, com humildade, a condição humana, para servir, para dar a vida, para revelar aos homens o ser e o amor do Pai. Sem deixar de ser Deus, quis descer até ao homem, fazendo-Se seu servidor, para lhe garantir vida nova. Esse abaixamento assumiu foros de escândalo: Jesus aceitou uma morte infamante – a morte de cruz – para nos ensinar a suprema lição do serviço, do amor radical, da entrega total da vida. No entanto, a entrega completa ao plano do Pai não foi perda nem fracasso: a obediência e entrega de Cristo ao desígnio do Pai resultaram em ressurreição e glória. Em consequência da obediência, do amor, da entrega, Deus fez d’Ele o “Kýrios” (“Senhor” – nome que, no AT, substituía o impronunciável nome de Deus); e a humanidade inteira (“os céus, a terra e os infernos”) reconhece o Senhor em Jesus, que reina sobre toda a terra e que preside à história.

É óbvio o apelo à humildade, ao desprendimento, ao dom da vida, que Paulo faz aos Filipenses e a todos os crentes: o cristão tem como exemplo Cristo, servo sofredor e humilde, que fez da sua vida um dom a todos. Essa via não leva ao aniquilamento, mas à glória, à vida plena.

2023.04.02 – Louro de Carvalho

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