domingo, 2 de abril de 2023

O “politicamente correto” e o “politicamente conveniente”

 

A cada passo, nos deparamos com as expressões “politicamente correto” e “politicamente incorreto”. E, porque, não raro, são utilizadas no sentido mais adequado, mas conveniente, parece-me oportuno um excursus sobre estas e outras expressões com tenham com elas alguma analogia.

A expressão “politicamente correto” configura expressões, políticas ou ações que evitam ofender, excluir e/ou marginalizar grupos vistos como desfavorecidos ou discriminados, especialmente em razão do género, da orientação sexual ou da cor. No discurso político e nos meios de comunicação social, a expressão é, geralmente, pejorativa, implicando que as políticas de não discriminação são excessivas.

Antes da década de 1990, a expressão tinha uso disperso, geralmente como autodescrição irónica, mas entrou em uso mais comum nos Estados Unidos da América (EUA), depois que foi objeto de uma série de artigos no The New York Times. Foi amplamente usada no debate sobre o livro The Closing of the American Mind (1987), de Allan Bloom e o seu uso foi reforçado em resposta ao livro Tenured Radicals (1990), de Roger Kimball, e ao livro Illiberal Education (1991), do autor conservador Dinesh D’Souza, em que são condenados os esforços liberais para avançar na autovitimização, nas ações afirmativas e nas mudanças no conteúdo dos currículos escolares e universitários, através da linguagem.

Observadores mais à esquerda diziam que os conservadores desviavam, assim, a atenção de questões mais substantivas de discriminação, entrando numa ampla guerra cultural contra o liberalismo dos EUA. E argumentavam que os conservadores têm as suas próprias formas de correção política, que são, geralmente, ignoradas por comentaristas conservadores.

Em 1793, a expressão “politicamente correto” apareceu no Supremo Tribunal Federal dos EUA no julgamento de um processo político. E teve uso noutros países de língua inglesa nos anos 1800. Porém, até ao início do século XX, não se relacionava com a desaprovação social que o uso mais recente lhe conferiu.

No fim da primeira metade do século XX, a expressão “politicamente correto” foi associada à aplicação dogmática da doutrina estalinista, debatida entre membros do partidos comunista e socialista americanos. Segundo o americano Herbert Kohl, que escreveu sobre debates, em Nova Iorque, no final da década de 1940 e início da década de 1950, a expressão “politicamente correto” foi usada, com desprezo, para se referir a alguém cuja lealdade à linha do Partido Comunista superou a compaixão e levou a uma política ruim. Foi usada pelos socialistas contra os comunistas e deveria separar os socialistas que acreditavam em ideias morais igualitárias de comunistas dogmáticos que advogassem e defendessem posições partidárias, independentemente da sua substância moral (“Uncommon Differences”, in The Lion and the Unicorn Journal (1992).

Para John Cleese, comediante britânico, a expressão começou como uma ideia bastante decente, mas transformou-se em coisa completamente errada e levada até ao absurdo. 

O músico Nick Cave critica o exagero do “politicamente correto”, que fora, em tempos, uma tentativa meritória de reimaginar a sociedade de forma mais justa, mas que passou a apresentar todos os piores aspetos que a religião tem para oferecer e nenhuma da sua beleza.

Na década de 2000, o jornalista Eric Zemmour desenvolveu a ideia de que a recusa de usar uma linguagem politicamente correta foi criminalizada e condenou a lógica inquisitorial das associações antirracistas.

E o filósofo Dominique Lecourt considera o “politicamente correto” como “uma retórica da dissuasão”, um meio de intimidação que sugere que haveria um pensamento único, um caminho certo segundo o qual todos devemos ser julgados. Tornou-se, através de algumas leis antirracistas ou memoriais, um instrumento de conquista do poder, usado por minorias ativas bem organizadas que espalham o seu inconformismo puro, muitas vezes de tom religioso.

No Reino Unido, no escândalo de exploração sexual infantil de Rotherham, os funcionários não atacaram uma rede pedófila paquistanesa, por receio de serem acusados ​​de racismo ou de preconceito. Os denunciantes foram perseguidos e o problema ignorado. Todavia, relatórios subsequentes estimam que 1400 crianças foram vítimas desta rede, de 1997 até 2013.

No tratamento jornalístico posterior de casos similares, a expressão “gangues de muçulmanos” ou “paquistaneses” deu lugar à expressão “gangues de asiáticos”, pouco precisa. Porém, uma associação Sikh insistiu que os media e os políticos deixassem de denominar os gangues dessa rede como “asiáticos”, por o termo ser demasiado vago deslustrar outras comunidades.

Cerca das 23 horas de 31 de dezembro de 2015, cerca de mil e quinhentos homens, de aparência “norte-africana e árabe”, fortemente alcoolizados e agressivos, aglomeraram-se no hall da Estação Central de Colónia e criaram distúrbios. De repente, grupos desses homens rodearam as mulheres e meninas (mais de 1200 foram vítimas em Colónia, Hamburgo e Estugarda), agredindo-as sexualmente. Ao mesmo tempo, eram roubados telemóveis e outros objetos. E não se viam forças policiais. Mais de dois mil homens estiveram envolvidos, mas de acordo com o respetivo relatório, apenas foram identificados 120 suspeitos. 

Num comunicado à imprensa, a 1 de Janeiro de 2016, a polícia de Colónia anunciou que, na noite anterior, tinha havido “uma atmosfera exuberante e largamente pacífica” e que as forças policiais estavam “bem posicionadas e presentes”. O silêncio e o laxismo da polícia e dos media, as declarações de Henriette Reker, presidente da câmara de Colónia a incriminar as mulheres alemãs e o atraso na reportagem dos acontecimentos pelos media, especialmente pelas emissoras públicas, foram fortemente criticados nos dias seguintes. E Henriette Reker declarou publicamente que era “inadequado” ligar as agressões sexuais em massa com os refugiados.

Em abril de 2016, as estatísticas das autoridades indicavam que, dos 153 suspeitos identificados em Colónia condenados por crimes sexuais e outros, na passagem de ano de 2015-2016, dois terços eram de Marrocos ou da Argélia, 44% eram requerentes de asilo, outros 12% estavam ilegalmente na Alemanha, e 3% eram refugiados menores de idade desacompanhados.

Assim, não espanta que ao “politicamente correto” responda o “politicamente “incorreto”. Segundo os seus defensores, há uma estratégia do “politicamente correto” que visa impedir o efetivo exercício da liberdade de expressão. Segundo eles, as suas opiniões são atualmente minoritárias e não geram efeitos nocivos à sociedade. Por outro lado, os críticos dessa prática afirmam que o “politicamente incorreto” está relacionado com o autoritarismo e que tais discursos são oriundos de preconceitos enraizados na sociedade contra minorias. Além disso, indicam que não há real monitorização dessas opiniões, que são amplamente reproduzidas nas sociedades contemporâneas. Ainda segundo seus opositores, o “politicamente incorreto”, assim como o discurso de ódio, não deveria ser entendido como compatível com os direitos fundamentais do homem. E o discurso politicamente incorreto é tido, também, como uma forma de vigiar e controlar a liberdade de expressão de grupos não conservadores.

Entretanto, na prática do quotidiano, o “politicamente correto” é mais comezinho. Não se diz o que se pensa contra o que está mal ou é injusto e imoral, porque se tem medo de retaliações, de não conseguir um benefício do Estado ou da autarquia, porque se quer proteger o acesso ao emprego do próprio ou de familiares, a manutenção no emprego ou a progressão na carreira. Diz-se o que os outros querem ouvir ou mandam dizer, para se conseguir mais um voto, um lugar no Parlamento, no Governo, numa autarquia, ou a liderança de uma agremiação, bem como para promover ou manter a imagem da empresa ou do serviço, que se dirige ou em que se tem função de relevo. E fazem-se omissões, com o mesmo escopo. É o “politicamente conveniente” ou o politicamente oportuno, que leva a eufemismos, como acusar, em vez de “mentir”, “não ter boa relação com a verdade” e dizer, em vez de “cunha”, “capital de relação”!

Assim, o politicamente correto é uma forma de cobardia, de prossecução do carreirismo, de egoísmo, de egocentrismo e de egotismo, quando o “politicamente correto” deveria ser o discurso, a ação ou a omissão em prol da lei, das boas práticas, do bem comum e dos esforços para que o bem comum, a justiça e a equidade se instaurem, se mantenham e se desenvolvam.

Por outro lado, o “politicamente correto” seria aceitar a crítica construtiva e o escrutínio. Não se percebe como tem havido tantos casos e casinhos, na área parlamentar, na área dos governos, na área da justiça. Os órgãos de soberania e os órgãos do poder local são constituídos por cidadãos e cidadãs a quem os eleitores entregam o exercício do poder político, não o poder em si, pois o poder político, sobretudo o poder soberano, não é delegável. Por isso, é que, além da crítica, das manifestações e da greve, é legítimo o golpe de Estado ou a destituição de detentores do exercício do poder, quando dele abusam. É certo que, por vezes, o golpe de Estado ou a destituição não resultam da vontade da corrigir anomalias, mas da ambição de quem os leva a cabo.

E, anedoticamente, aceita-se que se escrutine e critique o Parlamento e o Governo, mas há dificuldade em escrutinar o Presidente da República e torna-se impossível escrutinar e criticar, a partir de fora, os tribunais. É certo que Parlamento, Governo e Presidente da República são eleitos e têm de prestar contas aos eleitores. Todavia, os tribunais são órgãos de soberania, não eleitos, e administram a justiça em nome do povo, pelo que deveriam também ser objeto do escrutínio externo. São independentes? Também os outros órgãos de soberania o são e, pelo menos, no fim de mandato, são julgados pelos eleitores, bem como o são pelos tribunais, se houver suspeita fundada de ilícito criminal. O escrutínio não eleitoral é também um exercício de democracia!

Porque não se começa pelo escrutínio das magistraturas a montante, desde logo pela composição dos conselhos superiores da magistratura e dos magistrados do Ministério Público? Se as Universidades, os Institutos Superiores Politécnicos e os agrupamentos de escolas e as escolas não agrupadas têm, nos conselhos gerais, maioria de elementos não professores, porque não podem os conselhos superiores de magistrados ter maioria de elementos não magistrados?

Lembro-me de que, em tempos, face a um impasse administrativo, alguém percebeu que eu teria uma ideia para a solução. Ao ser questionado por quem de direito, respondi que era preciso substituir as duas equipas em cena: uma, por usar uma linguagem algo confusa e lábil; outra, por não ter experiência técnica para o efeito. E a resposta foi que essa solução tinha custos políticos. Porém, a solução foi aquela, obviamente, aproveitando o trabalho já feito, mas reconfigurando-o. Aliás, as decisões que atingem a comunidade são políticas, embora devam ser fundadas na ciência e tornadas exequíveis pela técnica.

Por fim, não dá para entender porque se inventou a expressão “sociedade civil”. A vida em sociedade é cidadania, é política – é claro, muitas vezes, não partidária. Parece-me que a intenção era “despolitizar” a sociedade. É que estava habituado a distinguir civil e militar, civil e clerical, civil e religioso, mas não a distinguir civil (do latino “civis”) e político (do grego “polítês”). 

2023.04.01 – Louro de Carvalho

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