sábado, 8 de abril de 2023

Uma Via-Sacra com a Mãe Dolorosa

 

Em Sábado Santo, dia de recolhimento pelo facto de o Senhor estar, supostamente, no túmulo – selado com uma grande pedra, que para a sua entrada foi rolada, e com uma escolta de soldados para ali mandada por Pôncio Pilatos, a fim de guardarem o Cristo, para que Ele não fugisse – alguns crentes, em vez de se ocuparem com os bolos de Páscoa e, eventualmente, com outros afazeres não inadiáveis, fazem uma imaginária via-sacra com a Virgem Maria, a Mãe Dolorosa, agora Senhora da Soledade, revisitando as suas sete dores.

Independentemente dos habituais formulários, gostaria de apresentar o seguinte, provavelmente pela ordem inversa dos factos, mas tendo em conta que Maria, no Calvário, nos foi doada, por Jesus, como mãe dos discípulos na pessoa de João, o Evangelista, e que nós fomos entregues a Ela, para que nos guie na aprendizagem, a partir de agora, colhida do Espírito Santo, o Espírito da Verdade, da Fortaleza e da Oração.

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Começando pelo túmulo, em que o Senhor já não está – pois desceu à mansão dos mortos clamar: “Levanta-te do sono, tu que dormes!” – Maria, apesar da dor e da soledade, inspira-nos a alimentar a esperança na ressurreição, persuadindo-nos de que este não é o fim. Para lá do túmulo, há vida, para os discípulos, e missão, para os apóstolos. Mãe e discípulos não têm medo da pedra, nem da escolta militar. Deus não abandona os crentes, os discípulos, os que têm a missão de evangelizar.

Do túmulo passamos ao Calvário. Aquele que Se viu despojado das suas vestes, repartidas entre os algozes (e a túnica inconsútil lançada à sorte), e viu a sua nudez exposta ao riso dos circunstantes, abraçou Terra e Céu e, nesse abraço continuado, aperta ao peito todos os homens.

Mesmo sentindo o abandono do Pai, pediu-Lhe que perdoe àquela gente, “porque eles não sabem o que fazem”. Ao arrependido prometeu o paraíso, já para aquele dia. E, sabendo que a sua obra estava consumada, entregou o seu espírito nas mãos do Pai.

Jesus é, também no Calvário, o exemplo do que os arrependidos e perdoados devem fazer: perdoar e abraçar, trabalhar pela expansão do Reino do Pai, sempre e em todo o lugar. E a mãe da dor não deixará de aconselhar os discípulos e apóstolos ao perdão e à missão universal.

A seguir, revisitamos o percurso percorrido pelo condenado. Era um homem fatigado pelo peso da cruz e pelo anterior sofrimento físico e psicológico. Teve de ser ajudado pelo Cireneu. É nesta via dolorosa que surge a mãe, que só O podia confortar com o olhar materno. Porém, a este olhar materno junta-se a delicadeza da Verónica a oferecer ao condenado uma toalha para limpeza e alívio do rosto suado e ensanguentado, bem como o pranto das mulheres de Jerusalém. Não sabemos o que terá dito à mãe, mas às mulheres a lucidez falou alto: “Chorai, antes, por vós e pelos vossos filhos: deplorai os vossos pecados.”. Ele veio para tirar o pecado do mundo. Para isso, precisa da cooperação dos redimidos. A via dolorosa de Jesus, então feita de ameaças e de insultos, de pena e de comiseração, de barulho e de espetáculo, deve ser, hoje, via-sacra de silêncio, de contemplação, de arrependimento, de propósito firme de emenda e de perdão.

Convém que aprendamos, com a mãe dos discípulos, a ser cireneus de Jesus, "cireneando" o próximo, e que façamos o exercício e a pedagogia do arrependimento dos pecados.        

No pretório de Pilatos, o Mestre, acusado de Se fazer “Rei dos Judeus” (foi esta a causa oficial da condenação), foi interrogado pelo Governador romano, que não viu mal algum no acusado, mas, invetivado pela multidão, não resistiu à pressão, pelo que mandou flagelar Jesus, aceitou que O coroassem de espinhos e O tratassem como rei fantoche (Pilatos não percebia o que era um reino que não fosse deste mundo, que Jesus proclamou no pretório, a não ser um reino faz-de-conta) e o apresentou à multidão assim, quase desnudo, coroado de espinhos e sustentando na mão uma cana a fazer de cetro. A multidão, negando o reinado deste rei, exigiu a sua crucifixão. Pilatos, desresponsabilizando-se, lavou as mãos e entregou-O para execução. E o pretório ficou na memória coletiva como lugar de ódio, de tortura, de chacota, de cobardia e de falta de fé – exemplo de outros tantos espaços similares em outros tempos e em outros lugares.

Maria não terá presenciado diretamente este episódio, mas conheceu-o e sentiu-o. E nós não podemos deixar de abjurar das falsas acusações, da provocação do sofrimento e da cobardia em não assumir as nossas responsabilidades, custe o que custar.  

Antes da apresentação ao Governador romano, Jesus foi presente ao Sinédrio, o tribunal judaico presidido pelo sumo-sacerdote (naquele ano, o sumo-sacerdote era Caifás, genro de Anás). Caifás já tinha predito que tinha de morrer um só homem, para que se salvasse todo o povo (E o Evangelista acrescenta: “e para reunir os filhos de Deus que andavam dispersos”). Porém, antes de Caifás, Anás que era sogro de Caifás e tinha sido sumo-sacerdote no ano anterior, também interrogou Jesus, utilizando uma função que já não detinha.  

Agora, Jesus repetiu o que dissera abertamente no Templo, para quem O ouviu: que era o Filho de Deus. E isto, que foi considerado a grande blasfémia, serviu de pretexto para O condenarem à morte. Porém, como não tinham capacidade legal para Lhe darem a morte de cruz, morte infame, tinham de obter o veredicto do representante do Império romano.

Maria não presenciou a cena, pois as mulheres não tinham acesso ao tribunal. Contudo, hoje Ela, a mãe dolorosa, não perde a lucidez e recorda aos discípulos o que o anjo Lhe anunciara: “O Santo que vai nascer de Ti é o Filho de Deus.” Por isso, não é lícito negá-Lo, como fez Pedro, ou fugir, como fizeram todos, sendo que João O reencontrou, pelo menos no Calvário, ou traí-lo, como fez Judas, vendendo-O por 30 dinheiros e entregando-O no Monte das Oliveiras com um beijo.  

Ele fora detido no Monte das Oliveiras, onde, perto dos discípulos – a quem recomendou a vigilância e a oração, para que não caíssem em tentação, e a quem disse que o espírito está pronto, mas a carne é fraca – pedira, agonicamente, ao Pai, que Lhe tirasse aquele cálice, mas, como não era possível, que se fizesse a vontade do Pai. Maria, que não acompanhou esta agonia orante do Filho, sabe que Ele veio para fazer a vontade do Pai. Por isso, fazendo-Se exemplo para os discípulos, lembra-lhes, hoje, a confissão de prontidão que fez ao anjo: “Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra”.

E é preciso não esquecer o Templo, de onde Jesus expulsou os vendilhões, que da Casa do Pai, casa de oração, fizeram covil de ladrões. Se aqui Jesus ensinou, se aqui tinha causado admiração pela sua sabedoria e pela sua inteligência junto dos doutores, quando lá ficou na festa Páscoa, aos 12 anos de idade, se Ele o assumiu como símbolo do seu corpo que reedificaria em três dias, agora é preciso que a mãe recorde aos discípulos que o Templo, acabado de destruir, amanhã se reerguerá. E, pela sua força, que é força do Alto, os discípulos hão de assumir a capacidade de andar e de falar testemunhando a causa do Templo reerguido, a causa do Reino de Deus. Aliás, estava cumprida a profecia formulada a Maria pelo velho Simeão: “Este menino está aqui para a queda e para o ressurgimento de muitos e para ser sinal de contradição. E uma espada trespassará a tua alma. Assim se revelarão os intentos de muitos em Israel.”.

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Por fim, vamos ao cenáculo, que se coloca antes da Paixão, Morte e Ressurreição e depois, emoldurando o tempo e os espaços do mistério pascal. Antes, o Senhor celebrou a Páscoa judaica com os discípulos e, nesse contexto, inaugurou a sua e nossa Páscoa, instituindo a Eucaristia como banquete sagrado, em que se recebe Cristo e se presentifica a sua Paixão, a alma se enche de graça, a Igreja se edifica e nos é dado o penhor da futura glória. É a Eucaristia que nos capacita para a assunção do novo mandamento do amor fraterno, concretizado no afeto e no serviço: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.” E é ao serviço da Eucaristia, sacramento do Amor e fautor do serviço afetivo e efetivo a todos, que se constitui o sacerdócio ministerial.

No depois, registam-se dois momentos: depois da Ressurreição; e antes do Pentecostes.

Depois da Ressurreição, os apóstolos estão ali cheios de medo dos judeus. Porém, na tarde do primeiro dia da semana, Jesus surpreende-os, colocando-se, de súbito, no meio deles. Deseja-lhes a paz. Constitui apóstolos àqueles a quem tinha feito irmãos pela Cruz (“Como o Pai Me enviou, Eu vos envio a vós”), insuflou-lhes o sopro de vida, o Espírito Santo, e deu-lhes o encargo da pregação e do arrependimento e do perdão, bem como o poder de perdoarem os pecados. Oito dias depois, confirmou este mandato e, respondendo ao desafio de Tomé, que pretendia meter a mão no lado chagado do Senhor e o dedo nos sítios dos cravos, como condição para acreditar, arrebatou do apóstolo a melhor confissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus!”

Antes do Pentecostes, os apóstolos estão no cenáculo com Maria, outras mulheres e outros discípulos, todos em oração. Aí, Maria assume o exercício de mãe dos discípulos e de pedagoga dos apóstolos. Eles, já possuídos pela prometida força do Alto, elegem Matias para o lugar vago com a morte desesperada de Judas. E aí são investidos, no dia de Pentecostes, da força do Espírito Santo e saltam para a rua a proclamar as maravilhas de Deus, ouvindo-os cada um (e eram muitos e de muitos lugares da Terra) na sua própria língua materna. E Pedro proclama Jesus, o Senhor e Messias, o único Salvador.

Entretanto, aguardemos a Páscoa e o Pentecostes!

2023.04.08 – Louro de Carvalho

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