segunda-feira, 24 de abril de 2023

O Dia da Liberdade deve ser um dia universal e inclusivo

 

Mais uma celebração do “25 de Abril” (nesta designação escrevo o nome do mês com maiúscula), que instaurou a democracia. Foi – e espero que se mantenha assim – a revolução da liberdade, da paz, da democracia, do canto livre, da autodeterminação dos povos e das pessoas e do desenvolvimento, nas suas diversas componentes (pessoal e social, económica, cultural e ética).

Rufaram os tambores contra a ditadura da opressão (pensamento único, coartação da liberdade de opinião) e da guerra e pela democracia formal e material. O povo saiu à rua e assumiu o poder, embora Marcello Caetano tenha pretendido render-se a António de Spínola, para que o poder não caísse na rua. O poder veio para a rua, ao encontro do povo, “a arraia-miúda” (como diria Fernão Lopes), que o assumiu no presente e para o futuro.

A distribuição dos cravos vermelhos aos militares, que os puseram na ponta da metralhadora ligeira, em vez da baioneta ou das munições, significou, mais que tudo, a aceitação popular da mudança. As pessoas podem não saber o que querem, mas têm a certeza do que pretendem rejeitar: “ditadura e guerra nunca mais”.

Por mais escolhos e contradições que tenham atravessado a revolução e perdurem, ainda, no regime democrático, as coisas mudaram. Instaurou-se o sistema de eleições livres para os diversos órgãos do poder político e os órgãos de soberania observam o princípio da independência e separação dos poderes, bem como o da sua interdependência e o da cooperação. Há o normal respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como dos grupos legitimamente organizados (clubes, associações, empresas, fundações, sociedades, etc.). Pratica-se o sistema da propriedade privada e da livre iniciativa, mas sem perder de vista o interesse comunitário e a dimensão social da iniciativa e da propriedade. Procura-se o bem-estar nas suas várias dimensões (educativa, sanitária, cultural, social, económica, securitária e do tempo livre), tentando que ninguém fique para trás, antes cultivando o desígnio da inclusão e da universalidade.

O nosso regime evoluiu para as vertentes da integração e da inclusividade, do respeito pelas diferenças, do encontro de culturas, da promoção do prestígio e boa imagem das instituições e da cooperação intergeracional.

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Por mais erros de procedimento que o regime albergue – e são muitos – não é lícito abusar da exigência partidária ou presidencial da demissão de governantes, da remodelação governamental e da dissolução parlamentar. Como escreveu António Barreto no Público, a 22 de abril, os partidos políticos que têm a obsessão da demissão, da remodelação e da dissolução “não mostram outra coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política”. Porém, eu estou convicto de que o aproveitamento de todos “os casos e casinhos”, agora publicamente evidentes, se deve à corrida aos fundos comunitários, que partidos mais à direita gostariam de gerir.   

Uma das regras da democracia (que será sempre imperfeita, por se basear em opiniões e em estudos de valor discutível) é o estabelecimento de regras e de prazos, que devem ser observados, a menos que haja algum epifenómeno excecional. Outra das regras é a existência de mecanismos de escrutínio, para lá das eleições e dos referendos, como os direitos e os deveres de crítica, de manifestação, de audição, de petição, etc. E, em democracia, é relevante o papel da comunicação social, nas linhas de informação (pela palavra e pela imagem), de escrutínio e crítica, de opinião, de ensaio e de sondagem quanto ao grau de satisfação dos cidadãos.

Assim, os órgãos de soberania constituídos por via eleitoral direta (Assembleia da República e Presidente da República) ou indireta (Governo e Tribunal Constitucional) devem cumprir o mandato, que é avaliado, no seu termo, pelos eleitores. Exigir a demissão de governantes pouco muda, se não mudarem as políticas. Esses devem pedir a demissão ou ser demitidos, quando houver problemas de incapacidade política ou de saúde, não por hostilidade pessoal ou partidária da parte de alguém. Demissão do governo – a não ser nos casos de rejeição parlamentar (rejeição do seu programa, aprovação de moção de censura, não aprovação de moção de confiança e termo de legislatura) só pode acontecer, se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas, não uma empresa pública, um ministro, um secretário de Estado, um hospital, uma fragata da Marinha, etc. (que, sendo importantes, não são as instituições democráticas). Seria o caso, por exemplo, de o Parlamento não conseguir gerar uma solução governativa decente ou de as Forças Armadas estarem profundamente divididas.

A dissolução parlamentar é uma prerrogativa da livre iniciativa do chefe de Estado, apenas condicionada à audição prévia do Conselho de Estado, cujo parecer não é vinculativo, e vedada em alguns períodos de tempo.

O legislador constituinte acreditou no bom senso presidencial, pelo que não impôs, como condição essencial, a não regularidade do funcionamento das instituições democráticas. Pressupôs que o chefe de Estado, sabendo que não pode dispor dessa prerrogativa em situações em que Parlamento ainda não deu prova (nos seis meses posteriores à sua eleição) ou em tempo em que o presidente poderia fazer vingar a sua eventual agenda política (último semestre do seu mandato), nunca iria usar a dissolução como arma de arremesso e, muito menos, chamar-lhe “bomba atómica”, um perigosíssimo recurso nuclear. Nem pensaria que, sendo difícil demonstrar o não funcionamento regular das instituições democráticas, o chefe de Estado usaria o mecanismo da dissolução para, indiretamente, levar o governo ao cessamento de funções.

E não vale a pena invocar o precedente criado por Jorge Sampaio, que dissolveu um parlamento em que a maioria parlamentar não contestava o governo. Se houve problemas, eram do foro ministerial. Tal precedente, a meu ver, abusivo não legitima solução análoga. Diz-se que o líder do governo não fora eleito. Porém, foi proposto pelo seu partido, através do órgão máximo entre congressos. E tinham sido eleitos os partidos que asseguravam a maioria parlamentar de apoio.     

Por isso, ficará mal ao chefe de Estado andar a falar em dissolução aqui e ali, hoje e amanhã. “Ameaçar” com ela um debate inconclusivo de orçamento de Estado, uma posse do governo, para o caso de o primeiro-ministro vir a deixar de liderar o executivo, um inêxito do partido do governo em próximas eleições europeias, o incumprimento, a tempo, dos projetos que requerem dinheiros comunitários ou a perda da maioria avaliada, por sondagens, desdiz da postura de Estado que deve ser apanágio de um decisor político.  

E, se o legislador constituinte estabeleceu que a dissolução parlamentar não pode ocorrer durante a vigência do estado de sítio ou do estado de emergência, o Presidente da República deveria, em meu entender, abster-se de usar dessa prerrogativa constitucional, quando temos pela frente uma guerra na Europa, em que Portugal está diretamente implicado, e uma situação de crise económica e social, que levou o governo a distribuir parte da almofada orçamental (a propalada demasia da carga fiscal) pelas famílias, pelas empresas, pelas pessoas em estado de carência e pelos pensionistas. Deveria, antes, avaliar os casos apontados ao governo na sua proporcionalidade e com a ponderação de quem tem sentido de Estado, não como aparente líder de oposição (que não é), podendo fazer a discreta pressão sobre o primeiro-ministro para a melhoria de políticas e para eventual substituição de governantes ou enviar mensagens ao Parlamento, mas sem se deixar influenciar por sondagens ou por quebras ou aumentos de popularidade. 

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O 25 de Abril é a festa da democracia e da liberdade. Ora, a democracia é inclusiva e a liberdade é para todos. Assim, a data comemorativa da Revolução dos Cravos é a festa dos democratas, a festa dos portugueses. Todavia, é curial que se convidem para a nossa festa entidades amigas, sobretudo se detentoras do poder em países que, durante algum tempo, se disseram “Portugal”.

Recordo que já tivemos na sessão solene comemorativa da revolução a presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau. Também o presidente do Brasil convidou Portugal para a sessão solene comemorativa do Bicentenário da Independência (da sua independência). Por isso, não percebo a birra de partidos políticos que recusaram a participação de Lula da Silva na sessão comemorativa do 25 de Abril, com a oportunidade de se dirigir aos portugueses, e, mesmo, a simples presença como convidado. Não devia estar em causa a pessoa de Lula da Silva, mas o cargo que ocupa na liderança de um país amigo e irmão, que viveu, como Portugal, em regime de ditadura e de que emergiu para a democracia. Cometeu erros! Quem não os comete? Onde está á tolerância, tantas vezes proclamada? Como pôde ceder o passo ao fechamento? Foi mais legítimo e dialogante ouvir Zelensky! Mas Lula da Silva veio participar numa cimeira de cooperação bilateral e em que se equacionou o multilateralismo e a ambição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Essa de organizar uma sessão parlamentar de boas-vindas ao chefe de Estado do Brasil, no mesmo dia (com o uso da palavra por parte do anfitrião da Casa da Democracia e por parte do visitante) e antecedente à sessão comemorativa da revolução da liberdade, não passou de uma solução artificiosa e hipócrita do ponto de vista diplomático e protocolar. Políticos institucionalistas não enveredariam por aí.

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Estamos a celebrar o 49.º aniversário da revolução abrilina. São sete septénios consecutivos. Muitos cidadãos, incluindo deputados e membros do executivo, já não têm memória direta do período anterior a 1974 e até da transição para o novo regime. Não sabem quanto se sofreu antes da revolução, pela generalizada míngua de quase tudo: estradas, escolas, serviços de saúde, transportes organizados fora dos grandes centros, proteção de crianças e de idosos, emprego e segurança social, circulação de víveres, direito à palavra e ao silêncio e direito à justiça. Além disso, havia a guerra colonial e a emigração clandestina, bem como alguma ostracização de portugueses no estrangeiro e, em Portugal, a discriminação entre homens e mulheres, bem como entre grupos culturais, sociais e económicos.

Agora, tudo mudou. Há muitos erros e é preciso caminhar muito. Até houve alguns retrocessos, mormente os ditados pela especulação, pela corrupção e pela reinstalação de grandes interesses.

Entretanto, avizinha-se o cinquentenário da instauração do regime democrático. O antigo povo de Israel consideraria o ano subsequente ao sétimo septénio o ano de jubileu, em que seriam esquecidas as divergências, se remiriam as servidões e as dívidas. Nesse sentido, espero que sejam corrigidas as rotas de desvio, se esqueçam as divergências graves, se moderem as ambições, se produza mais, se distribua melhor, se melhore a defesa, a saúde e a segurança, se dialogue mais, se crie convivência mais sadia e se eduque para a tolerância, para a reconciliação e para a paz.

Haja menos birra, mais diálogo e tolerância, menos interesses instalados, maior promoção do bem comum. Enfim, 25 de Abril sempre! 

2023.04.24 – Louro de Carvalho

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