quarta-feira, 5 de abril de 2023

A onda cacofónica em torno da gestão da TAP

 

A gestão da Transportadora Aérea Portuguesa, conhecida pelo acrónimo TAP, está a ser objeto de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI). E, embora o país esteja longe de conhecer os resultados das audições, o que a pantalha pública já apresenta não abona nada em favor da administração desta empresa pública, nem das tutelas.

Desde logo, só em Portugal é possível a admissão, para o topo executivo de uma empresa pública, de uma gestora sénior que não domine a Língua Portuguesa e não se esforce por conhecer a legislação que enquadra a empresa e o Estatuto do Gestor Público (EGP). Tratar-se de mercado aberto e global não significa o menosprezo pela língua nem pelo direito e, obviamente, pelas boas práticas administrativas. Aqui é de apontar a temeridade dos representantes do acionista.

Além disso, foi-lhe prometido um prémio, que podia rondar os três milhões de euros, caso os objetivos da reestruturação da empresa fossem atingidos até ao fim do mandato. Uma exorbitância num país de salários mais que baixos!

Entretanto, somaram-se os casos, de que se recordam a intenção gorada de cerca de uma centena de automóveis de topo de gama para administradores e altos funcionários e, depois, uma razoável comparticipação financeira diária para deslocações, em compensação pela não atribuição de automóvel. E prosseguia o emagrecimento (peço desculpa, reestruturação) da TAP, pela dispensa de milhares de colaboradores e da eliminação de dezenas de serviços, como rotas e balcões.    

Também o desalinhamento de uma administradora em relação ao desígnio reestruturador da Chief Executive Officer (CEO) ou presidente da comissão executiva bastou para a dispensa da administradora discordante, o que revela incapacidade para o trabalho cooperativo. Porém, a saída de Alexandra Reis da TAP, porque foi nomeada para um cargo governativo, deu em notório escândalo pela gorda indemnização com que foi contemplada. E o seu questionamento verificou uma confusão de situações. Por um lado, foi forçada a sair; por outro, assinou a renúncia. No primeiro caso, tinha direito a indemnização; no segundo, não tinha. Portanto, houve que inventar a figura, não existente no EGP, “uma coisa do outro mundo”, segundo declarou o Presidente da República (PR) em entrevista à RTP.

No entanto, outra confusão surgiu. Como a ex-administradora passou a presidir à NAV Portugal, empresa pública reguladora do trafego aéreo, a que está sujeita a TAP, deveria ter devolvido a diferença entre o valor da indemnização e o do vencimento como gestora da empresa para onde passou. Só que Alexandra Reis pagara o imposto sobre o valor recebido.

Mais tarde, soube-se que, em fins de dezembro de 2021, Alexandra Reis, por e-mail, pôs lugar à disposição do ministro das Infraestruturas Públicas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, mas dizendo que pretendia continuar. Todavia, a CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, comunicou ao ministro, no início de janeiro, a saída da administradora em causa. Talvez por isso é que os advogados da TAP e os de Alexandra Reis terão acordado na redução do montante de um milhão e quatrocentos mil euros, inicialmente exigidos, para os quinhentos mil finais. Como o caso abalou o Governo e originou a dança que quem sabia e de quem não sabia do facto e do montante da indemnização, os ministros da tutela (Finanças e Infraestruturas Públicas), pediram explicações à TAP e a Inspeção-Geral de Finanças (IGF) pôs-se em campo e apurou que os advogados inventaram a figura da renúncia negociada, pelo que o acordo era nulo.

Por conseguinte, Alexandra Reis teria de devolver o valor da indemnização, exceto umas migalhas a que, efetivamente, tinha direito. A CEO e o Chairman (presidente do Conselho de Administração) foram os responsáveis pelo acordo, quando o mesmo deveria ter resultado de deliberação dos órgãos estatutários (designadamente a assembleia geral ou, pelo menos o conselho de administração). Mas os advogados não ficaram ilibados da responsabilidade técnica. E caberia à tutela avaliar a situação da CEO e do Chairman pelo incumprimento do estipulado no EGP sobre a matéria e, mesmo, remeter ao Tribunal de Contas o processo para decisão.

Hugo Mendes, secretário de Estado das Infraestruturas Públicas demitira-se, por ter autorizado a indemnização; e o ministro das Infraestruturas Públicas e da Habitação, que não sabia (mas “descobriu”, mais tarde, que sabia e autorizou), demitiu-se por via da turbulência surgida.

Conhecido o relatório da IGF, o ministro das Finanças, Fernando Medina, e o novo ministro das Infraestruturas Públicas, João Galamba, anunciaram a exoneração, com justa causa, da CEO e do Chairman, portanto, sem direito a indemnização, embora com direito à compensação que lhes for devida nos termos legais. Era o virar de página na empresa, que está por virar.

Enquanto o Chairman, Manuel Beja, se manteve praticamente em silêncio, a CEO manifestou, quer no Parlamento, onde foi ouvida, quer na comunicação social, a sua discordância em relação à medida, alegando que não sabe falar Português e, como a sua firmação de base não é o Direito, não conhece a legislação que enquadra as empresas portuguesas, nem o EGP, pelo que atirou as responsabilidades para os advogados. E, questionada porque recorreu aos serviços externos, alegou que a diretora dos serviços jurídicos estava de licença de parentalidade e que a TAP não dispunha, no momento, de ninguém com capacidade para acompanhar o processo. Além disso, aponta que foi a única dos visados do processo que não foi ouvida, presencialmente, pela IGF.

Entrementes, vem o milagre: a empresa teve lucros de cerca de 64 milhões de euros em 2022. Resta saber se foi por mérito da CEO, se pelo desalinhamento de Alexandra Reis, se pela frustração da compra dos veículos, se por conveniência contabilística.

A CEO, antes de ser ouvida no Parlamento, esteve reunida com deputados do Partido Socialista (PS) e com assessores e membros de gabinetes ministeriais, restando saber se houve orientação quanto a eventuais perguntas e respetivas respostas, o que levanta suspeitas de ética republicana e parlamentar. Por outro lado, a gestora sénior, que alegava ter sido despedida em público, concorda que foi avisada previamente por Fernando Medina, o qual não lhe terá dito que iria ser exonerada, mas que lhe recomendara que se demitisse. Atitude que nem é carne nem é peixe. 

Ouvido na CPI, o líder da IGF, António Ferreira dos Santos, justificou não ter ouvido, presencialmente, a CEO, pelo facto de nenhum dos seus inspetores falar Francês. Porém, ela foi instada a responder por escrito. Ora, do meu ponto de vista, não sendo confrontada, de súbito, com as perguntas, teve tempo e meios para preparar a resposta, prerrogativa concedida apenas a altas figuras públicas. Não obstante, a meu ver, a sua exoneração deveria decorrer de processo diretamente dirigido a si e com a perspetiva da eventual exoneração. 

Mas o inspetor disse outras coisas como: o CFO (administrador com o pelouro financeiro, na sigla inglesa) da TAP “não esteve relacionado com o processo”, já que “toda a negociação terá ocorrido à margem do conselho de administração e da comissão executiva, não existindo evidência de que o CFO tenha tido conhecimento do mesmo”.

Em relação ao poder político, que a IGF iliba no seu relatório, António Ferreira dos Santos considera que Pedro Nuno Santos e Hugo Mendes tiveram “inegável intervenção no processo”, mas que esse papel esteve “revestido num elevado grau de informalidade”. Interessante, não? 

O gabinete de Infraestruturas liderou o processo, mas não o partilhou com as Finanças. Aliás, há total absolvição, na lógica da IGF, de João Leão, ministro das Finanças na altura da saída de Alexandra Reis, em fevereiro de 2022, e de Miguel Cruz, secretário de Estado do Tesouro de então, bem como do atual responsável das Finanças, Fernando Medina. E mais nenhum membro do Governo teve envolvimento prévio do processo. Quem assim fala é amigo!

O CFO da TAP, também ouvido na CPI, declarou-se a leste de todo o processo, o que é inimaginável num CFO (Chief Financial Officer). Qual será então a sua função?

Referiu ter tido conhecimento da saída da antiga administradora pela CEO “informalmente, por WhatsApp, um dia antes” [3 de fevereiro de 2022] de esta comunicação ter sido oficializada, por email, pelo presidente do conselho de administração, Manuel Beja, a 4 de fevereiro de 2022 e no qual era anunciada “oficialmente a saída, bem como os termos exatos do comunicado à CMVM”. Porém, segundo Gonçalo Pires, “estas comunicações informais não eliminam o facto de nunca ter estado no processo”. Com efeito, as suas funções incluem as áreas financeiras, mas excluem as matérias laborais e as de recursos humanos, motivo pelo qual diz não ter estado envolvido na saída da administradora, que não foi surpresa, pois “já havia demonstrado posições discrepantes” em relação à restante administração da TAP. Por isso, garantiu: “Não tive conhecimento dos termos concretos da celebração desse acordo, não participei, não estive nas conversas com os advogados, não tive qualquer envolvimento com os valores, não negociei e não elaborei.”

Depois, veio o depoimento da CEO da TAP, que desmente o CFO, garantindo que ele “estava ciente do projeto para a nova organização [da TAP], esteve envolvido em alguns domínios, estava ciente das discussões porque lhe prestava informação”. Porém, adiantou “não se lembrar” se o CFO sabia dos montantes envolvidos no cheque passado a Alexandra Reis para abandonar a companhia. E referiu que houve “muitas pessoas” envolvidas num processo que apenas “coordenou”, já que não tinha conhecimentos jurídicos sobre a lei portuguesa.

Sente-se um bode expiatório nesta batalha política, havendo muitas pessoas que estavam a par. A 4 de fevereiro, o conselho de administração sabia que havia um acordo assinado. E explicou: “Parece-me que é um processo que foi conduzido por muitas pessoas cientes do assunto e ninguém pensou que este processo seria visto hoje como algo ilegal.”

Considerando ilegal e desajustada a sua exoneração ( “não existindo qualquer respeito por uma executiva sénior como eu”), a ainda presidente executiva, referiu que Hugo Mendes, confirmou que Pedro Nuno Santos, autorizou o montante da indemnização de 500 mil euros a Alexandra Reis, dando instruções para fechar o acordo.

E deixou uma farpa, indicando que Hugo Mendes pretendia que a TAP alterasse a hora de um voo a pedido do PR, o que não foi atendido, pelo que o chefe de Estado, que desmente, teve de arranjar solução para si.

Já sobre os motivos que levaram Alexandra Reis a sair da empresa, assegurou que “não foi nada pessoal”, pois a administradora “não estava ajustada com a comissão executiva”. E observou: “Foi um desalinhamento que tinha a ver com a estratégia da companhia.”

E, quanto a si, entende que deve sair, mas com o prémio de desempenho que foi ajustado. Cumpriu os objetivos e a TAP deu lucros.

Por fim, duas pérolas declarativas: Pires de Lima, ministro da Economia de Passos Coelho, nega ter autorizado a compra de mais de meia centena de aviões a preço superior ao do mercado e que a privatização fora a melhor solução para a empresa; e Alexandra Reis apontou que, tendo querido devolver a indemnização à TAP, fez várias tentativas de pedido de esclarecimento sobre o quanto e o como, mas não obteve qualquer resposta da empresa.

Antes deste imbróglio, alguém com responsabilidade, para aferir da justeza do pedido de indemnização da Alexandra Reis, terá tentado saber do histórico indemnizatório a ex-administradores da TAP. Eu também queria saber isso, porque – oxalá esteja enganado! – o caso Alexandra Reis não passa da ponta do caos logístico e financeiro das empresas públicas.     

2023.04.05 – Louro de Carvalho

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