quarta-feira, 19 de abril de 2023

Governo acusado de desobediência à Assembleia da República

 

Numa pausa no seu roteiro “Sentir Portugal”, o presidente do Partido Social Democrata (PSD), Luís Montenegro, a partir da sede nacional partidária, acusou, a 19 de abril, o governo de “crime de desobediência qualificada”, pela recusa de entrega à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão da TAP dos pareceres que deram “respaldo jurídico” ao despedimento, por justa causa, da diretora executiva (CEO) da companhia aérea, Christine Ourmières-Widener, e do presidente do seu conselho de administração (chairman), Manuel Beja.

Prometeu que os deputados na CPI iriam solicitar a aplicação da lei, que “é muito clara”, competindo ao presidente da CPI dar nota deste incumprimento ao presidente da Assembleia da República (AR), que deverá fazer a participação ao Ministério Público (MP) pela prática do crime de desobediência qualificada dos ministros das Finanças, das Infraestruturas e da Presidência do Conselho de Ministros”. E, omisso quanto a eventual pedido de demissão dos ministros em causa, reforçou que, se os socialistas Jorge Seguro Sanches, que preside à CPI, e Augusto Santos Silva, presidente da AR, “não conseguirem demover o Governo”, terão de participar ao MP. Caso contrário, “estão a ser ambos defensores do interesse do PS [Partido Socialista] e do Governo”.

O líder da oposição, que apela ao recuo do executivo, sustenta que esta atitude corresponde a distorção do equilíbrio de poderes constitucionais. e, falando em “ingerência do Governo num outro órgão de soberania”, a AR, pergunta de que tem medo o Governo e questiona se haverá mesmo um parecer. Depois, considerando que tem de haver um parecer, diz que tal parecer tem de ser presente à CPI e que, se for confidencial, será tratado como tal.

Por fim, citou o primeiro-ministro, que afirmou que a CPI deve apurar “toda a verdade, doa a quem doer”, e advertiu que o Governo não tem o direito de apreciar decisões da AR.

***

A 6 de março, os ministros das Finanças, Fernando Medina, e das Infraestruturas, João Galamba, em conferência de imprensa conjunta, anunciaram o afastamento, por justa causa, de Christine Ourmières-Widener e de Manuel Beja, após o relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) que considerou que os procedimentos seguidos, por ambos, para a saída de Alexandra Reis da gestão da TAP, em janeiro de 2022, com uma indemnização de 500 mil euros, tinham sido irregulares e que o acordo por eles assinado é nulo.

Apesar da justa causa, invocada então, mas não indicada aos visados, quando lhes foi dito, horas antes, que seriam afastados, Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja ficaram em exercício por mais um mês. Luís Rodrigues, designado de imediato, assumiu funções só a 14 de abril.

Tendo entrado em funcionamento a CPI, os deputados do PSD que a integram, requereram, por unanimidade, no início de abril, que o Governo fornecesse à comissão o parecer ou pareceres de respaldo à decisão – se é que existem –, o que os ministros envolvidos recusaram. Centram-se os deputados socialdemocratas, sobretudo, no facto de, na conferência de imprensa de anúncio da demissão por justa causa, o ministro das Finanças ter afirmado “estar juridicamente blindado naquilo que é a avaliação de quem a toma”. Com efeito, a invocação de justa causa é, para o executivo, o cerne da questão, pois é ela que impede o pagamento de eventuais indemnizações ao ex-CEO e ao ex-chairman, que rejeitam que haja razões para o afastamento. A primeira anunciou que vai contestar juridicamente a decisão; e o segundo está a avaliar, depois de ter prometido que ia defender a sua honra. E o PSD argumenta que esta atitude do Governo mostra que não há justa causa e que o país arrisca vir a pagar indemnização milionária à ex-CEO.

Três ministros – Fernando Medina, João Galamba e a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva – deram a resposta à CPI, com as mesmas palavras, embora em separado:

“A Resolução da Assembleia da República n.º 7/2023, de 14 de fevereiro, foi aprovada a 3 de fevereiro de 2023 para constituição de uma comissão parlamentar de inquérito à tutela política da gestão da TAP SGPS e da TAP, S.A. Nos seus termos, foi delimitado o respetivo objeto (cfr. alíneas a) a g) da referida resolução) e, bem assim, o horizonte temporal (período entre 2020 e 2022). […] Extravasando o aludido objeto da comissão parlamentar de inquérito e/ou reportando-se a factos posteriores à respetiva constituição, as informações requeridas não recaem no escopo do disposto no artigo 13.º da Lei n.º 5/93, de 1 de março, na sua redação atual.” É o que  referem as três missivas dos governantes, todas assinadas a 17 de abril.

A resposta à disponibilização do parecer vem dos dois ministérios envolvidos na decisão e no da Presidência, pois é aqui que está o Jurisapp, o centro de competências jurídicas do Estado, a que a CPI fez o pedido. Os três ministérios dizem-se disponíveis “para quaisquer esclarecimentos ou informações adicionais”, mas nenhum esclarece se o documento existe ou não.

O PSD não ficou satisfeito com a resposta e reagiu num requerimento: “Resulta claro, não só que os ministros terão iludido os portugueses quanto à segurança jurídica da sua decisão de despedir a CEO da TAP por justa causa, como se conclui que os mesmos atuam à margem da lei, nomeadamente ao esconder, deliberadamente, documentos da Comissão Parlamentar de Inquérito, em claro desrespeito pelo Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares e pelos poderes da Assembleia da República.” Por isso, o grupo parlamentar socialdemocrata na CPI à TAP pediu uma “reunião de emergência” da comissão, a realizar no mesmo dia 19, para “deliberar sobre uma posição conjunta, face ao demonstrado e objetivo atropelo à lei por parte do Governo”.

À Lusa, o Governo deu uma justificação que não deu aos deputados da CPI.

O gabinete da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, alega que “o parecer em causa não cabe no âmbito da comissão parlamentar de inquérito (CPI)” e que “a sua divulgação envolve riscos na defesa jurídica da posição do Estado”. Por isso, como assinala a nota do gabinete da governante, “a resposta do Governo à CPI visa a salvaguarda do interesse público” – argumento que parece dizer tudo, mas que pode não dizer nada, como se verá.

O Governo alega que os processos de demissão dos anteriores CEO e chairman da TAP “têm sido objeto de manifestações públicas suscetíveis de gerar contencioso entre os visados e o Estado”.

***

Nas respostas que deram à CPI, os governantes não esclareceram, sequer, se existem pareceres, apenas utilizaram o argumento de que o pedido, por ser sobre um ato em 2023, escapa ao âmbito da iniciativa parlamentar.

Contraditoriamente, o gabinete de Ana Catarina Mendes manifesta “toda a disponibilidade” do Governo “para colaborar” com a AR e, em particular, com a CPI, vincando que “o respeito é absoluto”. Rejeita, porém, “um clima de tensão permanente em volta de uma CPI que deve trabalhar com tranquilidade e com a qual o Governo coopera com toda a lealdade institucional”.

Esta posição governamental surge no dia em que o PSD, através do deputado Paulo Moniz, coordenador do PSD na CPI, acusou o Governo de “atuar à margem da lei” por recusar enviar à comissão os pareceres que deram “respaldo jurídico” ao despedimento por justa causa em referência. Explicando que o partido pediu, através de um requerimento, a fundamentação jurídica referida pelo ministro das Finanças, “aquando da conferência de imprensa de 6 de março, em que anunciou o despedimento, por justa causa, da senhora CEO da TAP”, o deputado, agora, acusa: “Acontece que fomos surpreendidos, imensamente surpreendidos, aliás, estupefactos com o facto de não nos ter sido remetida esta informação, onde imediatamente resulta claro que os senhores ministros não só iludiram os portugueses, quanto à propalada segurança jurídica da sua decisão, como também se conclui que estes mesmos ministros atuam à margem da lei.”

***

Para esclarecimento da matéria, é de dar uma olhada pelo referido artigo 13.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares, aprovado pela Lei n.º 5/93, de 1 de março, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 126/97, de 10 de dezembro, pela Lei n.º 15/2007, de 3 de abril, e pela Lei n.º 29/2019, de 23 de abril.

As CPI “gozam dos poderes de investigação das autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados” (n.º 1); “têm direito à coadjuvação das autoridades judiciárias, dos órgãos da polícia criminal e das autoridades administrativas, nos mesmos termos que os tribunais” (n.º 2); “podem, a requerimento fundamentado dos seus membros, solicitar por escrito ao Governo, às autoridades judiciárias, aos órgãos e serviços da Administração, demais entidades públicas, incluindo as entidades reguladoras independentes, ou a entidades privadas as informações e documentos que julguem úteis à realização do inquérito” (n.º 3); nas CPI constituídas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º (isto é, a requerimento de 1/5 dos deputados em efetividade de funções até ao limite de um por deputado e por sessão legislativa), as diligências instrutórias referidas no número anterior, solicitadas pelos deputados requerentes, “são de realização obrigatória, não estando a sua efetivação sujeita a deliberação da comissão” (n.º 4); “a prestação das informações e dos documentos referidos no n.º 3 tem prioridade sobre quaisquer outros serviços e deve ser satisfeita no prazo de 10 dias, sob pena de o seu autor incorrer na prática do crime referido no artigo 19.º [desobediência qualificada], salvo justificação ponderosa dos requeridos que aconselhe a comissão a prorrogar aquele prazo ou a cancelar a diligência” (n.º 5); o pedido “deve indicar esta lei e transcrever o n.º 5 deste artigo [informação ao Procurador-Geral da República] e o n.º 1 do artigo 19.º” (n.º 6); “no decurso do inquérito, a recusa de prestação de depoimento, de prestação de informações ou de apresentação de documentos só se terá por justificada nos termos da lei processual penal e da presente lei” (n.º 7).

E, na redação atual da lei, figura um artigo 13-A, que trata do “incidente para a quebra de segredo”, competindo “às secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça julgar [STJ], por decisão definitiva e irrecorrível, o incidente”, o qual “tem natureza urgente”.

***

É claro que a as CPI têm poderes especiais para o levantamento de segredos que sejam invocados por quem solicita documentos ou por quem os deve ceder, e têm até decidido ir ao STJ para os levantar. E devem tratá-los nos termos do artigo 13-A, pelo que não terá razão o executivo, que se mostra, ironicamente disponível, cooperante e respeitador, mas não cumpre a lei. Por outro lado, o Governo escuda-se – e mal – na letra ou nos números do âmbito temporal do objeto da CPI, como se documentos anteriores não possam ser úteis ao esclarecimento dos factos em discussão. A decisão em causa e o parecer que lhe dá respaldo são de 2023, mas os factos têm origem no período de 2020-2022 e deles são indissociáveis os dois atos.

Oxalá exista parecer fundamentado para o despedimento por justa causa. Porém, duvido da formal legitimidade de tal despedimento por justa causa, pois não houve processo específico dirigido à ex-CEO e ao ex-chairman, mas apenas ilação a partir do que concluiu a IGF na apreciação do acordo de rescisão da TAP com Alexandra Reis. Além disso, é estranho que a decisão de afastamento tenha sido comunicada aos visados, sem a menção de justa causa, e que os mesmos se tenham mantido em exercício – o que parece denotar odor político com veste jurídica.    

2023.04.19 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário