sexta-feira, 7 de abril de 2023

Reflexão em Sexta-Feira Santa: o mistério da Cruz

 

 

No silêncio reflexivo, não de luto, mas de convocação da esperança, a Sexta-Feira Santa oferece aos cristãos o espetáculo da Paixão e Morte do Senhor, um fim considerado de ignomínia pelos Judeus, que O fizeram condenar à morte por crucifixão, como se fora um escravo ou um malfeitor, mas em que a árvore-cruz contém em si o esperançoso germe da vitória final sobre as forças do mal, sobre as estruturas mundanas de pecado, de opressão, de roubo da dignidade humana.

A Sexta-feira Santa nasceu como dia da morte de Jesus (dia 14 do mês de Nissan, que caiu numa sexta-feira). Trata-se de um dia de luto silencioso e de compunção, acompanhado de jejum e de abstinência, tendo esta, depois, sido estendida a todas as sextas-feiras do ano.

A Ação Litúrgica da tarde é composta de três momentos: Liturgia da Palavra, Adoração da Cruz e Comunhão. Por meio desta liturgia, os fiéis são convidados a fixar o olhar em Jesus Crucificado, que morreu na cruz para cumprir a missão salvífica que o Pai lhe havia confiado: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,19) – dizia João Batista. O profeta Isaías profetizou: “Ele tomou sobre si os nossos pecados, as nossas dores e sofrimentos, e nós julgamo-Lo castigado por Deus” (Is 52,13-53,12). Com a sua vida, Jesus pagou um alto preço pela nossa desobediência, mas fê-lo com amor e por amor: “Sendo rico, Jesus fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). No contexto desta Sexta-feira Santa, cada um de nós pode ficar diante da cruz e dialogar com o Senhor Jesus sobre os próprios problemas, dramas, sofrimentos. Todas as questões sobre a vida são iluminadas pela Cruz, a ponto de chegarmos a dizer, realmente, que “o coração tem as suas razões, que a razão não pode compreender” (Pascal). O Senhor Jesus deve ser acompanhado com amor, até ao fim, como Ele o fez.

Não é dia de luto, mas de contemplação do amor de Deus que Se faz dádiva pelo homem, que Se faz sacrifício redentor, que Se faz pasto de comunhão envolvendo a pessoa e a comunidade, tal como na noite de Quinta-Feira Santa, mas agora de forma cruenta, com o físico derramamento de sangue a selar a nova e eterna Aliança. A Eucaristia, cuja celebração se omite neste dia, para intensificar a reflexão orante à luz da copiosa leitura da Palavra de Deus, é o mistério sublime da nossa fé, gerador da Páscoa de cada semana e de cada dia, mormente ao domingo. Neste dia de paixão, morte e sepultura, a comunhão é “herança” do dia anterior e é premonição do dia de Páscoa. Este é o dia entre a instituição da Eucaristia na última Ceia (a primeira da nova Era) e o esplendor da Páscoa da Ressurreição, não se celebrando, mas meditando a profundeza do mistério da redenção. É o momento do apelo à austeridade e à contenção da normal exuberância humana.    

Depois, de entregar o discípulo à mãe e a mãe ao discípulo, sabendo que tudo estava consumado e para que se cumprisse a Escritura, Jesus disse: “Tenho sede”. Havia ali uma jarra cheia de vinagre. Amarraram num ramo de hissopo uma esponja embebida em vinagre e levaram-Lha à boca. Ele tomou o vinagre e disse: “Está consumado”. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito. (vd Jo 18,28-30).

Perante este cenário, importa que ajoelhemos a assumir a humilhação do homem terreno e a nossa coparticipação no sofrimento do Senhor, que espelha o amor de Deus que chega a sacrificar o próprio Filho, verdadeiro Cordeiro pascal, para a salvação da Humanidade.  

E, para que tenhamos a Cruz presente nas nossas vidas – desde a purificação do pecado, no Batismo, e da absolvição, no Sacramento da Reconciliação, até ao último momento da vida terrena, com a Unção dos enfermos e com o Viático, somos convidados, agora, a adorar a Cruz para o dom da salvação que conseguimos pela vinda do Filho de Deus ao Mundo, para dar testemunho da Verdade e fazer com que todos os que são da Verdade ouçam a voz da Verdade, isto é, de Cristo.

Depois da ascese quaresmal, o cristão está preparado para não fugir do sofrimento. Por isso, sem pejo e com ternura, durante a liturgia, os fiéis tocam a Cruz e beijam-na, entrando ainda mais em contacto com a dor de Cristo, que é a dor de todos, porque Ele carregou na Cruz os pecados de toda a Humanidade para a salvar. E devemos fazer nossa essa Cruz de Cristo.

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Na homilia desta Sexta-Feira Santa, de celebração da Paixão do Senhor, o cardeal Raniero Cantalamessa, frade capuchinho, reforçou o convite a continuarmos, “mais convictos do que nunca” – fiéis ao que dizemos a cada missa há dois mil anos, após a consagração: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”.

A Igreja recorda e anuncia, neste dia, a morte do Filho de Deus na cruz. Porém, como recorda o pregador da Casa Pontifícia, está viva hoje, no Ocidente descristianizado, a “existência de uma narrativa diversa” para a “morte de Deus, ideológica, não histórica”, proclamada “há um século e meio. E Cantalamessa frisou que “esta morte diversa de Deus encontrou a sua perfeita expressão no conhecido anúncio que Nietzsche põe na boca do ‘homem louco’, que chega sem fôlego à praça da cidade: – Para onde foi Deus? – exclamou – É o que vou dizer. Nós matámo-Lo – vós e eu!... Nunca houve ação mais grandiosa e aqueles que nascerem depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que o foi alguma vez toda essa história.”

É a ideia de que “a história não seria mais dividida em ‘antes de Cristo’ e ‘depois de Cristo’, mas antes de Nietzsche e depois de Nietzsche”, ou seja, exalta-se o homem, o “super-homem”, o “além-homem”, colocando-o no lugar de Deus. Ora, os homens não demorarão muito a dar-se conta de que, ao ficar só, o homem não é nada, pois, no dizer do purpurado, “estamos errando como num nada infinito”.

Todavia, “não nos é lícito julgar o coração de um homem que somente Deus conhece”, vincou o pregador da Casa Pontifícia, recordando a oração de Jesus na cruz: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34). Porém, podemos e devemos julgar a consequência que teve o anúncio que Nietzsche fez da morte de Deus, pois acabou por se tornar moda e declinada nos mais diferentes tons. O denominador comum a todas estas diversas declinações é o total relativismo em todos os campos: ética, linguagem, filosofia, arte e, naturalmente, religião. Nada mais é sólido; tudo é líquido ou mesmo vaporoso. No romantismo, as pessoas deleitavam-se na melancolia, ao passo que, hoje, comprazem-se no niilismo. “Como crentes, devemos mostrar o que está por trás ou sob aquele anúncio, isto é, a trepidação de uma antiga chama, a erupção repentina de um vulcão jamais extinto desde o início do mundo” – frisou Cantalamessa, sustentando: “Há uma verdade transcendente que nenhuma narrativa histórica ou raciocínio filosófico poderia transmitir-nos.” 

E o cardeal frade expôs tal verdade nos termos seguintes: “Cristo Jesus, existindo em forma divina, não considerou um privilégio ser igual a Deus, mas esvaziou-Se, assumindo a forma de servo e tornando-Se semelhante ao ser humano. E, encontrado em aspeto humano, humilhou-se, fazendo-Se obediente até a morte – e morte de cruz!” (vd Fl 2,6-8).

Mas o cardeal explicou o motivo por que se deve falar disto numa liturgia destas. Não é para convencer os ateus de que Deus não está morto, porque, para isso, “são necessários outros meios, mais do que as palavras de um velho pregador”, meios que o Senhor não deixará faltar “a quem tem o coração aberto à verdade”. O grande motivo é preservar os crentes “de serem atraídos para dentro deste vórtice do niilismo, que é o verdadeiro ‘buraco negro’ do universo espiritual”.

E o pregador da Casa Pontifícia finalizou a sua homilia, nestes termos:

“Deus? Nós matámo-Lo – vós e eu! Esta coisa tremenda realizou-se, de facto, uma vez na história humana, mas em sentido bem diferente do bradado pelo ‘homem louco. Porque é verdade, irmãos e irmãs: fomos nós – vós e eu – que matamos Jesus de Nazaré! Ele morreu pelos nossos pecados e também pelos de todo o mundo (1Jo 2,2). Mas a sua ressurreição assegura-nos que este caminho não conduz à derrota, mas, graças ao nosso arrependimento, conduz àquela ‘apoteose da vida’, em vão buscada em outros lugares.”

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Em Sexta-Feira Santa, morreu o Homem-Deus, mas Deus não está morto. Continua vivo e operante na nossa vida de peregrinação até que possamos viver contemplando-o, face a face, tal como Ele é puro e santo. Sexta-Feira Santa dá o cenário do abraço de Deus à Terra, do abraço de Cristo ao Mundo e a cada ser humano.

2023.04.07 – Louro de Carvalho

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